Desporto

domingo, 27 de junho de 2021

Os Pobres (XI)

 

   Salazar e os pobres

      Salazar considerava que a atribuição de subsídios sem contrapartida desmoralizava as pessoas tornando-as indolentes, comodistas, inúteis, um fardo para a sociedade. Pelo contrário, quando correspondiam a trabalho, mantinham a função natural do indivíduo e enriqueciam o país com a participação em obras de interesse geral. Considerava a mendicidade um vício cuja teatralidade, além de prejudicar o trânsito da cidade (Lisboa), dava a falsa ideia de pobreza geral. A solução que preconizava consistia na severa punição dos falsos mendigos, na devolução às terras de origem dos que não eram de Lisboa e no internamento dos mendigos autênticos nos asilos existentes ou nos que tivessem de ser improvisados para o efeito.

   Em 1933 foi lançada uma campanha contra a mendicidade pelo comandante da PSP em Lisboa. Foram presas mil pessoas. As prisões de Lisboa não eram suficientes para encarcerar tanta gente. Dois anos mais tarde as autoridades limitavam-se a pedir às pessoas para não darem esmola aos pobres. Os pobres de Lisboa, excetuando alguns asilados na Mitra, viviam sem auxílios oficiais. Vagueavam pelas ruas, alimentavam-se com uma sopa da Misericórdia ou do que calhava, e dormiam nos pestilentos albergues do Arco do Cego e da Rua da Betesga, geridos por particulares.

   Os lisboetas viam os pobres com benevolência. Distinguiam-nos entre os honestos, que eram subservientes, e a ralé, que se embebedava. Algumas famílias abastadas tinham os “seus” pobres a quem davam alguma comida e roupas. Alçada Batista fala-nos do ritual desta relação em que os ricos cultivavam a pobreza, “regando-a com bocadinhos de pão com conduto e algumas moedas”. Incluía a “comida dos pobres”, as “visitas dos pobres” e o “dia dos pobres que, por ser azarento, era à 6ª feira. Na Beira Baixa, região de origem de Alçada Batista, pobres e ricos encaixavam na perfeição; aqueles, mansos, cordatos, “ómildes”, respeitadores e obedientes ao senhor e ao Senhor, pretendiam apenas o mínimo para viver o seu dia-a-dia de miséria. Estes aliviavam as consciências, certos de que lhes seriam franqueadas as portas celestiais; cultivavam a pobreza alheia com carinho sem que tentassem acabar com ela. Para os poetas, os pobres constituíam matéria-prima inspiradora.

   Quanto a Salazar, considerava a pobreza uma virtude. Afirmava-se um homem livre por não possuir bens de relevo nem ambicionar riquezas, conformando-se com uma vida modesta. Não carecia de se envolver em tramas, enredos ou solidariedades obscuras. Era, dizia, “tanto quanto se pode ser, um homem livre”. Tinha, pelo menos, a sabedoria de perceber que ninguém é totalmente livre. Que a liberdade absoluta não existe.

   O povo, confinado nas aldeias, além do trabalho árduo e miserável do campo, distraia-se nas procissões, feiras e quermesses. Os grandes beneficiários do novo regime, tal como hoje, foram os funcionários públicos, com salário garantido e respeitados. A falta de contacto com outras realidades, outras experiências, terá sido uma das causas da longevidade do Estado Novo.

   Em Março de 1938 estala uma curiosa discussão sobre analfabetismo em Portugal; em pleno Parlamento houve quem defendesse que o povo, detentor de grande riqueza intuitiva, considerava desnecessário aprender a ler; na Câmara Corporativa, alguns procuradores defendiam que o analfabetismo não era consequência da pobreza, uma vez que havia nações alfabetizadas pobres. Surpreendente era o ponto de vista de uma popular escritora de literatura infantil, Virgínia de Castro e Almeida; dizia que, ao aprender a ler e escrever, as pessoas tornavam-se ambiciosas, querendo ir para as cidades para as profissões de marçanos e caixeiros, aspirando à dignidade de senhores; que acabariam a ler relações de crimes, noções erradas de política, livros maus, folhetos de propaganda subversiva; que largariam a enxada, deixariam de querer saber da terra, dominados pela ambição de aceder ao setor público; as vantagens da escola seriam nulas.

                                                          Salazar e Christine Garnier

Fonte: Maria Filomena Mónica "Os Pobres"

(Cont.)

Peniche, 27 de Junho de 2021

António Barreto