Desporto

quinta-feira, 15 de julho de 2021

As Razões de uma Dissidência

 Peniche, 19 de Dezembro de 2018

Por, António José Rodrigues Barreto:

Sócio nº 34689

Exmo. Sr. Presidente do Benfica, Sr. Luís Filipe Vieira

 

   Tendo em conta que por várias vezes lhe reiterei o meu apoio à frente dos destinos do Benfica, impele-me o dever de consciência a comunicar-lhe que não me é possível mantê-lo.  

   No universo Benfica sou um grão de areia e, nele, a nada mais aspiro, mas tal como diz o poeta: “la areña es un puñadito pero hay montañas de arena” (Atahualpa Yupanki - El Payador Perseguido).

   A minha perceção mudou na época transata perante uma sucessão incompreensível de desastrosas decisões; tantas e tão más que, até prova em contrário mantenho a convicção de que “o Benfica” não quis ganhar o campeonato. Vejamos:

   Vendeu-se tudo o que tinha mercado dizimando a equipa; desguarnecendo-a na baliza, na defesa, no meio campo e no ataque. Fomos enxovalhados na Liga dos Campeões deixando uma nódoa que perdurará por muitos anos entre os adeptos do futebol, e em especial, no coração dos do Benfica.

  Depois do desastre europeu, perdemos o campeonato - “por uma unha negra”; teria bastado por exemplo, trazer o Odisseias em Janeiro ou não ter deixado sair Júlio César - que sabe tudo de técnica de baliza -, ou ter recuperado o Mitroglou - o homem dos golos, insatisfeito e triste no Marselha -, ou o Gaitan em Janeiro - o “abre-latas” deslocado no Atlético. Enfim, de uma estrutura competente esperavam-se melhores decisões. Os empréstimos - Douglas e Gabigol - foram um fracasso. As baixas de Krovinovick e Jonas, situando-se no espetro das contingências previsíveis, não foram compensadas. Um tremendo fracasso de gestão desportiva.

   O anúncio da amortização da dívida bancária prenunciava o desastre, e o do novo ciclo de obras confirmou-o. Num primeiro tempo pensei: - caramba! O Benfica está imparável; vamos dar o salto qualitativo que faltava. A pouco-e-pouco porém, à medida que iam sendo conhecidos os detalhes, foi-se desvanecendo o entusiasmo. Tudo não passou, afinal, de uma estratégia de compensação da frustração dos adeptos, tentando induzir-lhes a ideia de que “perdemos por uma boa causa”, “o futuro será glorioso”. Algo que já ouvíramos durante cerca de onze anos. Vejamos agora mais de perto alguns eventos recorrendo apenas ao que é do conhecimento público, único recurso de que disponho:

   A amortização da dívida bancária foi do interesse dos bancos não do Benfica - os mesmos que têm financiado os rivais através de empréstimos, doações e reestruturações. O clube-SAD poupa cerca de 16 milhões de euros por ano em juros, em contrapartida, durante o período do contrato, o clube-SAD abdicou de 40 milhões de euros anuais. Um saldo negativo de 24 milhões de euros por ano; a diferença provável entre sucesso e fracasso.

   Por outro lado, o recurso à antecipação de receita para liquidação de passivo bancário quando, salvo o erro, na época correspondente se faturou cerca de 240 milhões de euros em jogadores, foi uma enorme deceção. Se a mais-valia desta receita foi alocada à despesa corrente, significa que o clube-SAD está mal, muito mal. E, nesse caso, o futuro do Benfica é preocupante. Um bom método de gestão aconselharia a que a dívida fosse paga sem pôr em causa a competitividade da equipa principal; por exemplo, alocando ao serviço da dívida 50% da mais-valia da transação de jogadores e o restante à atividade operacional; 25% para investimento e o restante para despesa corrente.

   Relativamente às anunciadas obras, apesar da exuberância do projeto, que analisarei em detalhe mais à frente, há que enquadrá-lo no objetivo primordial, a saber; contribuir para a melhoria da competitividade desportiva da equipa principal de futebol, pedra de toque de todo o universo do clube rumo ao mais alto patamar. Quer o investimento, quer os custos operacionais associados, poderão comprometer por muitos anos a desejada ascensão desportiva da equipa. Algo que deverá ser bem fundamentado e explicado aos associados, acionistas e investidores. Como é que um colégio, mais 16 campos de treino - salvo o erro -, um hotel, um lar e um centro de alto rendimento, contribuem para formar uma equipa de futebol sénior de nível mundial? Essa é a questão primordial.

   O Presidente enfrentou a época em curso sob a égide da credibilidade institucional, estabilidade e lealdade ao treinador. Responsabilizando-se pelo desastroso desfecho da época transata, decorrente da sangria de efetivos, acreditou que, dotando a equipa dos recursos humanos adequados, esta recuperaria o sucesso desportivo rumo à “reconquista”. Infelizmente enganou-se; a época está a falhar e, se nada for feito entretanto, espera-nos, de novo, rotundo fracasso. A equipa técnica não consegue implementar o seu modelo apesar dos bons jogadores de que dispõe. Estes, desorientados com a falta de liderança, jogam como sabem, com empenho mas desarticuladamente, incapazes de provocar roturas nas defensivas contrárias - a não ser, em combinações ocasionais de 2, 3 jogadores e graças ao talento de alguns deles. O desânimo apossou-se da equipa. Os adeptos afastam-se deixando o Estádio vazio e a BTV sem audiência. Isto não é o Benfica, o grande Benfica com que os adeptos sonham.

   Perante os persistentes ataques de que o clube-SAD tem sido alvo, a necessidade de união entre benfiquistas é óbvia, motivo pelo qual reconsiderei, porém, a recente inversão duma decisão coletiva relacionada com a mudança da equipa técnica em sede de Conselho de Administração justificada por uma alegada e solitária revelação, foi a gota de água; fiquei a perceber que, no Benfica, os membros do Conselho de Administração não passam de adereços, sujeitando-se, obedientemente, à ditadura presidencial. Cabe aqui dizer que o Presidente não foi eleito para tomar decisões; foi eleito com uma equipa, para, co-responsavelmente, tomar boas decisões. Manter a atual equipa técnica em funções é, quanto a mim, uma péssima decisão. Veja o meu caso; toco umas peças de música clássica na guitarra mas não sou capaz de tocar Paganini.

   Relativamente ao seu projeto para o futuro do Benfica-SAD; considero correta a aposta na formação, porém não tenha ilusões; sem um Treinador carismático e sem uma equipa capaz de ganhar, “perfumando” os relvados, o projeto ruirá sem apelo nem agravo. Ninguém da formação interna - ou fora dela - quererá jogar num benficazinho, conformado, resignado às derrotas, quando, no processo de formação, aprenderam as virtudes do inconformismo, da ousadia e da vitória.

   Do “novo ciclo de betão”, completando o que disse atrás no caso da formação, o aumento do número de campos de treino e o melhoramento das condições de apoio aos formandos - residencial e colégio -, aumentará a base de recrutamento e, consequentemente, a emergência de novos e melhores talentos. É verdade. Mas também é verdade que, a partir de certo ponto, por mais campos de treino de que se disponha, o retorno desportivo será marginal face do investimento efetuado. De todo o modo, uma rede de “olheiros” bem montada é vital para o sucesso do projeto. Investir recursos infrutiferamente é um mau ato de gestão. Por outro lado, assumir publicamente o recurso da formação como condição exclusiva da competitividade europeia da equipa, como o Presidente fez recentemente, é uma imprudência que desmobiliza todos os outros contributos, afinal, imprescindíveis. Imagino o estado de espírito dos atuais jogadores externos perante tal propósito.

   No caso do Centro de Alto Rendimento, julgo que se destinará ao desenvolvimento da secção de atletismo, com vista a consolidar o domínio interno e a disputar os grandes torneios internacionais. Muito bem. O Benfica e o país carecem de melhor representatividade nestas disciplinas. Mas não se iluda; se a competitividade da equipa principal de futebol for afetada, ninguém, entre os benfiquistas, quererá saber do atletismo.

   Quanto ao hotel; se é uma forma de viabilizar economicamente um edifício histórico do clube, cuja alienação nunca seria compreendida pelos sócios, desde que não ponha o essencial em causa, é uma boa decisão.

    Fazendo agora uma breve retrospetiva à sua gestão e começando pelo fim:

   O tetra campeonato foi conquistado quando o Benfica se tornou independente em termos de direitos desportivos. Essa independência enchia os benfiquistas de orgulho, um orgulho que se refletia na motivação da equipa e na qualidade de jogo. Os bons resultados brotaram desta força. O recente contrato com a NOS, anunciado com exuberância, foi o princípio do fim, uma “machadada” no orgulho dos benfiquistas, que, estou certo, prefeririam aumentar a sua contribuição, a sujeitar-se ao garrote portista.

   As consequências não se fizeram esperar; com uma conjuntura governativa favorável e a paciente reconstituição do grupo que detém a Sport-TV - com os tradicionais aliados, Amorim, Sonae, angolanos e um “ponta de lança” do foro político-desportivo – alegadamente, reativaram-se os processos de condicionamento das equipas concorrentes através do controlo do respetivo financiamento.

   O resultado está à vista; sucessivos casos de assistências para golo à equipa opositora, árbitros a aplicar as leis do jogo de forma arbitrária e a comunicação social cantando loas aos “heróis” da democracia. Enquanto isso, o Benfica e seus Dirigentes são enxovalhados na praça pública, quase diariamente. Cabe aqui assinalar a débil reação da estrutura encarnada revelando total incapacidade de terçar armas no espaço público, onde se joga grande parte do sucesso ou insucesso desportivo. A saída de João Gabriel deixou um grande vazio na área da comunicação.

   No campo dos direitos desportivos, o aparecimento de um novo player, a Eleven Sports, consolida a minha convicção de que o negócio com a NOS foi um erro; “entregou-se o ouro ao bandido”! Uns meses mais e a receita poderia ter sido bem superior e, sobretudo, não se teria facilitado a restauração do poder do rival. Agora temos o deserto pela frente.

   Olhando mais para trás, sendo certo que, como diz o bom povo, “o que não tem remédio remediado está”, à luz dos recentes eventos, merecem-me breves considerações alguns outros casos.

   A tomada de decisões numa instituição do tipo do Benfica, sujeita a abundante escrutínio público, onde, muitas vezes, a emotividade se sobrepõe à racionalidade, é problemática. Num universo tão vasto e heterogéneo de funcionários, atletas, jogadores e adeptos, a unanimidade é quase impossível de obter exceto quando se ganha.  Daí a importância da colegialidade da tomada de decisão, sem prejuízo do papel mobilizador, moderador e decisório do líder. Por outro lado as plataformas de comunicação disponíveis devem abrir-se aos adeptos para que possam, livremente, expressar as suas opiniões e fazer o seu escrutínio. Este processo, se autêntico, induz novas ideias e ajuda a “calibrar” os assuntos em discussão. O oposto do que atualmente se pratica no universo encarnado.

   No lote dos temas fracionários situa-se o caso do novo Estádio. Recordo o saudoso Jorge de Brito ter referido, a certa altura do seu mandato, que preferiria um Estádio mais pequeno e mais confortável. Lembro o contexto em que se avançou para a construção dos novos Estádios - o da realização do europeu de 2004. O Benfica parecia irremediavelmente afastado do processo. Temia-se, creio, o desânimo dos adeptos encarnados. Hoje parece-me claro que todo o processo do euro 2004 foi conduzido para dar resposta ao projeto Roquete.

   Temos um Estádio moderno, confortável, bonito, talvez mais económico, mas, mais pequeno, de série, sem memória, sem história, sem o “terceiro anel”. Temos também uma dívida que retirou - e retira - competitividade à equipa. O Estádio está pago - anunciou o Presidente. Não sei se “se pagou a si próprio” nos doze anos previstos. Não sei se alguma vez pagará todos os custos não financeiros decorrentes.

   Os factos ajudam-nos a perceber melhor o outro lado das consequências desta opção; a Direção anterior tinha pronto um projeto de recuperação e modernização do velho Estádio, da autoria do mais conceituado arquiteto da época - Tomás Taveira - que custava quatro milhões de contos - cerca de vinte milhões de euros. Teria sido possível investir de imediato na competitividade da equipa. Em contrapartida a opção adotada gerou uma dívida que implicou uma longa travessia no deserto que ameaça agora prolongar-se após o breve interregno do “tetra”.

   Mário Dias, nas suas esporádicas, escassas e sóbrias entrevistas, levantou a ponta do véu ao dizer que os bancos financiavam a construção do novo Estádio mas não a restauração e modernização do velho. O velho Estádio dos afetos, construído com o apoio dos benfiquistas, em dinheiro, materiais e mão-de-obra. O Estádio da exigência implacável do terceiro anel de que tanto se tem falado - exigência essa que, recentemente, se converteu em conformismo e resignação -, um Estádio único, testemunho dos maiores feitos históricos do clube, admirado e respeitado pelos grandes atletas que o conheceram. O velho Estádio era o Estádio dos adeptos. Tinha alma. O novo é o Estádio dos banqueiros, e estes, não consta que a tenham. Com a demolição do velho Estádio da Luz ruiu uma parte do velho e glorioso Benfica.  

   A união dos adeptos é necessária, o entusiasmo exigente impulsiona jogadores, treinador e atemoriza adversários, contudo, a união constrói-se, não se pede. Constrói-se com competência, transparência, respeito, diálogo e humildade. O Presidente, nos últimos tempos, tem-se empenhado em fazer o oposto.

   Para os adeptos do Benfica, há uma espécie de “pecado original” relacionado com as alegadas “velhas amizades” do Presidente com confessos inimigos. Vejamos:

   Correm rumores, de, num tempo não muito distante, entre os atuais Presidentes do Benfica e do Porto ter havido um relacionamento de grande proximidade. Sei que as pessoas mudam e, como diz o bom Povo, “por um burro dar um coice não se lhe corta a pata” (salvo seja), mas não se é amigo de Pinto da Costa impunemente. Quem sabe se o Benfica não estará, hoje, a pagar o preço dessa velha amizade.

   Outro caso é o da “eterna” gratidão do Benfica a Joaquim Oliveira, o grande estratega do Porto - seu clube dileto -, junto da Comunicação Social, dos Governos - do socialista em particular -, dos bancos - consta que o Porto reestruturou a dívida do seu Estádio alargando a amortização do empréstimo por 50 anos -, do aparelho judicial - veja-se a origem do Presidente executivo da Sport TV -, de todas as SAD - Joaquim Oliveira tem participações em todas elas, incluindo, paradoxalmente, na do Benfica - e junto de investidores externos de referência - sobretudo angolanos.

   Este poder foi construído a partir da exclusividade da aquisição, pela Olivedesportos, dos direitos desportivos dos clubes nacionais - apesar de, alegadamente, irregular -, graças a cumplicidades bem conhecidas da opinião pública. Ao reverter a resolução unilateral do contrato dos direitos do Benfica com a Olivedesportos decidida pela Direção de Vale e Azevedo, Manuel Vilarinho viabilizou a estratégia de domínio portista, que se concretizou, e mantém, após o breve interregno do tetra. Como se vê é Joaquim Oliveira que deve estar grato ao Benfica e não o contrário.

   Hoje, com os direitos na mão e um governo amigo, o Porto faz o que quer no campeonato - tal como nos velhos tempos do Apito Dourado. Mais grave, estas anormalidades passaram a ser aceites pela sociedade e a generalidade da comunicação social, como uma espécie de nova ordem; para estes o Benfica representa o velho regime e o Porto é o símbolo do novo. Apesar da falsidade, esta narrativa impôs-se e os políticos aceitam-na “deixando passar o andor” ou ajudando mesmo a transportá-lo. Por tudo isto não fica nada bem ao Presidente do Benfica afirmar aos seus adeptos o dever de gratidão a quem tanto mal tem feito ao seu clube. O futuro do Benfica passa por inverter este discurso.

   Outro caso polémico que deixa os adeptos “de pé atrás” é o dos alegados “submarinos” no clube. Gente que pertence aos quadros do Benfica mas tem vínculo clubístico diferente. A pertinência do argumento da prevalência da competência sobre o da simpatia clubística está condicionada ao efetivo escrutínio daquela e à despistagem dos antecedentes, nomeadamente do envolvimento em ações hostis ao clube. Não é razoável integrar nele gente que lhe tenha causado, voluntariamente, danos graves. Ao primeiro revés brota o fraccionismo. Dá a ideia que o Presidente não se sente confortável com os benfiquistas. Não sei. Até percebo que há certos benfiquistas que se acham com um injustificado estatuto especial. No entanto, primeiro os benfiquistas.

   Neste mesmo contexto cabe referir o caso do motorista do Presidente, a contas com a justiça por alegado envolvimento num caso de tráfico de droga. Segundo veio a público, os alegados traficantes teriam acesso às instalações do Estádio e, no trabalho operacional, era utilizada uma viatura do Benfica. Se é certo que nenhum envolvimento foi imputado pelas autoridades ao Presidente este, perante os adeptos, não pode eximir-se à responsabilidade da escolha de um colaborador inidóneo.

   O mesmo se aplica ao assessor para a área jurídica. Apesar das bagatelas conhecidas e ainda que o Presidente não tenha tido conhecimento dos casos cabe-lhe a responsabilidade da escolha e da falta de acompanhamento eficaz.

   Imprudência também se imputa ao caso dos vouchers, que tantos incómodos têm causado. Abriu-se o flanco ao adversário, desnecessariamente. Durante anos, a comunicação social afeta aos rivais não cessou de massacrar o Benfica, provocando-lhe danos de imagem assinaláveis. Era previsível e escusado.

   Noutro contexto, alguma aparente promiscuidade que se tem verificado entre a atividade profissional particular do Presidente e do Benfica, contribui para alimentar a reserva dos adeptos. Os casos que vieram a público relacionados com a fiscalidade e com operações financeiras envolvendo as mesmas entidades bancárias, deveriam ter sido evitados. Total separação de interesses é um requisito da transparência.

   Outro caso é o das frequentes referências a Vale e Azevedo. É tempo de acabar com isso. Vale e Azevedo foi acusado, julgado e condenado (alegadamente, por um juiz portista e dragão de ouro). Cumpriu pena de prisão correspondente ao cúmulo jurídico de 17,5 anos, sem beneficiar de liberdade condicional. Pagou pelos seus erros. É um homem livre, mas continua a ser perseguido como um animal selvagem. Chega. Convidem-no a defender-se quando quiserem acusá-lo. Apesar de tudo foi Presidente do Benfica, e há adeptos, como eu, que não gostam de o ver maltratar.

   Outro caso ainda é o da saída de Jorge Jesus do Benfica, traumatizante para os respetivos adeptos, os quais, ainda hoje não percebem o que efetivamente se passou e se perguntam se não poderia ter sido evitada toda a turbulência deplorável a que assistimos. Um eventual regresso poderá fomentar a divisão dos adeptos. Estes foram desrespeitados, sem razão, por Jorge Jesus. Muitos continuam magoados e não o aceitarão sem uma retratação pública. De duas coisas estou certo; se vier, no mesmo dia a equipa passará a jogar o dobro ou o triplo do que joga atualmente, e não faltam bons treinadores por aí, dentro e fora do país (Marco Silva, Miguel Cardoso, Abel Ferreira, Vítor Oliveira, Paulo Fonseca, etc.).

   Para terminar assinalo o caso da alteração dos estatutos no âmbito dos requisitos para a candidatura à presidência; a imposição dos 25 anos de associado ao candidato é um exagero que vai sair caro. O tempo de associado não é garantia de competência, nem é certo que seja suficiente para afastar arrivistas mal-intencionados. A competência e a lealdade não escolhem idade. Esta matéria deveria ser revista quanto antes.

   O Sr. Presidente Luís Filipe Vieira fez um trabalho notável no clube, e é, sem dúvida, um dos melhores desde a sua fundação, mas no contexto aqui referido, sinto que o seu projeto está exaurido. Teimosamente preso a um Treinador cuja equipa apresenta um futebol insuficiente - com jogadores tristonhos, descrentes -, indiferente aos avisos e recomendações - agora confirmadamente pertinentes -, e aos enxovalhos públicos a que a equipa e adeptos têm sido sujeitos, hostilizando os adeptos dissidentes, abdicando do espaço público - com uma BTV sensaborona e laudatória -, o Presidente impõe uma gestão autocrática, messiânica - “antes de mim o deserto, depois de mim o dilúvio” -, que é contrária à identidade do grande Benfica.

   Considero que chegou a hora de um novo ciclo para o meu clube; um ciclo que corrija alguns equívocos aqui apontados e tenha como prioridade, o desendividamento, a otimização do trabalho da formação, a reestruturação da superestrutura desportiva do clube-SAD - privilegiando a capacidade prospetiva e o fortalecimento da competitividade da equipa principal rumo ao mais alto patamar europeu e mundial, com a integração inteligente de elementos da formação sem exclusão dos de outras origens.

   Last but not the least, perante o descalabro a que assistimos no futebol, à semelhança do que fazem os Dirigentes do rival do norte, é tempo de os Dirigentes do Benfica perceberem a natureza eminentemente política do futebol em Portugal e “convidarem”, ainda que em abstrato, Governo e Partidos a definirem-se publicamente. Algo que, a meu ver, o Presidente tem descurado.

Peniche, 18 de Dezembro de 2018

Com os meus respeitosos cumprimentos,

António José Rodrigues Barreto

VIVA O BENFICA!

  

  

  

 

  

  

  

 

  

  

  

  

      

  

  

  

  

  

  

  

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tudo isto agravou a tarefa do Treinador que, penosamente, lá conseguiu restaurar algum equilíbrio numa equipa desencantada, que declinou, sem apelo, na sequência da saída de Jonas. As extraordinárias circunstâncias motivacionais dos anos precedentes tinham desaparecido; nem o repetido anúncio da “inevitabilidade” do penta campeonato foi estímulo suficiente. Houve um claro relaxamento da estrutura e, mais grave, as carências táticas da equipa, no posicionamento e na dinâmica coletiva persistiram até final da época e seguinte. Não há equipas ganhadoras com treinadores medrosos; o paradigma da época foi o do jogo na luz com o Porto.

  

  

   Não dei crédito aos rumores que corriam, e ainda correm, sobre alguns aspetos da sua vida anterior ao seu consulado no Benfica; tive-os por conta da doentia e persistente guerra de descrédito movida ao nosso clube pelos rivais, com a cumplicidade de alguns setores políticos.

     Acreditei no seu projeto para o Benfica e defendi-o desde a primeira hora junto de alguns dos seus detratores, quer nas redes sociais, de onde saíram alguns dos anteriores e atuais candidatos opositores, quer junto da Direção do Correio da Manhã, e posso prova-lo.

   Reconheço que tem feito um trabalho fantástico à frente do clube e da SAD; nos domínios das infraestruturas, da formação, do ecletismo, do desenvolvimento económico, da expansão dos associados, da expansão e consolidação das casas, da criação da BTV e do Museu, do financiamento do clube e SAD, etc., inovando e dando o exemplo aos dirigentes de outros clubes. Considero-o um dos melhores presidentes de sempre do Benfica e do futebol nacional.

   Posto isto, à luz da realidade atual, impõe-se uma retrospetiva crítica ainda que sumária e discutível, com o propósito de descortinar os caminhos do futuro.

  

      

  

  

  

 

  

sábado, 3 de julho de 2021

Os Pobres (XII)

  Salazar e os pobres (Cont)

Paul Descamps (1842/1947), sociólogo belga que lecionou nas faculdades de Direito de Lisboa e Coimbra em 1935 fez um levantamento da sociedade portuguesa publicado em livro com o título “Le Portugal La Vie Sociale Actuelle”. Nele descreve uma família operária em Lisboa: homem, mulher e três filhos. Ele, serralheiro, ela mulher-a-dias, os filhos, aprendizes de serralheiro. Analfabetos os adultos, quase analfabetas as crianças. O quadro incluía bebedeiras diárias do pai seguidas de sovas à mulher. Não sendo pobres qualquer percalço os lançaria na pobreza (hoje é igual). No Alto Douro, Descamps encontrou famílias endividadas, com os homens bêbados e os filhos indisciplinados. Uma refeição típica no Minho incluía, toucinho, pão, batatas e sardinhas (nada mau). As crianças comiam o que calhava e bebiam vinho. A mortalidade infantil era de 200 por mil. (Um aspeto surpreendente face à narrativa atual é que Salazar foi decisivo na publicação do livro de Paul Descamps. Tal contradiz a ideia de que Salazar se empenhava em ocultar a miséria social do país. Nem tal seria possível, ainda que o quisesse.)

   Num episódio ocorrido, em 1939, numa escola primária de 2000 alunos em que um médico lhes perguntou o que pediriam a Salazar, um respondeu que seria “um bocado de pão”. (Mais uma vez, a ideia atual de que Salazar fomentava o analfabetismo, é desmentida pelos factos, a escola de 2000 alunos. Por outro lado, sendo, nesta época, a miséria geral uma realidade - Grande Depressão em 1929, Guerra Civil Espanhola e II GM no início - se um aluno em 2000 pedia pão, o cenário não era tão grave como parece à primeira impressão).

   Um inquérito realizado em Castelo Branco, pela mesma época, revelava uma realidade deprimente; Entre 16000 crianças do ensino primário, 3394 - 21 % -, alimentavam-se mal, 893 - 5,5 % - careciam de uma cirurgia e 512 - 3,2 % - eram retardadas. Porém, a realização do inquérito revelava que havia preocupação com o assunto e que havia um esforço real com a escolaridade da população. (Hoje, 80 anos depois, continua a haver em Portugal crianças com fome. Um inquérito realizado em 2018 na Alemanha concluiu que cerca de 20 % das crianças alemãs eram pobres, apesar dos apoios estatais). Noutro inquérito, realizado também em Castelo Branco, dava conta de agregados familiares atípicos, como o de uma criança que nunca conhecera o pai, cuja mãe desaparecera e que vivia com uma família vizinha - casal com dois filhos. A casa tinha duas divisões e dormiam todos no mesmo quarto, os adultos numa cama e todas as crianças numa tarimba. Mesmo com trabalho, viviam no limiar de pobreza. (Acho espantosa esta solidariedade hoje totalmente inverosímil; abandonam-se as pessoas à intervenção do Estado, que pode, ou não, ocorrer).

   Em 1938, um inglês radicado em Carrazeda de Anciães tinha uma visão curiosa sobre a condição da população local. Reconhecendo que havia pobreza relativamente aos hábitos de consumo da população londrina, que considerava essenciais bens supérfluos, dizia que os trasmontanos se ofenderiam se os considerassem pobres. E, de facto, tinham nas suas quintas tudo o de que necessitavam para o seu dia-a-dia e até para uma emergência. Água canalisada na cozinha não lhes fazia falta. (O comentário que MFM faz a seguir revela o seu empenho em destacar o lado mais negativo da sociedade daquela época: “Caso tivesse assentado arraiais no sul, como Mary McCarthy, teria encontrado gente a reivindicar, não água canalizada, mas uma côdea de pão”).

   Quer no Alentejo, onde predominava a grande propriedade, quer no Douro e Minho, onde a pequena propriedade era o padrão, eram os jornaleiros sem propriedade os mais pobres. Em Figueira de Castelo Rodrigo, em 1943, alimentação diária típica de um jornaleiro consistia em miga de pão de centeio antes de pegar ao trabalho - almoço -, pão seco com uma cebola crua ou queijo ou sardinha ardida ao jantar, e caldo de nabiças sem azeite à ceia. Em Dezembro e Janeiro, a situação piorava devido a falta de trabalho. Segundo o autor do relatório, José Crespo de Carvalho, a jorna de trabalho ia das 9 horas solares ao pôr-do-sol, com uma hora de intervalo ao meio-dia e, na Primavera e Verão, mais meia hora à tarde. O salário diário era de 10$00 e litro e meio litro de vinho para os homens e 5$00 secos para as mulheres. As mancebias eram raras e o analfabetismo situava-se nos 60 %.

   Em 1950, um relatório de Adelino Martins de Almeida sobre Casais do Douro, refere que os proprietários evitavam os trabalhadores locais, que consideravam desleixados e preguiçosos, apesar de miseráveis. Preferiam os trabalhadores beirões, sóbrios, cuidadosos, eficientes e submissos, contratando-os através do rogador. Este contratava os diversos profissionais da lavoura; vindimadores, podadores, apanhadores de azeitona, cavadores, etc. A roga da Quinta das Carvalhas para a vindima, por exemplo, contava com 300 pessoas. A alimentação era deplorável, constando de um caldo mais apropriado a suínos e uma sardinha salgada.

   Américo Gomes Lopes, num relatório de 1951 sobre a freguesia de Vila Nova de Tazem, considera que o nível de vida das populações locais, não sendo dos mais baixos no mundo rural era muito reduzido. O desregramento moral associado ao consumo de vinho era geral. Os trabalhadores recorriam ao vinho para enfrentarem a dureza do trabalho agrícola. Na freguesia havia 11 tabernas. O horário de trabalho era de sol a sol e os salários diários eram de 12 a 15 escudos para os homens e de 6 a 8 escudos para as mulheres. O padrão familiar incluía 3 a 4 filhos e cerca de 1/3 das famílias vivia mal. As mais pobres viviam em casebres de uma só divisão dormindo todos juntos sem cama decente, entre imundice. Aos domingos e dias santos alguns homens refugiavam-se nas tabernas, onde bebericavam e jogavam cartas, apesar de, muitas vezes, a família chorar de fome.

  Na freguesia do Fontelo, Viseu, a situação dos trabalhadores era menos dramática. João da Silva, em 1952, considera que era melhor do que a das populações vizinhas devido ao facto de possuírem alguma terra. Além dos salários, os trabalhadores tinham direito a alimentação. Antes de pegar, ao nascer do sol, havia o mata-bicho, que constava de figos secos e aguardente, às 9 horas, e pelas 1 ou 2 da tarde tinham almoço, o jantar consistia em caldo, sardinha e 2,5 decilitros de vinho.

   Em 1953, um relatório de Adalberto Navarro e Rosa, referia que, na freguesia de Cambres, a alimentação dos jornaleiros variava com a época: ao almoço, sardinha, oferecida pelo patrão, com broa, levada de casa pelo trabalhador; ao jantar, caldo, engrossado com farinha ou com feijão com massa temperada com um fio de azeite, e couves, seguido de uma tijela de arroz com feijão, bacalhau ou tomates. Um luxo tendo em conta o panorama geral.

   No caso de Alfândega da Fé, José Correia Barrigas de Azevedo, em 1955, registava que o trabalhador não vivia mal, era afável e económico, tinha amor à terra, era respeitador e, como ambição, aspirava apenas em deixar alguns bens aos filhos. (Apesar da notória melhoria das condições de vida destes trabalhadores, MFM, implicitamente, considera esta falta de ambição um estímulo negativo para os patrões).

    Em contraste, na freguesia de Beira Grande, em 1954, o regente agrícola Joaquim Ramos Barroso, dava conta do estado de pobreza dos trabalhadores, que nada mais tinham além da roupa que vestiam e que, mesmo os mais desafogados não colhiam alimentos suficientes para todo o ano. Os meses de Verão eram os menos maus. (Mais uma vez, MFM revela o propósito de sublinhar a miséria, ao referir que, em 1938, J. Gibbons, considerara que os trabalhadores da mesma freguesia viviam no paraíso, o que não corresponde à verdade; disse que tinham o essencial para viver sem o consumo supérfluo que se verificava em Londres).

   (Contrariamente à evidência do seu próprio trabalho, MFM, conclui que não havia preocupação com a pobreza por esta ser tradicional, afirmando que Salazar se limitava a manter a condição de pobreza dos trabalhadores e que esta tinha profundas raízes na sociedade. Nem os pobres tinham força para se insurgir, nem o operariado urbano tinha líderes para o fazer. Quanto à pequena burguesia, essa tinha ficado saturada com a turbulência da 1ª República. Só o PCP resistia - desde 1921, data da sua fundação. A verdade, explícita neste livro, é que as greves de Gouveia, do Porto, de Santo Tirso, do Alentejo, da Azambuja e de lisboa demonstraram precisamente o contrário, já para não falar da Revolta da Maria da Fonte. Por outro lado, os mencionados inquéritos nas escolas e os sucessivos relatórios oficiais dos Regentes Agrícolas, mostra que estava em curso a alfabetização do país e um levantamento sistemático da condição social dos trabalhadores. Mas basta consultar as estatísticas da época para constatar a redução da mortalidade infantil, do analfabetismo e o progresso económico, que ocorreu a partir de 1950. Por outro lado, a realidade social em Espanha, Inglaterra, e em toda a europa, na mesma época, não era muito diferente da de Portugal.)

(Cont.)

Fonte: Os Pobres de Maria Filomena Mónica

Peniche, 27 de Junho de 1921

António Barreto