Desporto

sábado, 19 de novembro de 2022

Memórias de Bordo

 

O Fim de uma Era (I)

 

   No dia e hora previstos - ao meio-dia do dia seguinte ao incidente verificado na Casa das Caldeiras, nos idos de 75 -, o “Vera Cruz”, com a caldeira de bombordo vante fora de serviço, largou amarras do cais de Alcântara para a sua derradeira viagem com destino a Kaohsiung, na ilha “Formosa” - atual “Taiwan” -, onde o aguardavam maçarico e rebarbadora, prontos a desfazê-lo em mil pedaços.

   Uma tripulação de contingência tinha sido escalada; o Comandante era o Manaças, homem grave e autoritário, de crânio liso; o imediato, para minha satisfação, era o meu querido tio João Catulo, homem cultíssimo e reservado; o 1º Piloto era o Bettencourt, amigo, cordial e descomplicado; o 2º Piloto era o Teles, ilhavense amigo que adorava a vida do mar, chegando a dizer, com ironia, que ainda lhe pagavam para fazer o que mais adorava; andar no mar.

   Na máquina tínhamos; a Chefe, o “Porfírio Rubirosa”- não recordo o nome próprio -, gracejo que corria entre nós pelo seu ar aprumado e enfatizado de que se destacava o inseparável boné, - uma alusão jocosamente carinhosa ao célebre playboy dominicano, que “arrastara a asa” à nossa Amália quando esta, nos seus tempos áureos, destruía corações pelo mundo; o 1º Maquinista era o Telmo, homem cordial, discreto e muito respeitado entre nós, os 2ºs Maquinistas eram, o Brito “maluco”, homem bom, um tanto exuberante e brincalhão, que nada tinha de maluco; o Pintassilgo, o nosso campeão de natação, sempre pedagógico, tranquilo e cordial; o Melo, calmo, eloquente e eficiente, de fisionomia típica de um sul-americano e o Abreu, o nosso “homem-golo”, amigo de longa data, sempre sereno e discreto. Além de mim, do grupo dos 3ºs faziam parte; o Airoso, grande amigo e companheiro desde os tempos do secundário, o voluntarioso Adalberto, de São Martinho do Porto; o Basso companheiro de peripécias por terras de Chiang Kai-Check, politicamente avançado, com quem aprendi o célebre tema de José Afonso “Os Vampiros”; e o irreverente e amigo Rogério, militante progressista - soube muito mais tarde - de barbichas à Fidel Castro.

    Dos restantes tripulantes não me recordo; marinheiros, cozinheiros, despenseiro, fogueiros, empregados de câmara, etc. Porém, lembro-me do azeiteiro - fazia não sei bem o quê nos compartimentos a vante da Casa das Caldeiras -, de alcunha o Polícia, um homem de Alfama - salvo-o-erro, constando-se cadastrado -, conversador de historietas e anedotas, instigador de um episódio engraçado já na reta final da viagem. Não havia artífice; os trabalhos de torno eram efetuados pelo Melo e pelo Abreu, que na adolescência tinha sido torneiro.

   Não tinha bem noção do que estava a suceder; na minha mente habitava uma suave tristeza pelo fim de um dos ícones mais destacados da nossa Marinha Mercante, a satisfação de ter sido escolhido para uma viagem histórica que se adivinhava particularmente dura - pela duração, além de contornar a África, teríamos que fazer a travessia do Índico, e pelo agravamento das condições térmicas, habitualmente severas na Casa da Máquina -, e a agradável espectativa de conhecer o “mundo novo”, da China insular.

      Tratava-se, sim, de uma medida de racionalização económica; perdido o monopólio do transporte marítimo garantido pelo Pacto Colonial desde o longínquo século XVI, a nossa frota mercante deixara de ser economicamente viável, num contexto de grande turbulência institucional, económica, social e política que o país atravessava.

    Por outro lado, os líderes da nova ordem política empenhavam-se em desmantelar um dos pilares identitários tradicionais dos portugueses; a sua vocação marítima, “o país de marinheiros, de naus, de esquadras e de frotas…”, que dera “novos mundos ao mundo”, cantado por António Nobre e Camões. Uma nova era implicava nova identidade e esta, segundo Eduardo Lourenço, não se ergue sem a destruição prévia da anterior.

(Continua)



Peniche, 19 de Novembro de 2022

António Barreto