Desporto

quarta-feira, 31 de março de 2021

Os Pobres (IV)

    O setor dos lanifícios, mais antigo, mais atrasado, empregava, em 1881, 1381 operários. Na Covilhã, centro tradicional, havia 73 fábricas, algumas modernizadas. Pela região, Gouveia, Ceia, Manteigas e Guarda, desenvolvia-se a atividade em 43 oficinas rudimentares. Para este núcleo, a ameaça vinha das fábricas de Lisboa e arredores; Daupias, Arrentela, Olivais, Oeiras e Alenquer, que, em conjunto, empregavam 2529 operários.

   Neste setor, o declínio salarial foi maior do que no setor algodoeiro; de 1881 a 1901, o salário médio dos tecelões baixou para cerca de 70 % - de 3600 a 6000 reis, para 2500 a 4000 reis (fábrica Daupias). No final da década de 1860, os tecelões queimaram os teares mecânicos acabados de importar, ato designado por ludismo - termo importado da Inglaterra. No verão, as operárias camponesas abandonavam as fábricas, para venderem melancias na terra, e os operários pediam dispensa para fazerem a vindima ou a apanha da batata.

   No Norte do país os trabalhadores sobreviviam a pão, sopa e batatas, por vezes bacalhau ou carne de porco e em dias de festa, uma galinha. Em lisboa, de 1887 a 1911, o consumo de carne baixou de 49 Kg para 25 Kg por pessoa enquanto o de batata - a comida dos pobres - aumentou de 33 Kg para 57 Kg por pessoa.

   No capítulo da habitação o panorama era ainda pior; no Porto, o surto de Peste bubónica de 1899 desencadeou uma onda de solidariedade a qual, apesar de frágil, deu visibilidade às condições miseráveis em que viviam os trabalhadores. Alojavam-se em casebres imundos, nos interstícios urbanos designados por “ilhas”. Muitos viviam em casas alugadas, geralmente de rendas elevadas; 3500 reis em Lisboa, 1600 reis no Porto e 1000 reis em Guimarães, por 1909. (facto que contraria a ideia de salários de pobreza entre o operariado têxtil)

   Em consequência, a taxa de mortalidade aumentou na década de 1880, com especial incidência entre os pobres e na cidade do Porto, onde chegou a superar a de Lisboa, entre 1887 e 1896. A falta de condições de ventilação nas fábricas de têxteis provocava doenças pulmonares nos operários - exemplo dos bairros do Bonfim e da Sé - devido ao pó que se libertava durante o fabrico. Em termos infantis, morria, por ano, uma em cada quatro crianças até um ano de idade. Um cenário agravado por frequentes acidentes fabris, com mutilações de dedos, mãos e braços.

   A legislação laboral promulgada em 1890, não produziu efeitos práticos por falta de meios de fiscalização do Governo. Os horários de trabalho continuaram a ser prolongados, as máquinas sem resguardos e as crianças a fazer trabalhos pesados. Um cenário que ocorrera em todos os países, no início da industrialização. Apesar disso, em Portugal, muita gente preferia a pobreza do salário fabril à miséria ainda maior da vida agrícola.  

   As lutas dos trabalhadores sucediam-se. Nas fábricas instaladas no campo as condições eram ainda mais severas; os horários de trabalho eram arbitrariamente prolongados, havendo casos em que os operários eram obrigados a trabalhar aos domingos nas quintas dos patrões. Na Beira, em 1896 cerca de 200 tecelões recusaram-se a fazê-lo, amotinando-se. Acabaram por ceder pela fome e pela repressão do exército. Em 1900, 600 fiandeiras, da Fiação Portuense, fizeram greve contra o prolongamento do horário de trabalho das 0600h às 1900h para das 0600h às 2100h. Além da fadiga extrema, as operárias, devido ao horário tardio, ficavam muitas vezes sem jantar. Tal desumanidade era aplicada com igual rigor às crianças operárias. Uma carta que endereçaram ao Governador civil, sem qualquer efeito prático, terminava: “Com o maior respeito e empenho, intercedem os operários e imploram de Vossa Excelência o seu valioso e poderoso auxílio, pois seria uma crueldade sem nome condenar à fome, 600 operários dos mais infelizes”. Apesar do fracasso em termos de resultados, estas lutas chegaram, pela primeira vez, às páginas dos jornais nacionais.

  Consequência da irredutibilidade dos patrões e da incapacidade do Governo fazer cumprir as leis laborais, os operários retribuíam com resistência passiva, a famigerada “ronha”. De tal modo que as diferenças de produtividade das fábricas portuguesas face às congéneres europeias eram enormes; em 1896, enquanto em Inglaterra um tecelão trabalhava com seis teares, em Portugal, na fábrica Daupias, os operários recusavam-se a trabalhar com dois.


Silva Porto

Fonte: "Os Pobres" de Maria Filomena Mónica

Peniche 28 de Março de 2021

António Barreto


domingo, 28 de março de 2021

Os Pobres (III)

 Artesãos, Operários e Proletários

   Inspirada pela literatura de R. Hoggart - The uses of Literacy, de 1957 - e E.P. Thompson - The Making of the English Working Class, de 1963 - sobre o operariado inglês, M. F. Mónica decidiu fazer um levantamento da história operária lusa.

O Caso da Marinha Grande

   Confrontada com a falta de documentação percebeu que tal resultava do analfabetismo generalizado dos operários portugueses, contrastando com os congéneres ingleses que há muito sabiam ler e escrever. Teria que ir às cidades operárias, entre conversas com populares e consulta de periódicos locais, fazer o levantamento possível. Foi assim que, em 1977, decidiu ir à Marinha Grande, na senda da revolta de 13 de Janeiro de 1936 dos operários vidreiros contra a legislação sindical de Salazar.

   Para sua deceção, depois de ouvir alguns testemunhos e inteirar-se do padrão de vida da população local, percebeu que, nem a referida revolta teria tido a dimensão que os comunistas lhe atribuíram nem os operários locais passavam fome. Em vez das habituais bicicletas e boinas que esperava encontrar, os operários da Marinha Grande deslocavam-se em Toyotas, vestiam-se à moda, frequentavam coletividades e faziam piqueniques na praia de S. Pedro de Muel. Não vivendo bem, eram relativamente prósperos. Não passavam fome, como acontecera às gerações que os precederam e sucedia noutro tipo de operariado, como o do têxtil.

A Indústria textil

   A próspera indústria têxtil entrou em crise nos finais do século XIX. A mecanização dos teares, na sequência da Revolução Industrial, a oferta de mão-de-obra feminina e de camponeses, atirou os operários manuais para a indigência. Em 1865, um tecelão ganhava 400 réis diários - 8800 réis mensais -, em 1881, já só ganhava, em média, 250 réis - 5500 réis mensais. Por outro lado, o custo de vida subia drasticamente: Em dez anos o alqueire de milho aumentou 17,4 %, valendo, em 1900, 642 réis, e a carne de vaca, no mesmo período, aumentou 9,7 % atingindo os 409 réis por quilo. A vida dos trabalhadores tornou-se um inferno. Esta crise culminou em três violentas greves: a de Gouveia, a do Porto e a de Santo Tirso.

Em 1880 a indústria algodoeira ocupava cerca de 40 mil trabalhadores; 4500 operários distribuídos por Lisboa, Porto, Tomar e Alcobaça e os restantes trabalhando em casa. Os operários algodoeiros exigiram melhores salários e melhores condições laborais - o horário semanal era cerca de 60 horas; 10 horas diárias incluindo sábados - medição do tecido à sua vista, restrições no acesso ao exercício da atividade e até proibição do exercício da indústria fora de Lisboa e Porto. Por seu lado, os industriais exigiam ao governo a alteração das pautas alfandegárias, a repressão do contrabando, a criação de tribunais árbitro-avindores e a regulação do preço do fio. Enquanto isso, alargavam o horário de trabalho, aumentavam o rigor do controlo fabril e desrespeitavam as leis laborais. Quanto ao Governo, alterou as pautas alfandegárias em 1890 e 1892, bem como a legislação laboral. Tal levou o patronato do Porto a aumentar os salários, suprimindo esse aumento em 1895, alegando o elevado custo de produção face aos teares mecânicos. As ameaças de greve de nada serviram. A exportação para as colónias ajudou a minorar a crise num curto período mas os grandes beneficiários terão sido os patrões. Os tecelões reagiram ao pedido de industriais ingleses de licenciamento para instalação em Angola de uma tecelagem, advertindo os patrões para o risco de emancipação das colónias. Para escapar ao crescente rigor fabril, muitos tecelões e tecedeiras optaram pela produção caseira, trabalhando, em condições miseráveis, muito mais horas para obter o mesmo rendimento, ou menos. Ao fazê-lo perderam o controlo sobre a formação e o acesso à profissão tendo aumentado drasticamente a concorrência. Apesar de deplorável, o trabalho fabril era preferível ao do campo, mais miserável ainda. Os camponeses preferiam o salário regular que complementavam com a produção agrícola das suas courelas.  




Fonte: Os Pobres, de Maria Filomena Mónica

Peniche, 27 de Março de 2021
António Barreto

sexta-feira, 5 de março de 2021

Os Portugueses (Barry Hatton)

 Da saudade:  

   O fado destila a essência dos portugueses. E a saudade é a essência do fado.

   Correa Calderon - escritor espanhol do século XX - considerava que a saudade definia um povo inteiro.

   Teixeira de Pascoaes escreveu, em 1920, que a saudade era o sentimento que resumia os portugueses.

   O conteúdo da palavra vem de tempos imemoriais, das antigas linhagens de sangue e da experiência histórica dos portugueses. Tem uma tal profundidade e textura que nenhuma outra língua consegue produzir um termo equivalente. Encontram-se-lhe referências em canções do século XIII. No século XV a palavra “soidade” aparece num relato da tomada de Ceuta e o rei D. Duarte reconheceu que “saudade” era uma palavra intraduzível.

    O conceito de saudade é tão multifacetado que escritores e pensadores, portugueses e estrangeiros, lhe têm dedicado ensaios, trabalhos académicos e conferências, na busca da sua essência.

   Jorge Dias considerou que a saudade faz parte do caráter nacional e brota de uma “complexa mentalidade que resulta de uma combinação de fatores, alguns deles opostos”. Tais contradições estão sintetizadas na figura do “Zé Povinho”. Na genealogia portuguesa, Dias identificou três contributos para a o conteúdo da palavra saudade: a herança sonhadora, poética e religiosa celta, a “ansiedade faustiana germânica e o fatalismo árabe. Porém, as influências atlânticas, mediterrânicas e intercontinentais também estão presentes.

   A saudade é perda, dor e tristeza, mas também esperança, desejo e memória. Remete para a era dos descobrimentos, para a inquieta tensão entre os que partiam e os que ficavam, para a teia de relações de parentesco e amizade, para o bairrismo. O regresso em massa dos emigrantes à terra natal, nas férias é uma expressão coletiva da saudade.

   A tragédia de D Sebastião e a esperança frustrada no seu regresso deixou um povo impregnado duma espécie de tristeza perpétua cristalizada na saudade.

   Saudade, um sentimento estático, um “estado de insatisfação” - segundo António José Saraiva - que não incentiva a ação.

   Para Almeida Garrett, a saudade, é a palavra mais doce, mais expressiva e delicada da língua.

   Acerca da saudade, escreveu António Nobre: “Uma palavra tão triste/e sabe tão bem ouvi-la”.

   E uma velha canção popular:

                                “Esta palavra saudade,

  Aquele que a inventou,

 A primeira vez que a disse

 Com certeza que chorou.”

   Um povo que chora quando canta o seu hino nacional, que se encanta com o sentimentalismo do fado, que tem no coração a medida de todas as coisas, fascinou o poeta espanhol Lope de Vega, que dele disse, em tom satírico:

                                “Um português estava a chorar

                                   E perguntaram-lhe a razão.

                                   Ele disse que era por causa do coração

                                   E que estava apaixonado.

                                   Para aliviar a sua dor,

                                   Perguntaram-lhe por quem.

                                   Ele respondeu: Bem, por ninguém,

                                   Estou a chorar de puro amor”

Calvão 

Peniche, 4 de Março de 2021

António Barreto

terça-feira, 2 de março de 2021

Os Portugueses (Barry Hatton)

 Sobre o Fado:

“ (…) Mas o fado transporta consigo uma riqueza de carga cultural, com as suas histórias de má sorte, oferecendo, de muitas formas, um vislumbre revelador da alma portuguesa. O país e a sua música tradicional de há séculos estão mesmo hoje ligados de forma tão íntima, que é difícil apreciar um sem compreender a outra. O fado narra a vida através de um prisma português é uma celebração da “portugalidade”, a essência destilada de um país, tão português como as sardinhas assadas e um jarro de sangria doce no final de um escaldante dia de verão. (…)

(…) Apesar de ser decerto melancólico e lacrimejante, o fado não é acerca da resignação. Há nele um arrebatamento consentido. É acerca da coragem, de uma celebração da vida, apesar dos obstáculos, acerca da fé. A paixão da vida espreita nas suas entranhas. É um lamento alegre. É isso que nos arrepia a pele, mesmo que não consigamos compreender as palavras. Os cantores do fado poderão chorar a sua desgraça, mas não desistem, nem nunca desistirão. (…)

(…) O lar do fado reside nos pequenos e humildes locais da capital, onde o vinho carrascão é servido de barris alinhados contra a parede, por detrás do balcão, por um taberneiro que não diz “faz favor” nem “obrigado”.

(…) O fado, ao que parece, começou precisamente neste tipo de local. Diz-se que cresceu a partir dos rudes bairros vizinhos dos cais de Lisboa no início do século XIX. As melodias são das docas e diz-se que algumas prostitutas eram também fadistas admiradas. Porém, as raízes vão mais fundo, estendendo-se talvez ao longo dos séculos. Os veleiros ancorados no rio Tejo traziam de regresso a casa os navegadores portugueses, muitos dos quais percorriam as rotas atlânticas entre África e Brasil. As suas histórias cantadas e lamentos cristalizaram num estilo que se inspirava nas músicas que ouviam nas suas viagens. O fado destilou também os traços musicais trazidos pelos marinheiros estrangeiros que passavam por Lisboa e que entoavam uma melodia para se entreterem numa taberna local. Todas essas influências juntas tornaram o fado único. Há vestígios dos cantos dos escravos africanos, dos ritmos brasileiros, de músicas populares portuguesas, bem como de outros elementos europeus e até árabes. (…)

(….) Apesar de todas as tentativas de modernização, as doridas crónicas de um povo oprimido continuam a ressoar nas letras nostálgicas das velhas canções do fado. Os portugueses, por vezes, parecem deleitar-se com a sua adorada tristeza. Será de notar, porém, que os fadistas sorriem muitas vezes quando relatam as suas sombrias narrativas. É como se estivessem felizes por estarem tristes. (….)”

   O taxista abanava a cabeça ao ver as intermináveis obras responsáveis pelos intermináveis engarrafamentos naquela zona de Lisboa. “Portugal é tão triste”. Lamentou-se ao passageiro do banco de trás. Depois, num largo sorriso, olhando-o pelo retrovisor exclamou: “Por isso é que eu gosto dele.”


Peniche, 01 de Março de 2021

António Barreto