Desporto

sábado, 24 de abril de 2021

O caso de Moçambique: Da falta de vergonha ou de coragem

 


   O novo Estado de Moçambique foi configurado segundo o modelo marxista soviético, na mais pura tradição das democracias populares. Assim o determinou o Comité Central da Frelimo, que se constituíra como a suprema autoridade da nação. Uma minoria impôs a sua vontade a nove milhões de pessoas sem um esboço de legitimação democrática. O acordo Samora Machel-Melo Antunes tinha deixado em aberto a possibilidade deste desfecho.

   Vasco Gonçalves, que presidira à Comissão Diretora do MFA quando foi elaborado o seu programa, traiu-o, quando, enquanto Primeiro-Ministro de Portugal presente na cerimónia da independência, classificou, comovidamente, como honrosa libertação de um povo, o que não passava de um processo neocolonial. Ao rebaixar-se, pedindo servilmente perdão, quando abundavam motivos de orgulho, desonrou a farda que vestira sem convicção. Paradoxalmente, saíram de Samora Machel as palavras de enaltecimento dos que tinham sabido bater-se e de desprezo pelos covardes. O guerrilheiro, ainda com memória dos seus tempos de combatente, corrigiu o “general”. A persistente doutrinação marxista que o envolvia acabou por converter aquela em servo dos novos senhores.

   Ato contínuo iniciaram-se, sem qualquer discriminação, as perseguições aos dissidentes ou, simplesmente, intelectualmente autónomos. Médicos, advogados, engenheiros e professores fugiram como puderam, deixando um vazio de que a população seria vítima. Sucederam-se as prisões arbitrárias; as vítimas, transportadas em camiões de gado, foram tratadas brutalmente nos campos de trabalho. Descoberta acidentalmente a infâmia, esta foi abafada nos meios de comunicação social portugueses e internacionais. Estes, que denunciaram os excessos da PIDE, calaram-se perante as incomparáveis monstruosidades cometidas pela SNASP (Serviço Nacional de Segurança Popular).

   Igualmente perseguidas foram todas as confissões religiosas. Os islâmicos, habituados à cordialidade da administração portuguesa, na pessoa de Baltasar Rebelo de Sousa, foram desrespeitados por Samora Machel, no templo da Ilha de Moçambique, por se recusarem a aderir à ideologia marxista. Cristãos ortodoxos foram também perseguidos, obrigados a fugir de templos, escolas e hospitais, sob ameaça das armas dos milicianos da Frelimo. A maior chacina ocorreu entre os cerca de 40 mil Testemunhas de Jeová, refugiados junto à fronteira de Moçambique, na sequência da perseguição que lhes era movida pelos países vizinhos. Acolhidos pela administração portuguesa que, conjuntamente com o Malawi, lhes prestava assistência, foram obrigados, pela Frelimo, a cruzar a fronteira para caírem nas mãos dos seus perseguidores. Cerca de 3 mil foram assassinados sumariamente a tiro, à baioneta ou à pancada. A Igreja Católica também não escapou à fúria frelimista, sendo acusada de reacionária. Quis-se separar a Igreja de Moçambique do Vaticano e até de alteração da liturgia. O bispo de Nampula, ativo frelimista do tempo colonial, foi impedido de pregar na Catedral e proibido de sair do Paço episcopal.

   Os bispos moçambicanos, que sempre encontraram fórmulas de criticar as autoridades portuguesas e de as afrontar nos seus relatórios para Roma, remeteram-se ao silêncio envergonhado. Os missionários espanhóis, defensores entusiastas do seu povo cristão, desta vez mantiveram-se calados. D. Eurico de Noronha, respeitado bispo de Vila Cabral - depois de Sá da Bandeira -, que se oferecera para advogado dos padres marxistas do Macuti, não fez ouvir a sua voz.

   E quanto à Igreja Católica, porque se calou? Porque desapareceu a coragem do Núncio Apostólico de Lisboa, sempre lesto a denunciar as prepotências portuguesas? Porque se calou o padre Hastings, que denunciara do massacre de Wiryamu ao The Times londrino, perante os comprovados genocídios ainda mais graves, que se cometeram em Moçambique no processo da independência?

   Quanto a D. António Ferreira Gomes, o célebre Bispo do Porto, fértil no apoio às acusações contra a guerra colonial, porque não se lhe ouviu uma palavra de caridade para com os cristãos vítimas da mais violenta perseguição dos tempos modernos? Onde estiveram as cartas pastorais e as homilias versando “Paz e Justiça”?

   Houve em tudo isto um silêncio cúmplice e uma vergonhosa falta de coragem, com exceção reconfortante do Arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, que, de acordo com a sua ímpar personalidade, disse o que havia a dizer.


Fonte: “Moçambique Terra Queimada” (Jorge Jardim)

Peniche, 24 de Abril de 2021

António Barreto

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