Desporto

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

A greve dos camionistas



A Greve dos camionistas de materiais perigosos 

  
O desconhecimento dos detalhes da negociação em curso entre camionistas e seus patrões não impede uma análise crítica tendo em conta alguns princípios gerais e os factos que têm vindo a público.
   O serviço de transporte de matérias perigosas como os combustíveis líquidos, pelo risco que acarretam, tem de ser realizado por profissionais muito bem preparados e em atualização permanente. O risco de incidentes de inflamação e explosão é real; no carregamento, no transporte, na descarga, e no regresso. Além do risco de acidentes rodoviários, existe o de inflamação nos processos de carga e descarga associado à produção de corrente elétrica decorrente da fricção dos materiais; o arco voltaico produzido, em caso de ausência de escoamento à massa, pode provocar a ignição do combustível, tal como o uso nas proximidades, de telemóveis, isqueiros, rádios, etc. (tudo o que possa produzir um arco voltaico). Esvaziada a cisterna, o perigo de auto inflamação é maior, dado o conteúdo de vapores combustíveis no seu interior. Esvaziamento e enchimento deve ser feito com auxílio de gases inertes - dióxido de carbono ou azoto - de forma a impedir a mistura do oxigénio do ar - comburente - com o combustível -, e uma ligação de massa eficiente. Além dos motoristas, também os operadores dos postos de abastecimento devem estar preparados.  
   Compete aos Governos normalizar e fiscalizar as atividades económicas tanto ao nível dos técnicos como dos operadores. Se é certo que, muitas vezes, parece evidente ao comum cidadão, a falta de preparação dos técnicos, também é verdade que parece haver uma espécie de monopólio entre os operadores deste setor. Afinal é o que ocorre noutros setores vitais - como os do fornecimento de energia elétrica, de água, de seguros e da banca - em que, a liberalização imposta pela EU, paradoxalmente, conduziu ao agravamento das condições de vida da população devido ao recorrente, despudorado e consentido abuso de posição dominante, constitucionalmente proibido.

   É este quase-monopólio dos operadores que está na base do atual conflito em que estes, com a cumplicidade do Estado, impõem aos seus trabalhadores - camionistas - os seus termos para o exercício da atividade visando a minimizar os correspondentes encargos. Sendo, condicionado ao respeito da lei, um ato legítimo, conflitua com os interesses dos trabalhadores. De facto, estes ficam prejudicados nos apoios sociais na doença, no desemprego e nas pensões de reforma.
   Tal conduziu a um conflito de natureza laboral cuja irresolução ressoltou no extremar de posições das partes. Tratando-se dum setor estratégico do qual depende o abastecimento alimentar da população, o funcionamento dos hospitais, das forças de segurança, das forças armadas e, em geral, a produção de bens de toda a ordem, justifica o acompanhamento atento do Governo. Constatando-se o impasse negocial, há que recorrer à mediação e arbitragem através de modelos preferencialmente consensuais entre as partes.
   O recurso à greve, neste caso, não afetando o empregador a não ser marginalmente, atinge gravemente a população pondo em causa os seus direitos essenciais; ao trabalho, à subsistência alimentar, à saúde, ao lazer e à tranquilidade. Os grevistas usam a população como instrumento dissuasor da contraparte, provocando àqueles o máximo de danos possíveis e deixando estes praticamente incólumes.
   Convém ter presente que nas sociedades humanas modernas, cada indivíduo, carecendo do seu semelhante para viver, prescinde voluntariamente de parte dos seus direitos naturais, submetendo-se à lei - uma espécie de máximo divisor comum dos direito individuais -, democraticamente constituída; elaborada e aprovada com a participação de todos, diretamente ou por representação.
   Compete aos Governos, legitimamente constituídos, zelar pela proteção da população, garantindo o cumprimento da lei. É certo que temos assistido nas últimas décadas à omissão dos vários Governos no seu dever de a fazer cumprir, constituindo-se, implicitamente nalguns casos, cúmplices de agentes de irregularidades ou mesmo de atos criminosos, alguns de lesa-pátria, mas tal não justifica a exigência de demissão das suas obrigações fundamentais, por quem quer que seja que nisso tenha interesse.
   Tal porém não impede o cidadão de avaliar o comportamento de qualquer Governo relativamente a qualquer caso e de se pronunciar sobre ele.
   Vejo neste diferendo algumas vicissitudes das democracias partidárias; os principais agentes políticos, os partidos, agem, não de acordo com princípios previamente definidos e sufragados pela população, mas segundo os dividendos eleitorais que, na sua ótica, cada ato lhes pode proporcionar. Uma perversão dos princípios democráticos, pela alienação intrínseca de vínculo ao interesse nacional.
   É o que se verifica; o partido do Governo, com a proximidade das eleições legislativas, viu neste conflito uma oportunidade de reforçar e alargar a sua base eleitoral de apoio, adotando, à semelhança do caso da última greve dos professores, no exercício da governação, uma postura firme e autoritária perante os camionistas.
   Ao fazê-lo perdeu capacidade mediadora no conflito e, perante a permanente postura desafiadora daqueles, insiste numa posição de intransigência e ameaça, contribuindo para o agravamento da conjuntura.
   Acresce a perda de credibilidade resultante de contradições evidentes com posições políticas assumidas em casos similares precedentes e do facto de uma das partes - a dos empregadores -, ter negociadores com ligações diretas ao partido do Governo.
   Este é o momento de rever todo o setor reajustando-o em função das disfuncionalidades identificadas, revendo a regulamentação vigente, promovendo a concorrência efetiva no transporte dos combustíveis, estabelecendo critérios de formação e acompanhamento dos motoristas e promovendo, dentro do possível, a justiça, na distribuição do valor acrescentado no setor, recorrendo, se necessário, à elaboração de novas propostas de lei que a proporcionem, sem violar os critérios de equidade da sociedade em geral.
   As oposições cometeram o mesmo erro do Governo, as à sua esquerda, politicamente defensores dos trabalhadores contra a “opressão do patronato”, carentes do protagonismo conjuntural proporcionado pelo apoio ao Governo para se projetarem junto do eleitorado, ensaiam um discurso moderado de apoio aos motoristas, dispensando-se da habitual exuberância protestativa no espaço público, o que constitui um conforto para o Governo e os seus “tradicionais inimigos “os patrões”.
   Do lado oposto, um dos partidos, o maior, perdido no seu labirinto e assustado com o fracasso registado no caso dos professores, mantém uma postura ambígua, falsamente conciliadora, incapaz de assumir os seus princípios.
   O outro, o mais pequeno, não hesitou e, desde a primeira hora assumiu a posição do Governo, enfrentando as críticas inerentes. E é assim que deve ser; cada um, sem subterfúgios, mostrar o que defende.
  De resto, da plêiade de recentes partidos emergentes, há uma clara tendência de apoio aos grevistas, cada um deles procurando tirar o melhor partido eleitoral da conjuntura. Quanto à população, fortemente dividida, esta mesma tendência parece prevalecer.
  Convém porém não esquecer, que os alimentos e outros bens de primeira necessidade não nascem nas prateleiras dos supermercados.
   Tendo o Governo perdido credibilidade de mediação, torna-se forçoso recorrer a outra entidade - como por exemplo, o Regulador do setor - para o efeito, não restando àquele, outra opção senão a de fazer cumprir a lei, usando da moderação que se impõe e sem violar direitos legalmente consagrados dos eventuais infratores.
   Para todos, o interesse nacional deve ser a prioridade, preferencialmente, salvaguardando a dignidade dos envolvidos no conflito. É nestes casos que se exige a tal postura de estado a que recorrentemente se faz alusão, e que tem rareado nesta titubeante e paradoxal terceira república.
Peniche, 15 de Agosto de 2019
António Barreto*