Desporto

sábado, 28 de janeiro de 2023

Memórias de Bordo

 

Memórias de Bordo

O fim de uma era (6)

 

   Ficámos por Kaoshiung umas duas semanas; cidade tranquila, asseada, de amplos espaços, luminosa, de gente cordial, com enorme profusão de bicicletas.

Nas horas de ponta a via principal enchia-se com gente de bicicleta, aí uns dez metros de largura por cerca de 20 de profundidade. Nunca vira tal!

   Na primeira noite descobrimos um parque de diversões, tipo “Feira Popular”. Demos por lá uma volta, em grupo. Havia uma máquina de medir a intensidade dos socos; o campeão foi o Brito, com noventa e tal quilos.

Eu entretive-me com uma máquina de aviões de guerra. Parecia que pilotava um deles, em combate; fazia explodir os aviões inimigos com rajadas de metralhadora. Era uma sensação ótima. Fiquei tão entusiasmado que me custou sair de lá.

   Outra noite fomos ao bowling, eu e o Airoso. Num 1º ou 2º andar; tinha uma boa dúzia de pistas, de madeira castanha clara, envernizada, cada uma limitada por duas pequenas valas em meia cana, encastradas, onde repousavam umas bolas negras com orifício. Ao fundo umas 25 “garrafinhas” brancas, dispostas em triângulo, com o vértice do lado da pista. Nunca vira uma.

   Duas raparigas viram-nos indecisos e, em bom inglês, explicaram-nos o que fazer. Pagámos no balcão, levantámos a chave de uma das pistas, calçámos as sapatilhas, que retirámos do cacifo próximo, e lá fomos jogar.

   As jovens chinesas jogavam numa pista ao lado; acompanharam-nos, explicando-nos o processo; como segurar a bola e derrubar as “garrafas”.

 Era preciso acertar na “garrafa” do vértice; esta, ao cair, derrubaria as restantes. - E quem volta a pôr as garrafas de pé? - Perguntei, intrigado. - É a máquina; põe as garrafas e devolve a bola. Respondeu uma delas. - Fantástico!- Pensei, admirado.

   Ao fim de algumas atabalhoadas tentativas - o raio da bola teimava em fugir para os lados -, começámos a acertar com aquilo. Elas, ali ao lado, assistiam, rindo-se e aplaudindo; uma delas de camisola justa, branca, com relevos longitudinais, gordinha, a outra, de blusa avermelhada mais magra.

   Não sei de quem foi a iniciativa, julgo que delas, formámos duas equipas e ficámos a jogar na mesma pista. Essa noite e nas seguintes. Habituámo-nos àquilo; o ambiente era agradável, com música, e a companhia também.

   Demos um passeio, de camioneta pelas redondezas. Tenho uma vaga ideia de uma estrada na encosta de uma colina, com um rio por baixo, terra avermelhada e umas manchas verdes aqui e ali.

   A comida chinesa não era recomendável; mais tarde perceberíamos porquê. No hotel indicaram-nos um restaurante com comida para europeus. Lá fomos e, apesar dos talheres disponibilizados, lá aprendemos a comer, atabalhoadamente no meu caso, com os tais pauzinhos.

   Numa manhã ensolarada, eu e o Basso decidimo-nos por um passeio, errático, pela cidade. Passámos por um mercado ao ar livre. Tinham-nos dito para termos cuidado, que era chocante. Aproximámo-nos, ficando-nos pela periferia.

   Nas muitas barracas abertas viam-se gaiolas de madeira ou ferro, com animais dentro; os répteis abundavam, vivos, nas gaiolas, ou mortos, pendurados dos barrotes das coberturas; cobras, lagartos, aracnídeos, etc. Gente deambulava pelo interior. “Raspámo-nos” dali mais que depressa.

   Mais à frente cruzámo-nos com duas raparigas. Não sei bem como foi mas convidámo-las a vir connosco. Não falavam inglês; riam-se muito e diziam, repetidamente, “papasan”.

Nós olhávamos um para o outro perguntando-nos o significado daquilo. Não conhecíamos o termo. Elas foram caminhando, fazendo-nos sinal. Fomos atrás delas, aí uns cinquenta metros, até uma casa junto a um largo amplo, ajardinado. Apontaram-nos um sujeito, europeu, ainda novo, bem-parecido, algo bexigoso, sentado à entrada, no interior, e disseram: “papasan”.

Olhámo-nos, eu e o Basso, percebemos tudo, mas não nos desmanchámos. Dissemos ao “papasan” que queríamos levar as raparigas a passear. - Just for walking? - Yes, just for walking. - Respondemos, meio preocupados, mas fazendo um esforço para não desatarmos a rir.

O “papasan”, depois de meditar um pouco disse: - Four dollars; but nothing else! OK? Just for walking!- Ok, just for walking. – Respondemos, entregando os quatro dólares cada um, meio arrependidos, e prosseguindo o passeio com as miúdas.

   Tudo correu como combinado, durante, talvez, duas horas. Entregámos as miúdas, sentámo-nos no lancil do passeio e fartámo-nos de rir. É que nós só queríamos, mesmo, passear.



(Continua)

 

  Peniche, 28 de Janeiro de 2023

António Barreto

Competitividade, Produtividade, Razão de Troca e Liberdade

 

4-Produtividade e Razão de Troca

 

    A quarta Revolução Industrial está condenada ao fracasso. Ao contrário das anteriores, propulsionadas pela expansão dos mercados internacionais, esta está a ser imposta por via administrativa; é como forçar um rio a escoar fora do seu leito natural. Escoará, sim, mas com elevados custos.

   Produtividade e Competitividade devem ser associados à Razão de Troca, para que não suceda algo semelhante ao que decorreu do Tratado de Methuen - também designado por “Tratado de Panos e Vinhos”, tão elogiado por David Ricardo por ser benéfico para ambas as partes. Era, sim, mas enquanto a Inglaterra garantia a produtividade de 1/5, a de Portugal ficava-se por 1/3. Portugal progredia mas empobrecia face à Inglaterra.

   Julgo que este fenómeno se verifica atualmente. Os constrangimentos normativos da UE à produção industrial e às transações internacionais, associados aos atavismos económico-ideológicos dos governos nacionais, cada vez mais viciados na dívida, nas transferências comunitárias, nos maus investimentos ou na ausência deles, priorizando a despesa pública, são garantia de fracasso.

   Haverá uns fenómenos transitórios de aparente desafogo, haverá alguns grupos de privilegiados, normalmente associados a corporações com poder disruptivo, ou a partidos, mas o país como um todo, inevitavelmente, ir-se-á atrasando face aos seus congéneres.

   Gostaria de dizer aos governos, de Portugal e da Comissão Europeia que nos deixem viver! Preparem os caminhos, abram todas as portas, informem, formem, financiem, mostrem que são confiáveis, que estão com as populações, não tenham medo da nossa liberdade.

   Cada um caminhará pelo seu próprio pé, conforme o seu tempo, o seu ritmo, fazendo o que sabe, por todo o país, por toda a Europa, realizando os seus sonhos, diminutos ou grandiosos, sendo feliz, cada um à sua maneira, o mercado fará o resto, selecionando os que forem, efetivamente melhores; quem tiver unhas que toque guitarra”.




Peniche, 25 de Janeiro de 2023

António Barreto

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Competitividade, Produtividade, Razão de Troca e Liberdade

 

3-Centralismo e Exclusão

   

   De há umas décadas a esta parte, especialmente desde a adesão de Portugal à União Europeia (UE), têm vindo a ser impostas aos agentes económicos, um conjunto de medidas gerais de fomento da produtividade, forçando a reestruturação empresarial.

   Essas medidas, em geral, passam por impor às empresas, de várias formas, a renovação tecnológica e a qualificação dos ativos.

   Se por um lado induzem ganhos de produtividade em grupos restritos, por outro são profundamente injustas e imorais; suprimem direitos fundamentais dos cidadãos - a liberdade económica e profissional -, e promovem a destruição das economias locais, com o consequente e trágico despovoamento do território.

      O critério exclusivo da produtividade tem por objeto a extinção das micro e pequenas empresas, a criação de reserva de mercado para as de maior intensidade de capital - maior produtividade, melhores salários e maior contributo fiscal -, e a exclusão dos trabalhadores menos produtivos; os menos qualificados e mais velhos.

   Parte das pessoas excluídas fica refém do assistencialismo, enquanto o despovoamento do interior potencia catástrofes territoriais e sociais; incêndios, solidão, e abandono.

   Os encargos públicos decorrentes, associados à voracidade das clientelas partidárias, absorve os ganhos de produtividade da economia. Um ciclo vicioso que se irá prolongando até à inevitável rotura económica, social e política.



Peniche, 25 de Janeiro de 2023

António Barreto

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Competitividade, Produtividade, Razão de Troca e Liberdade

 

2-Produtividade, Estado e Povoamento    

  

   Economia mista é o caminho; economia de alto valor acrescentado complementada com economia tradicional, privilegiando o povoamento do território.

   É a produtividade que determina os salários, numa relação direta, não a competitividade. Pode ser-se competitivo e pobre, como na China, na Índia, no Bangladesh, etc.

   Na tecnologia está a economia de alto valor acrescentado e a elevada produtividade; esta carece de capital, recursos humanos qualificados e competitividade fiscal e administrativa.

   O Estado deve fazer a sua parte; incentivar a captação de capital e a formação dos recursos humanos, reduzir os custos de contexto - eliminando redundâncias, adotando critérios de avaliação interna confiáveis - simplificar processos administrativos, tornando a Administração Pública mais eficiente - revogando leis e procedimentos inúteis -, ajustar a fiscalidade interna à dos mercados concorrentes, tornar a justiça eficaz, acompanhar os agentes económicos, coadjuvando, abandonando o preconceito persecutório, demagógico e pateta aos empresários e empresas, dando o exemplo de probidade e promovendo, efetivamente, a liberdade económica.

     É necessário que o Governo se constitua numa plataforma agregadora e incentivadora, que abandone as bandeiras ideológicas, privilegiando os interesses do país em vez dos do partido no governo, e chame a si os especialistas em economia internacional, os detentores de capital, individuais ou institucionais, os especialistas em formação, as escolas, apresente-lhes um objetivo económico e social a médio-prazo - 10 anos - perguntando-lhes; o que podemos fazer para lá chegar?


 

Peniche, 25 de Janeiro de 2023

António Barreto

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Competitividade, Produtividade, Razão de Troca e Liberdade

 

1-Competitividade

   A economia chinesa é altamente competitiva. É esse tipo de competitividade que queremos para Portugal? Eu não!

   Antes de mais porque, na China, não há liberdade política nem económica, nem profissional, nem social. E, para mim, a Liberdade não tem preço; não há dinheiro ou glória que a pague.

   A competitividade chinesa, que catapultou o PIB do país a segundo do mundo - 23t de USD, cerca de 75 % do PIB americano, 27t USD, e 115% do PIB agregado da EU, 15t USD -, resulta da repressão económica dos trabalhadores, a quem a administração pública impõe salários exíguos e condições laborais indignas, negando-lhes qualquer veleidade reivindicativa.

   Convivi em África, não há não muito tempo, com trabalhadores chineses, vi como a tecnologia chinesa alastra pelo continente e vi a condição de carência económica daqueles, chegando, com os meus colegas, a pagar-lhes refeições e entradas em recintos turísticos; nem um cêntimo tinham nos bolsos, para seu livre gasto.

   Não é este tipo de competitividade que quero para Portugal! Defendo competitividade sim, mas com dignidade, com direitos - como não se cansam de dizer os “nossos” comunistas.

   Na China pratica-se capitalismo de Estado; este apropria-se da mais-valia e entrega a maior parte aos membros do partido, à administração pública, às forças de segurança e às forças armadas.

   Ao povo, reserva o indispensável para que continue a produzir e alimentar os sonhos imperiais dos líderes do partido-religião.

   Aos dissidentes reserva os campos de reeducação, onde se reconverterão ou acabarão mortos; lentamente, sob tortura, ou com um solitário tiro na nuca, numa qualquer catacumba, ou em inóspita floresta.

   Mais uma vez Marx se enganou; na China, onde se pratica capitalismo de Estado, os proletários oprimidos não se revoltam, não por falta de vontade, mas por falta de força. No Ocidente - capitalismo democrático -, os proletários também não se revoltam, neste caso porque partilham da mais-valia que ajudam a criar, porque têm capacidade reivindicativa e liberdade para sonhar, para decidir o seu futuro e o dos seus filhos ou até para sair do país; são livres.

 


Peniche, 25 de Janeiro de 2023

António Barreto

sábado, 21 de janeiro de 2023

Memórias de Bordo

 

O fim de uma era (5)


   - Isto parece um campo de concentração! - Disse para comigo. Navio parado, falta de ocupação - só a caldeira auxiliar e o gerador de emergência estavam ativos -, data de desembarque indeterminada. Foi a fase mais penosa da viagem.

   Num belo dia alguém anunciou; - Vamos para terra; vamos parar o gerador. Encontramo-nos lá; o Melo vai “apertar-lhe o pescoço”. Reunimo-nos na casa do gerador de emergência; o pessoal da máquina e creio que alguns colegas da ponte. Naquela sala integralmente pintada de ocre amarelo, paredes, tubagens e máquina, fez-se, espontaneamente, um momento de silêncio, até que, finalmente, o Melo puxou a alavanca do combustível. E o Vera Cruz “morreu”! Em pouco tempo seria transformado num monte de sucata. Vimo-lo mais tarde, esquartejado, quando fomos entregar o Santa Maria; passámos por cima dos seus destroços.

   Um reboque aproximou o navio do cais. Fomos para o convés inferior, coberto, donde saltaríamos para a lancha que se aproximara por bombordo. Não sei porque carga de água, fui o último! A lancha acabara de arrancar quando saltei; medi mal a distância e caí ao mar, de pé! Vestido e calçado!

   De imediato comecei a nadar para me manter à tona, mas ia com demasiada velocidade; resolvi deixar-me ir até pairar. Enquanto mergulhava ia pensando se não estariam por ali cabos ou redes que me atrapalhassem a vida. Tive receio. Quando estabilizei, talvez a quatro ou cinco metros da superfície - não sei - fiquei tranquilo; - não houve incidentes a descer também não haverá a subir. - Pensei, contente, iniciando a ascensão com braçadas enérgicas e sincopadas, lembrando-me que o meu pai caíra ao mar por diversas vezes, uma delas na Gronelândia, com tubarões à mistura, bicho que não haveria por ali.   

   Devo ter emergido com algum aparato - “vinha lançado das profundezas” - e dei logo de caras com a lancha, parada, uns dez metros à minha frente. Alguns colegas, entre os eles o “pintas”, debruçados sobre a borda, perscrutavam a água com ar de apreensão.  Achei bizarro, apontei à lancha, e fiz os cerca de dez metros que me separavam dela no meu melhor crawl de praia. Içaram-me para bordo e fartámo-nos todos de rir. Afinal tudo não passara de um divertido episódio.

   E foi assim, encharcado “como um pinto”, que fiz a minha “exuberante” entrada no hotel, para gáudio dos camaras e espanto dos presentes.

   Nessa noite houve festa. Num hotel próximo fizeram-nos uma espécie de receção. Salão espaçoso, num andar elevado. Dois ou três figurões sentados ao extenso balcão castanho-escuro, de bancos altos, redondos, e uma boa “mão-cheia” de coloridas e divertidas raparigas.

   A consagração dos “artistas” chegara; em primeiro lugar saiu uma secção de fados onde sobressaiu a guitarra; ele foi o “Trem Desmantelado”, mais o “Embuçado”, e a “Fragata”, o “Povo que Lavas no Rio”, “Aquela Feia” e outros mais. Seguiu-se a secção pop; “I Can´t Keep it In”, “Wild World”, “Father and son” , “Hart of Gold”, “Harvest” , “Blowin’In the Wind”, “Yelow River”, “Rose Garden”; umas espanholadas; “La Bamba”, “Isabel”; umas coladeras; “Nh´tone escaderode”, “Toni Pama”; “Nh’a Camisa Novo”; uma brasileira, “Você”; e do “nosso” Paco Bandeira  “Oh Elvas, Oh Elvas”.

   Estava toda a gente bem-disposta e todos foram generosos nos aplausos; no caso dos chineses (as) tratava-se, sobretudo, de cortesia, e a “rapaziada”, pronta para uma qualquer catarse, aplaudiria o que calhasse. Contudo, os “artistas” ficaram satisfeitos, o que é sempre bom sinal.

   Desapareceram os “figurões” ficaram as raparigas para nossa satisfação. Ficámos por ali em alegre e divertido convívio, até nos recolhermos aos respetivos quartos, já bem pela noite dentro.

PS:

- Não me recordo se os temas que tocámos foram mesmo aqueles; era o reportório que tocava na ocasião; podem ter ficado de fora um ou outro, e é possível que tenhamos tocado alguns que não recordo.

- A foto é de uma pequena tertúlia realizada em Peniche nos anos 80 com os meus amigos e amigas da Docapesca, na tasca do Texugo, cujo dono, amigo de longa data, aparece em outras fotos do mesmo evento.


   
(Continua)

Peniche, 18 de Janeiro de 2023

António Barreto

sábado, 14 de janeiro de 2023

Memórias de Bordo

 

Memórias de Bordo IV

O Fim de uma era (4)

  

   Zarpámos nessa mesma tarde rumo a Madagascar onde o navio foi abastecer de combustível. Antsiranana, porto situado no extremo setentrional da ilha, foi o destino, (salvo-o-erro).

   Estava mau tempo. O mar, anteriormente azul, era agora verde-esmeralda. No trajeto cruzámo-nos com um cargueiro à deriva. Ao fim de uma ou duas horas, em que nos mantivemos por ali, a pairar, passámos-lhe um cabo e iniciámos o reboque.

   Costumava ir para a ré observar o navio; a proa branca, alta, não muito lançada, tinha uma certa imponência. Uma suave cachoeira esverdeada, com rendilhados brancos, transfigurando-se a cada instante, enfeitava-lhe a base. Tinha nome esquisito. Durou uns dias, quatro ou cinco. Tive pena quando, já perto de terra, transferimos o reboque. Habituara-me a vê-lo diariamente.

   No porto tivemos permissão para uma curta visita à cidade. Havia por lá uma feira de artesanato. - Basso! vamos procurar um táxi. – Não há; só há riquexós, olha ali. – Não queria acreditar e continuei a procurar um táxi; nada! – Vamos a pé! – disse eu. – São quase vinte quilómetros! – Foda-se! Vamos para bordo! – Vamos à feira; damos um dinheirinho a ganhar ao homem; é assim que ganha a vida. - Contrafeito, voltei a olhar para os riquexós, talvez dois. O operador era um meia-leca, tipo filipino, de tanga, ou calções. Lá fomos. Pagámos-lhe, salvo-o-erro, dez dólares cada. Sentia-me desconfortável, não gostava daquilo. Durante cerca de meia hora, o “meia-leca” puxou o riquexó numa impressionante cadência, talvez da ordem dos 20 Km/h. – Que grande fundista! E a puxar uma carroça com dois marmanjos dentro! – Em competições oficiais fazia miséria!

  Chegados na feira, ficou o estafeta à nossa espera e demos uma volta pelas barracas de vasto e rico artesanato. Comprámos umas peças; eu, um escudo com duas lanças em madeira negra - que ainda guardo -, e regressámos a “casa”.

   Largámos para a derradeira etapa do nosso Vera Cruz; a travessia do Índico. Voltámos à rotina diária. Passados quatro ou cinco dias a temperatura exterior foi aumentando até atingir cerca de 40 a 45 o C. A Casa das Caldeiras, transformou-se numa espécie de fornalha, e a tarefa da “injeção”, uma tortura a que não nos furtávamos apesar de, nalgumas zonas, suportarmos, temporariamente - por 5 a 10 minutos - temperaturas da ordem dos 50 a 55 o C.

   A certa altura ocorreu algo extraordinário; o pôr-do-sol! Começava cedo, cinco, seis horas da tarde, e durava horas, duas ou três; o céu tingia-se, integralmente, de tons avermelhados, laranjas amarelos! Nunca vira nada assim! Costumava ir para a amurada do convés assistir a este maravilhoso espetáculo da natureza de que ainda guardo memória visual.

      Num quarto noturno, chega-se, sorrateiro, o azeiteiro, o “Polícia”, alegado cadastrado, que, constou-se, cumprira pena no Limoeiro: - “Sô” terceiro; sabe o que é isto? – Uma folha de serra. – Respondi. – Não! é uma gazua! – Uma gazua? – Sim, serve para abrir portas. – Disse, num fôlego, o eletricista; o das “televisões” do Infante. - Fantástico! Devia haver uma em todos os navios. - Disse eu. – E há, mas esta é especial, além de portas abre cadeados, faz-se assim, fez o gesto, dá-se um jeitinho e já está! Pega-se numa folha de serra de aço rápido, parte-se ao meio e, na mó, faz-se este ângulo, assim, “tá” a ver? – Disse o Polícia. – Olhe, ofereço-lha! – Obrigado, ponha aí junto ao telefone. – Disse eu, por cortesia, sem saber o que fazer àquilo.

   Num dos quartos seguintes, já no último terço da etapa, voltou a chegar-se o “Polícia”. – “Sô” terceiro, esta noite não há nada p’ra gente! - Nos paquetes era costume haver uma espécie de merenda a meio dos quartos, variava com o navio; gelado de dia, febras à noite, no caso do Infante, no Vera Cruz não me recordo. Prosseguiu: - Se o “sô” terceiro quisesse podíamos fazer uma omelete. – Uma omelete? E como fazíamos isso? – O “sô” terceiro ia à câmara dos mantimentos e trazia uns ovos. – Eh lá! Isso não é grande ideia! Os ovos fazem falta ao Despenseiro. – Disse eu, pensando que ele estava a gracejar. – Não fazem nada; estão lá muitos, não conseguimos comê-los todos. Ficam cá para os chinocas. Isso é que era bom!

– A resposta fez-me pensar; a viagem estava no fim…podia ir lá ver a reserva de ovos. – Mesmo que haja ovos não temos onde fazer a omeleta! – Temos, temos, é na válvula de saída de vapor da caldeira de estibordo (uma válvula aí com 0,5 m de diâmetro e a cerca de 120 o C). Já está tudo pronto, a tampa da válvula está a rebrilhar, o Zé de Alfeizerão - um dos fogueiros - tratou de tudo; só faltam os ovos. – Então e como é que abro a porta da câmara? – Com a “gazua” que lhe ofereci! – Ah, grande malandro!- disse para mim, pegando na “gazua”, junto do telefone e avançando para a câmara dos mantimentos, descrente nas “virtudes” da “coisa”. Meti a ponta da folha na ranhura do cadeado, rodei ligeiramente para a direita e, clique! O cadeado abriu! – Ai aquele filho da mãe; se calhar é mesmo verdade a estória do Limoeiro!- Disse para comigo.

   Abri a porta e entrei. Mesmo em frente uma resma aí de uma dúzia de fiadas de ovos. - Sempre é verdade! Uma caixa a menos não faz falta nenhuma; deixa-me cá levar duas, senão não chega para todos. – Olha os chinocas, hã! Tá bem, tá! – Eh, lá! Será que aquilo ali é o que estou a pensar? - Era! Vinhinho verdinho branquinho, Casal Garcia ou coisa parecida! – Venham para cá duas, que isto às secas não dá nada! – Vinha a sair quando me deparei com uma bateria de chouriços suspensa do teto. Alto aí, que omeletes lisas não matam a fome; venham para cá duas.

   Entreguei a “carga” ao “Polícia” que, com o fogueiro, foi preparar a tão ansiada omeleta. E não é que, contra a minha espectativa, saiu perfeita? Saboreada a deliciosa refeição, com a frescura do verdinho ainda no paladar, saciados, prosseguimos as nossas tarefas de condução das bravateantes, impassíveis e cúmplices caldeiras.

   Nos dias seguintes, andou o Despenseiro, esbaforido, a investigar a causa do misterioso “desaparecimento” dos ovos. Moita-carrasco; ninguém se desmanchou e as caldeiras não falam. Nem demos pela falta dos ovos nas ementas.

   Dias depois chegámos a Kaohsiung. Ficámos ao largo durante, talvez, duas semanas. Não faltaram mantimentos.


Artesanato de Madagascar

Porto de Antsiranama

Artesanato de Madagascar

(Continua)

PS:

o   - Não estou certo se o porto foi o de Antsiranana.

o   - O Zé de Alfeizerão é nome fictício; não recordo quem foi o chef do quarto; se      um dos fogueiros, se o electricista.

o   - O “Polícia” está numa das fotos que em tempos publiquei, à porta do Majestic.

Peniche, 14 de Janeiro de 2023

António Barreto

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

A Invasão em Brasília

 

A Invasão dos Edifícios dos Três poderes em Brasília

 

   A invasão que se verificou no dia 8 de Janeiro de 2023, dos edifícios do Governo, do Congresso e do Senado, por alegados apoiantes de Jair Bolsonaro, em que foi destruído diverso património mobiliário e artístico, tem causas próximas, intermédias e remotas.

   A causa remota e primordial consistiu na anulação da sentença de condenação de Lula da Silva, com restituição dos respetivos direitos políticos. A fundamentação apresentada foi a da inadequação do foro do Tribunal de Primeira Instância, onde todos os crimes foram provados, tal como nos dois Tribunais superiores subsequentes.

   Lula da Silva continua arguido e deverá ser julgado novamente, se não ocorrer prescrição, cujo prazo, por sinal e no seu caso devido à idade, é reduzido para metade. Ainda assim, só depois de findo o mandato tal julgamento poderá ocorrer.

   Sucede que o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Edson Fachin, responsável pela anulação, foi nomeado em 2015, para o cargo, por Dilma Rousself, sucessora de Lula da Silva, com o apoio deste e do partido de ambos, o Partido dos Trabalhadores (PT).

   Isto não caiu bem na população em geral e nos apoiantes de Bolsonaro em particular. Estes passaram a ver o STF não como o guardião da Constituição, politicamente, equidistante, mas como uma instituição vinculada ao PT. Esta perceção foi reforçada pelo facto de a maioria dos Ministros do STF terem sido nomeados, três por Lula da Silva; Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia e Dias Toffoli; quatro por Dilma Rousself; Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso e Edson Fachin. Dos restantes, Nunes Marques e André Mendonça, foram nomeados por Bolsonaro; Gilmar Mendes Fernando Henrique Cardoso e Alexandre de Morais por Michel Temer. Estes dois últimos Presidentes, politicamente simpatizantes do PT.

   Como se vê, os ministros do STF afetos ao PT estão em maioria e o seu comportamento em todo o mandato de Bolsonaro caracterizou-se por uma hostilidade permanente e sistemática a este, ao seu Governo e aos seus apoiantes. São as causas intermédias.

 A lista é extensa; veja-se aqui: https://revistaoeste.com/login/?redirect_to=https://revistaoeste.com/politica/stf-ja-tomou-123-medidas-contra-bolsonaro-mostra-levantamento;

e aqui:

https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/stf-tse-quais-sao-as-acoes-e-inqueritos-nas-duas-cortes-podem-afetar-a-campanha-de-bolsonaro/; e aqui: https://www.metropoles.com/brasil/veja-as-ocasioes-em-que-o-stf-barrou-decisoes-do-governo-bolsonaro.

     Juristas conceituados, de que se destaca Ives Gandra Martins consideram que o STF extravasou as suas prerrogativas legais, invadindo áreas da competência dos poderes legislativo e executivo, quebrando a regra fundamental do regime democrático, que consiste no equilíbrio dos três poderes, Legislativo, Executivo e Judicial.

Ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=JmVMspeFlm4.

   Ao ativismo do STF juntou-se o da Comunicação Social dominante, com destaque para o Folha de São Paulo e a TV Globo; ignorando as realizações positivas do executivo, vedando o acesso à divulgação das suas ideias e dos seus apoiantes, estigmatizando-os politicamente, e fazendo o contrário ao seu adversário e respetivos apoiantes. Há mesmo um vídeo, publicado nas redes sociais, com funcionários da TV Globo, a felicitarem-se efusivamente com o resultado eleitoral.

   As razões próximas prendem-se com a terminante recusa do Supremo Tribunal Eleitoral (STE) em fornecer os códigos fonte das urnas eleitorais para confirmação dos resultados da contenda. Tal fortaleceu a ideia de que parte das urnas teriam sido manipuladas, seja pela anterior recusa pelo STE do uso do voto impresso, seja pela anormalidade dos resultados detetados por auditores internos e especialistas externos.

   Mas não só; o ativismo politico-eleitoral do STF e do STE - que partilham o mesmo Presidente, Alexandre de Morais - ultrapassou tudo o que uma democracia idónea consente. Proibiram aos apoiantes de Bolsonaro, uso de termos e expressões pejorativas a Lula, ainda que verdadeiras; mas não o inverso. Congelaram as receitas dos jornalistas livres ou simples ativistas favoráveis a Bolsonaro, tendo alguns que se exilar para não serem presos. Congelaram as contas bancarias de vários empresários, alegados financiadores da campanha deste. Prenderam artistas, agricultores, camionistas e até Senadores da República - apesar do estatuto de impunidade destes -, sem processo formal, sem direito de defesa e mesmo sem facultar às vítimas, o devido acesso processo legal. O Presidente do STF, qual imperador romano, pôs e dispôs a seu belo prazer, sem que fosse acionado qualquer dispositivo legal para restabelecimento da normalidade democrática. O Presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, bloqueou, todos os pedidos de impedimento de vários senadores, de que se destaca Marcel Van Hatten.

   O resultado eleitoral foi equilibrado, 50,9 % para Lula e 49,1 % para Bolsonaro. A dúvida é pertinente, e o STE teria evitado os desacatos se, em devido tempo, tivesse facultado os códigos-fonte das urnas. Ao recusá-lo, legitimou a dúvida e a indignação, razão pela qual, o considero principal responsável pelo ocorrido, tal como ao Presidente do Congresso.

   Por outro lado, competia às autoridades federais tomar providências, atempadamente, para impedir a invasão, uma vez que, segundo consta, sabiam que iria ocorrer. Caso se tenha verificado a presença de infiltrados do PT instigadores dos atos de vandalismo, justifica-se a ideia de que a invasão foi prevista e desejada pelos apoiantes de Lula, como legitimação da perseguição e prisão, indiscriminada e bárbara, dos manifestantes, que se verifica.

   Merece referência, a postura de um comentador político português, de seu nome João Miguel Tavares, que, numa crónica do Público de 10 de Janeiro de 2023, alegadamente, defende que deveriam ter sido usados meios letais para conter a invasão! Ou seja, se bem entendi para o, geralmente moderado, equilibrado, ponderado e, supostamente culto comentador, as forças de segurança deveriam ter morto a tiro os manifestantes. Assim. Sumariamente. Milhares! Homens, mulheres e crianças! Um caso que nos ajuda a perceber a perigosa derrapagem que o regime democrático português sofreu desde 75 e a baixa estirpe de alguns comentadores políticos da nossa praça.

   Finalmente refiro a Constituição da República Portuguesa que, numa das suas cláusulas, confere ao cidadão o direito de usar a força quando estão em causa os seus direitos fundamentais legalmente consagrados e o Estado não cumpre o dever de os garantir. E é esta a fundamentação dos que defendem o direito dos cidadãos ao uso de armas de defesa.


Alexandre de Morais - Presidente do STE e do STF

Peniche, 12 de Janeiro de 2023

António Barreto

domingo, 8 de janeiro de 2023

O Sininho do Pintinho

 

O sininho do pintinho

 

 
Estava ufano o pintinho
Tocando o alegre sininho
No átrio da comissão,
Sem vestígios de ladrão! 

Embevecidos anjinhos
Olhando conchegadinhos
Ouviam com emoção
Não vislumbrando ladrão! 

Bailava o feliz badalinho
Afagando com  carinho
A saia, sem dar trovão
Nem incomodar ladrão! 
 
Todos muito contentinhos
Mostram aos humildezinhos
Tão ditosa transformação,
Desaparecendo o ladrão! 

Na caixa muitos eurinhos
Pagam muitos cafezinhos;
Que grande satisfação,
Pois não se avista ladrão!

Ignoram os amiguinhos
Que tenebrosos caminhos
Não iludem o povão,
Que sabe quem é o ladrão! 

Esquecem os confradinhos,
Com hipocritas sorrisinhos,
Que os que ficam ao portão, 
São tão bons como o ladrão!  
 
Abramos nossos olhinhos
Limpemos os ouvidinhos
Ao som da bela canção,
Mas sem esquecer o ladrão!
Peniche, 08 de Janeiro de 2023
António Barreto

sábado, 7 de janeiro de 2023

Memória de Bordo

 

O Fim de uma era (3)

 

       Os dias seguiam pachorrentos a 16 a 18 nós, por aí. Nos portos não havia ordem de sair. O tempo de permanência era o suficiente para a manobra da carga. Luanda, Lobito - talvez Moçâmedes, Cape Town e Durban (não estou certo) -, Lourenço Marques e Beira.

   Desta vez não tive oportunidade de dar umas braçadas nas águas calmas, translúcidas e cálidas das praias da Barracuda, em Luanda, da Restinga no Lobito, da baía de Moçâmedes, nem na piscina do Ferroviário, em Lourenço Marques. Na passagem do Cabo, o avistamento da ilha de Robben - onde Nelson Mandela estava preso -, e da Table Mountain, era sempre um acontecimento.

   Na Beira desembarcou o imediato, meu tio João. A turbulência que se vivia nos portos ultramarinos, com greves múltiplas e sucessivas, à semelhança do que sucedia na Metrópole, impedia qualquer previsão fiável, suposta causa de dissidência com o Comandante. Tive pena, gostava de o ver por ali. O 1º Piloto Bettencourt, homem cordial e popular, subiu a imediato.

   Da Beira seguimos para a Ilha de Moçambique. Desta vez tivemos permissão para ir a terra - por pouco tempo - talvez por anteceder a longa travessia do Índico. Talvez o Comandante Manaças nos quisesse premiar pelos cerca de 30 dias antecedentes, “diretos”.

   A ilha, que teve importância estratégica na rota comercial de Portugal no Índico, nos séculos XV e XVI, fora alvo das investidas dos holandeses no século XVII - destaque para os cercos de 1607 e 1608 -, onde, por essa época, se instalaram os Jesuítas e se deu início ao comércio de escravos para o Brasil, entrou em declínio no século XIX após a independência desta colónia - 1822 - e a proibição da escravatura em 1837.    

    Todo um acervo monumental atesta a sua importância e a presença lusitana; a Fortaleza de São Sebastião, o Forte de São Lourenço, o Fortim de Santo António, a Capela de Nossa Senhora do Baluarte, o Palácio e a Capela de São Paulo, a Igreja da Misericórdia, o Convento de São Domingos, a Igreja de Nossa Senhora da Saúde, o Hospital, e outros.

   A missão evangélica Católica da epopeia ultramarina de Portugal, contraofensiva à expansão islâmica Otomana, travada na batalha de Lepanto em 1571, com participação de uma esquadra portuguesa, está bem demonstrada pela profusão de monumentos católicos.  

   Do lado oposto, a cidade de Macúti – macúti: folhas de coqueiros usadas na cobertura das palhotas -, construída pelos autóctones quando, no século XIX, lhes foi franqueado o acesso à cidade!

    Baltazar Rebelo de Sousa, Governador-Geral de Moçambique de 1968 a 1970, destacou-se, entre outras coisas, pelo papel que desempenhou na integração da comunidade islâmica da região, objeto de discriminação económica, social e institucional, estabelecendo acordos com os respetivos chefes na sequência de negociações realizadas precisamente na Ilha de Moçambique. 

    Uma esplêndida luminosidade matinal banhava a ampla praça quadrilátera, irregularmente pavimentada a cimento e limitada por edifícios de dois a três pisos, de cores variadas, com destaque para o rosa, amarelo e branco, salvo-o-erro. No meio estacionavam quatro riquexós pretos, impecáveis, com os respetivos operadores, negros, ao lado. Nunca tinha visto! Fiquei chocado. Aquilo parecia-me surreal!

   O Basso: - Vamos dar uma volta pela ilha, Barreto. - Recuso-me a andar numa carroça puxada por um homem. - Eh, pá, mas eles agradecem, ganham um dinheirinho, é a vida deles. - Não me sinto bem com isso. - Hoje estou arrependido; teria ficado a conhecer melhor a ilha.

   Apareceram uns colegas com um roteiro e juntámo-nos a eles numa visita aos principais edifícios e monumentos locais. Todos tínhamos consciência do valor simbólico e Histórico da Ilha e foi com certa emoção que calcorreámos as ruas da cidade. Porém, não visitámos o outro lado; alguém terá dito que não era seguro e o tempo escasseava.

   Finda a inesquecível visita, regressámos a bordo prontos para largar rumo a Madagáscar.

                                                                 Ilha de Moçambique

(Continua)      

   Peniche, 05 de Janeiro de 2023

   António Barreto

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Memórias de Bordo

 O fim de uma era (2)

 

   Nos céus de Lisboa ouviu-se o troar da sereia do Vera Cruz. Deixando para traz o cais de Alcântara, deserto, o navio cruzou a magnífica ponte rumo à derradeira aventura. Aquele rugido, outrora alegre e altivo, soava-me triste, melancólico e vazio; desta vez nem um só acenar se avistou no cais.

   Na ocasião nem percebi bem o que estava a suceder; aparentemente tratava-se de uma simples medida de racionalização económica; perdido o monopólio do transporte ultramarino não havia capacidade para competir no mercado internacional. A entropia política, social e económica que se vivia no país não era propícia à reestruturação e reorientação da Companhia; faltava capital, competência e, sobretudo, vontade política.

   Um conjunto de sensações foi-se revelando; o fascínio da navegação, essa magia se sulcar os mares, a satisfação de tripular um navio histórico num momento histórico, e a expetativa da longa viagem por mares “desconhecidos” - oceano índico - para destino exótico, Kaohsiung, na ilha de Taiwan, a que os navegadores lusos nos tempos áureos de Portugal atribuíram o bonito nome de Formosa.

  Tínhamos o navio por nossa conta; fraco consolo, que se resumia ao uso de uma das piscinas e a calcorrear livremente os vários espaços, destituídos da animação de outrora; salas de cinema, salões de baile e festas, bares, etc.

   Ocupar os tempos livres era a nossa principal preocupação. No pequeno lençol de água no convés da turística, a ré, a que pomposamente chamávamos piscina, passávamos uma boa parte do dia. No mergulho distinguia-se o Rogério que se atirava de cabeça do varandim do convés superior, algo que ninguém mais se atreveu a fazer; O “Pintas”, o nosso campeão nacional dos 100 metros livres, dava-nos lições de natação. 

   Num dos salões alguns colegas faziam regulares tertúlias jogando cartas e conversando descontraidamente. Uma das vezes, já a viagem ia bem lançada, talvez a um terço, aproximei-me do solitário piano que lá estava, surpreendido por lá o terem deixado e com pena do destino que o esperava. Desajeitadamente, comecei a dedilhar as teclas; não sabia tocar mas conhecia a escala e alguns acordes. A custo lá saiu qualquer coisa com que cantarolei, baixinho, quase em segredo, uma cançoneta que tinha aprendido no Império.

   Esgotada a inspiração, rumava ao camarote quando um colega, concentrado no jogo, e algo displicentemente deixou escapar: - Oh, Barreto vai lá tocar, pá. - Mas o quê? Não sei tocar piano! - Eh, pá toca qualquer coisa! - A viagem ainda ia no início, talvez na zona dos trópicos, mas o peso do silêncio e a ansiedade da espera já se faziam sentir. E lá fui dedilhar as teclas como calhava. Quanto ao piano, não sei se riu se chorou, mas fiquei com pena dele, até porque estava afinado.

   A viagem ia correndo tranquila, sem eventos de mau tempo, mas, nos primeiros quinze dias a casa das Caldeiras foi um autêntico pandemónio, cada quarto era uma aventura! As sequelas do incêndio que deflagrara ao cais de Alcântara traduziram-se em múltiplos curto-circuitos, e a tarefa da “injeção” era um inferno! A acumulação de fuligem era tal que, invariavelmente, entupia as respetivas bacias de recolha e escoamento; cada um de nós terminava a tarefa “cozido” e revestido de fuligem da cabeça aos pés. Passado este período o funcionamento das caldeiras estabilizou, regressando à quase normalidade.

     Num dos quartos noturnos combinei com o Basso (salvo-o-erro) preparar uma armadilha ao Melo - era o 2º Oficial do nosso quarto e fazia serviço no piso de controlo -, atraindo-o para a casa das caldeiras com um pretexto qualquer e pregar-lhe uma valente banhada, ao passar sob o labirinto de escadas e passadiços metálicos. Todo “lampeiro” fui para o piso superior com um balde cheio de água enquanto o Basso dava uma “tanga” ao Melo. Este, fino, não foi no paleio. Ficou a empreitada frustrada e lá vim eu, frustrado, despejar o balde para as cavernas.

   Um belo dia, vinha a entrar de quarto quando, no mesmo local, fui “vítima” duma banhada monumental! Ainda hoje estou para saber quem foi o autor, mas suspeito de tenha sido o “malandro” do Melo. Após a façanha desapareceu sem deixar rasto! O que vale é que aquilo até sabia bem devido ao calor que por lá se fazia sentir. Na verdade, precisávamos de “construir” eventos para quebrar a longa monotonia.

  À noite havia ensaio de fados num dos bares; o guitarrista, colega da máquina, era um velhote de Alfama. Safava-se bem. Já eu, na viola, era tipo José Afonso; “primeira, segunda e marcha à ré”. Com alguns colegas a assistir lá íamos treinando uns castiços a que juntava alguns temas do meu reportório pop.

   Certa vez desentendemo-nos com a harmonia; como não havia meio de chegarmos a acordo, o bom do guitarrista, com disfarçada indignação, aconselhou-me as tocar numa “caixa de sapatos”. Provavelmente estava certo uma vez que eu andava “a apanhar bonés”. Achei graça e prosseguimos.

   Aquilo dava para “desopilar”. Numa das ocasiões, o Basso; - Barreto toca aí a dos vampiros. - Eh, pá, não sei essa! - É do Zeca Afonso! - Começou a cantarolá-la, enquanto eu procurava os respetivos acordes; no dia seguinte entregou-me a letra num papelinho que depois passei à máquina e ainda tenho.

   Por essa ocasião os temas do José Afonso e do Adriano eram muito populares, mas eu, de facto, não conhecia “Os Vampiros”; uma obra-prima do nosso Zeca que até aí me tinha escapado, apesar de admirador de ambos.


Vera Cruz


(Continua)  

Peniche 04.11.2023

António Barreto