Desporto

domingo, 25 de setembro de 2022

A tutela das crianças

 

O Partido Socialista e as crianças

  

    O caso dos pais de Famalicão, que rejeitam a frequência dos seus filhos à disciplina de cidadania - por, o seu currículo conter matéria que consideram moralmente reprovável e de sua exclusiva competência -, alertou a população para a abusiva intromissão do estado na esfera familiar.

   Numa primeira reação, naturalmente superficial, e em geral, atribuiu-se esta ingerência ao radicalismo progressista do Secretário de Estado da Educação da época, consequência da cedência do PS às exigências do BE e PCP pelo apoio político, que lhe permitiu formar Governo apesar da derrota eleitoral que obteve.

   Tratar-se-ia pois de um mal necessário. Até porque, que saiba, nenhuma figura grada do Partido veio a público apoiar o governante. Apareceram por aí umas figuras menores a defender a posição e a lançar o estigma da irresponsabilidade sobre os pais.

 Porém, o caso é bem mais profundo, enforma a doutrina do próprio Partido Socialista e é compaginável com o socialismo puro e duro.

   Nas minhas deambulações literárias deparei-me com um “Comunicado do Partido Socialista sobre a Mulher Portuguesa”, publicado no jornal República em 24 de Maio de 1974, que reza assim:

“Foi constituída no Partido Socialista uma Comissão da Promoção da Mulher em Portugal. Propondo-se estudar profundamente a situação da mulher em Portugal e encontrar resposta para os problemas que lhe dizem respeito, a nova Comissão do Partido Socialista adota como base da sua atuação as seguintes reivindicações:

1.       Salário igual para trabalho igual, com igual possibilidade de acesso a todas as profissões.

2.       Democratização da família com imediata abolição do poder paternal, substituído por responsabilidade dividida entre os dois conjugues.

3.       Abolição da Concordata.

4.       Leis do divórcio facilitadas, e abolição da discriminação entre o homem e a mulher em face dessas leis.

5.       Aborto legalizado, não como método de planeamento familiar, mas como primeira fase para disseminação de métodos contracetivos.

6.       As crianças devem ser responsabilidade de toda a sociedade e não só da família.

7.       Creche nos locais de trabalho, em freguesias e nos meios rurais.

8.       Assistência à maternidade aumentando o tempo de ausência justificada nos locais de trabalho.

9.       Direito à reforma para a mulher que não exerce qualquer profissão remunerada, trabalhando apenas em casa.

10.   Desaparecimento da discriminação em relação à mãe solteira.

   “Toda a Sociedade” em termos práticos é o Estado. E o Estado é o Partido que o ocupa, neste caso, o PS, que entende ter o dever de, em nome de “toda a Sociedade”, e ao arrepio dos preceitos constitucionais, educar moralmente as crianças de acordo com as suas prioridades doutrinárias. Formatar o futuro eleitor construindo, desde a base, o seu “homem novo” é efetiva motivação profunda do Governo Socialista e não circunstancial. A prova disso mesmo reside na promoção a Ministro do Secretário de Estado envolvido neste caso.



Peniche, 25 de Setembro de 2022

António Barreto


sábado, 17 de setembro de 2022

Um Pouco de História (X)

 

A República Romana


-Alea Jacta est! 

   Desfeito o Triunvirato - Marco Crasso suicidara-se em Carra e tinham-se extinto os laços familiares entre César e Pompeu -, a guerra civil era inevitável. César, o jovem estroina que tinha uma ideia para a República, distinguira-se brilhantemente em Espanha e na Gália e ameaçava o poder de Pompeu, senhor de Roma. Num turbilhão de sentimentos César, desde o seu Quartel-General em Ravena, decidiu atravessar o pequeno rio Rubicão com as suas nove legiões, e, ao fazê-lo, sabia que não haveria retrocesso; os dados estavam lançados: "Alea Jacta est!"

   A entrada em Arímino surpreendeu os habitantes; os soldados iam desarmados e não se preocupavam com o saque. César, magnânimo, sorridente, proibira-o, incorporou os soldados prisioneiros e deixou os oficiais inimigos escolherem o seu destino. Enquanto Pompeu tinha declarara que quem não fosse por ele seria contra ele, César fez saber que seria por ele quem não fosse contra ele. Desta forma sagaz tranquilizou os inimigos mostrando-se disponível para acolher a todos.

   César tinha por ele a Itália superior, os transpadanos - a quem atribuíra o foro romano -, e a plebe da capital. Por Pompeu, o homem sério, o homem da ordem, rei na metrópole que beneficiava dos recursos da República, estavam todo o centro e sul de Itália, bem como a classe média e senadores, receosos do regresso aos tempos de Mário, Sila e Cina; dispunha de dez legiões, duas das quais, de transpadanos, cedidas anteriormente por César, que ameaçavam a homogeneidade das tropas.

   Optou César por marchar sobre Lucéria, onde acampavam as tropas de Pompeu, em vez de ocupar Roma deserta. Abertas negociações de paz propôs ao Senado o desarmamento de Itália e o regresso de Pompeu ao governo da Espanha. Pela sua parte entregaria a Gália à ordem do Senado, licenciaria o exército e candidatar-se-ia ao consulado. César preferia fazer a revolução a partir do Senado do que através da guerra. Rejeitou o Senado exigindo que saísse de Itália, gorando-se assim a última possibilidade de paz.   

   Perante o avanço dos decididos quarenta mil homens de César pela estrada Popólia, varrendo tudo pelo caminho, o timorato Pompeu abandonou Itália com os seus vinte e cinco mil efetivos com deswtino à Macedónia, onde pretendia reorganizar as suas forças e prosseguir a guerra; a fina flor de Roma estava com ele; aristocracia, alta burguesia, doutrinários - Catão e Favónio - toda a sociedade, incluindo o exímio orador Cícero, apesar de contrafeito.

   A República continuava a partir da Grécia. Apesar das marchas forçadas das suas tropas, César não conseguira impedir a fuga de Pompeu e não dispunha de frota.

   Dois meses bastaram para César dominar toda a Itália sem derramar uma gota de sangue. Porem, não lhe faltando tropas, necessitava de frota para abastecer a península de bens alimentares e outros. Os fartos tributos das províncias e a demagogia política dos senadores e consules, conduziram à abolição de impostos, à distribuição de bens nacionais e ao abandono das terras. A dependência alimentar do exterior era total, bem como o financiamento público. Pompeu contava vergar César pela fome, cortando-lhe, com a sua frota, os abastecimentos por mar

   Pairava no espírito de todos outra orgia de sangue como a de Cina. A devassa dos capitães cesaristas fazia temer o pior; o saque de Roma pelos gauleses. César porém revelou um comportamento oposto, conquistando a simpatia da maioria pacífica da população; atendia todas as reclamações, era justo e bom, não confiscava bens e restituira aos respetivos donos os que encontrara no acampamento de Brundísio. A despesa pública corrente era financiada com empréstimos dos seus amigos. Os senadores que pensavam emigrar acabaram por desistir e aderir ao seu projeto.

   Tendo entrado em Roma em 48 a.C., falhando a investidura pelo Senado - sem a eloquência de Cícero não conseguira convencer a maioria a fazê-lo -, César investiu-se a si próprio - gesto repetido por Napoleão Bonaparte em 1804. Entregou a prefeitura a Marco Emílio Lépido, distribuiu os governos das províncias e preparou-se para continuar a guerra.

   Sem dinheiro, perante a omissão do Senado, dirigiu-se com um grupo de soldados ao Templo de Saturno - onde se guardava o tesouro público - e arrombou a porta  à machadada. Perante a oposição do Tribuno Metelo, fuzilando-o com o olhar disse-lhe: - E repara que me é mais fácil matar-te que ameaçar-te. Se dúvidas houvessem foram dissipadas naquele momento; Roma tinha novo dono.

(Continua)

Créditos: História da República Romana - Oliveira Martins


De Corfínio a Brundísio - trajeto das forças de Júlio César na II Guerra Civil Romana

Peniche, 17 de Setembro de 2022

António Barreto

domingo, 11 de setembro de 2022

Um pouco de História (IX)

 

A República Romana

 

      O sétimo e último período da República Romana é o do cesarismo, dura cerca de 30 anos (de 59 a. C a 29 a. C) e faz a transição para a Monarquia Imperial. As sucessivas revoluções sociais dos períodos precedentes - de Cina e de Sila - deixaram a sociedade romana ávida de segurança e estabilidade, pronta para acolher quem mostrasse capacidade de impor a lei e a ordem. César foi esse homem.

   César, o jovem, culto, elegante, alto, de olhos negros, calvo, efeminado, “o homem de todas as mulheres e marido de todos os homens”, o devasso endividado até “à ponta dos cabelos”, tinha uma ideia para a República em dissolução. Mais que o exercício do poder pessoal César quis unir todo o império e refundar a República. Ao atribuir o foro romano a todos os transpadanos - súbditos residentes além do rio pó - e com a conquista das Gálias, César iniciou um processo que culminou no ano de 212 a. C. quando Caracala atribuiu o foro romano a todos os súbditos do império.

   Enriqueceu em Espanha, onde foi cônsul, graças aos tributos e confiscos, desendividando-se e iniciando a habitual estratégia de corrupção de senadores e figuras públicas, seduzindo o povo com festas opíparas, pagando dívidas alheias e emprestando dinheiro sem juros. Com o financiamento da República, César foi construindo as legiões de que necessitava para tomar o poder em Roma, e, com elas, adquiriu os meios para reconfigurar o senado com aliados e correligionários.

   Membro do primeiro Triunvirato de que faziam parte o sogro, Pompeu, e Marco Crasso, coube-lhe o governo das Gálias, tendo ficado Pompeu com o da Itália e Marco Crasso com o do Oriente.

   Contra as espectativas gerais, em especial de Pompeu que o considerava incapaz de qualquer rasgo de bravura, o jovem estroina ganhava batalhas sobre batalhas. Geralmente em inferioridade numérica conseguiu inverter a sorte da batalha sempre que a derrota parecia eminente, com ideias geniais. Venceu gauleses, bretões, belgas e germanos, pacificando toda a Gália em tempo recorde. Ciente da importância da propaganda, de tudo fazia relatórios romanceados que enviava para Roma, onde eram profusamente difundidos, construindo perante os romanos a ideia de herói da República.

    Após a morte do triúnviro Marco Crasso, que se suicidou, na sequência da derrota de Carra - Mesopotâmia - onde a sua legião foi chacinada pelos partos, liderados por Surena, e seu filho Públio Crasso morto, a rutura entre César e Pompeu era inevitável.

   Desfeitos os elos familiares por morte de Júlia, filha de César e mulher de Pompeu, e do filho destes, esfriaram as relações entre ambos. Fazendo as legiões de Itália jurar-lhe fidelidade, Pompeu afirmou-se como ditador, cônsul único e absoluto senhor do Senado. Faltou-lhe porém a coragem de demitir César do comando da Gália. Tal revelar-se-lhe ia fatal.

   O partido conservador, reunindo nobres, cavaleiros, catonianos (fiéis de Catão) e oligarcas, reuniu-se em torno de Pompeu apesar de não confiar nele. César tinha do seu lado os democratas radicais, os transpadanos, que fizera cidadãos de Roma, e as suas legiões; sobre as ruinas da inconvertível república iria erguer o principado democrático e socialista.

      César, congeminando neutralizar Pompeu com honrarias logo que assumisse o Consulado, decidiu-se pela guerra ao perceber que os catonianos tinham um plano para o afastar; acusá-lo-iam no interregno de funções, tornando-o inelegível ao consulado - em exercício de funções os magistrados eram inimputáveis. Tão exímio na intriga política como genial na guerra, César conduziu o Senado a tomar decisões que levaram Pompeu a colocar-se fora da lei e sair de Roma para se colocar à frente do seu exército, numa implícita declaração de guerra.

   O futuro tirano sabia que tinha de agir com rapidez; Pompeu tinha meios para reunir um exército triplo do seu. Com um ultimato, César dividiu o Senado em catonianos, fieis a Pompeu, e cesaristas, fieis a César. Ravena, situada na Cisalpina, província sob sua jurisdição, foi o seu quartel-general. Aqui se juntaram os tribunos populares que lhe eram fieis e as suas legiões, prontas a marchar sobre Roma. Paradoxalmente, iria destruir a constituição…cumprindo a lei! É o jesuitismo na política.

   “ O cesarismo que perverte a noção clara das coisas, que torce a justiça, que corrompe a moral, que esmaga com a Razão-de-Estado as constituições e as leis, começa por ser a vitória da intriga sobre a franqueza para depois se tornar na vitória da força sobre o direito – vitória todavia inevitável quando as sociedades chegam ao ponto a que chegara a romana em que moral, justiça, direito, constituição, leis, são para o comum da gente ficções apenas e só realidades para a minoria mínima dos retrógrados visionários à maneira de Catão.” (Oliveira Martins)

  Reunindo em Ravena a sua 13ª legião, César dirigiu-se aos soldados com tal retórica que os convenceu, não só a aderir entusiasticamente à sua causa, mas a fazê-lo gratuitamente e até a financiar a campanha, num modelo em que os Centuriões mais ricos pagavam os encargos dos outros. Confiantes no farto saque sobre a cidade, não suspeitavam sequer que tal seria interdito pelo Procônsul bem como violentar as populações das cidades tomadas.

   Num turbilhão de sentimentos e dúvidas, César decidiu-se a passar o pequeno rio Rubicão com as suas tropas exclamando: “- Alea Jacta est” (os dados estão lançados).

     (Continua)

 

Cneu Pompeu Magno

    Peniche, 11 de Setembro de 2011

    António Barreto  

domingo, 4 de setembro de 2022

O Benfica de Rui Costa

 

O Novo-Velho Benfica

 

   Os dados para a nova época estão lançados, os contornos do novo Benfica estão definidos; plantel equilibrado, mais criativo e dinâmico, grande união e comprometimento entre todos; equipa, técnicos, Direção e adeptos.

   O primeiro objetivo, apuramento para a fase de grupos da Liga dos Campeões foi cumprido.  O arranque no campeonato é positivo apesar do desgaste já se fazer notar entre os jogadores.

   A conjuntura, desportiva e comentarista, mantém o padrão habitual caracterizado pela hostilização sistemática do clube.

   Desta vez, estão a ser assinalados penaltis, legítimos, favoráveis. Parece que perceberam que o padrão anterior - 32 jogos com 0 penaltis para o Benfica - não era viável.

   Contudo nestes dois últimos jogos, contra o Paços e o Vizela, usaram-se velhas práticas punitivas do clube encarnado.

   Para ambos os casos, em mais num ato que classifico de claramente provocatório, foram nomeados árbitros aos quais, geralmente, correm mal os jogos do Benfica.

   Perante o jogo agressivo, por vezes violento do Paços, Soares Dias, assinalando as faltas, exceto na zona da área, omitia a sansão disciplinar. A mensagem, já vista ad nauseum, era óbvia; podeis bater durante todo o jogo que ninguém será expulso.

   No caso do Vizela, Veríssimo, por tudo e por nada resolveu punir disciplinarmente os jogadores do clube da Luz assinalando faltas sem suporte técnico. Ao fazê-lo condicionou a equipa diminuindo a sua capacidade competitiva. A omissão do penalti claro, cometido sobre Ramos em desespero de causa pelo defesa vizelense, revelou a condicionamento mental do árbitro.

   Quanto aos adversários, mantém-se o padrão do futebol nacional; equipas, técnica e taticamente bem preparadas, compactas, eminentemente defensivas, apostando nas transições e no jogo agressivo e violento a meio-campo.

    Este último jogo, mostrou que Rui Costa, o nosso Rui Costa, príncipe dos relvados, está de volta com a ambição do grande Benfica. Não tem medo de assumir a vontade de ganhar, ao contrário do seu antecessor. Os adeptos, em delírio, mostraram estar com ele.

   Tranquilamente, sem alaridos nem confusões, com a equipa que o acompanha, tem vindo a arrumar a casa eficientemente, cumprindo tudo o que prometeu.

   Assegurou a transição na sequência do afastamento compulsivo do anterior Presidente - mais um que foi preso durante um governo socialista -, fez a contagem dos votos da eleição anterior, promoveu a Assembleia Geral Extraordinária pedida pelos candidatos derrotados, nomeou uma comissão para atualização dos estatutos do clube, foi a eleições, rescindiu com Jorge Jesus, cujo projeto falhara, contatou um treinador estrangeiro idóneo, uma mudança estratégica de grande relevo, pôs os Dirigentes da Liga em sentido, encaminhou jogadores desajustados ao novo projeto, cordialmente, para outros clubes, e montou uma equipa prometedora, com jogadores que enchem a vista aos adeptos.

   Agora que o comboio do campeonato está em marcha, é tempo de, discretamente, confrontar os principais dirigentes desportivos nacionais, acerca da forma discriminatória com o Benfica tem sido tratado em todas as vertentes relacionadas com o futebol e todas as outras modalidades.

   As provas estão à vista de todos, são públicas, e já deveriam ter suscitado a iniciativa das respetivas autoridades.



Peniche, 04 de Setembro de 2022

António Barreto     

sábado, 3 de setembro de 2022

Gratas Memórias

 

Memórias de Bordo

 

   Naquela manhã havia algo diferente. Era a luz. Conhecia aquela luz. Dirigi-me à vigia, que dava para a proa, e afastei a cortina de tecido verde e poroso. Num instante estava nos campos da Várzea, repletos de erva fresca, dum verde quase translúcido, gotejando o orvalho da aurora, salpicados do amarelo claro das “mijonas”. As águas cristalinas do ribeiro rumorejavam suavemente, saltitando de pedra em pedra entre pequenos chorões, onde pintassilgos e piscos chilreavam alegremente. O canto dos piscos, e o seu exuberante peito vermelho, por si só valiam a expedição. Naquela manhã de primavera não resistira ao apelo do campo, a todo aquele verde que parecia infinito, ciente das consequências de ter faltado à escola; a professora Matilde iria zangar-se e os meus pais não me perdoariam; amar a natureza não era desculpa suficiente.

   Não me enganei; a luminosidade suave, difusa, da manhã, definia os azuis matizados do céu e do mar. Tranquilamente o navio deslizava rumo ao infinito sob o surdo rumor sincopado e distante da máquina. No amplo convés cinzento avistava-se a escotilha da “casa das bombas” as quais, uns bons vinte metros abaixo do convés, permitiam gerir a estabilidade do navio.

   Acabara o quarto das oito, para mim o mais difícil. Sentia-me bem, podia descansar um pouco mais tarde. Tomei banho, mudei de roupa e fui dar uma passeata ao tombadilho da ponte. Debrucei-me sobre o varandim de vante observando fascinado aquela imensidão luminosa e tranquila, grato por fazer parte dela.

   Saíramos de Luanda no dia anterior rumo a Lisboa. Fomos recolher os haveres dos nossos compatriotas escorraçados pela guerra civil. Espalhados no cais, os contentores. Ouviam-se tiros na cidade. No chão da avenida, que tantas vezes percorrera a pé até à Praia da Barracuda, viam-se alguns vultos imóveis. Pareciam pessoas. Lembrei-me do pedido que o meu primo Totta me fizera, mas não me atrevi a sair do navio; o tempo era pouco, o risco grande e não tinha como ir-lhe buscar as mobílias a casa. Soube depois que a FNLA fizera uma investida na cidade contra os restantes grupos de guerrilha. Matutava nisto quando ouvi passos:

   - Bom dia, Barreto; Vamos dar a volta. Disse o 2º Piloto.

   - Bom dia, Esteves; dar a volta? Retorqui, supondo que iríamos fazer algum exercício de segurança.

   - Sim; o Comandante recebeu uma mensagem do Presidente da República a pedir para irmos ao Lobito buscar os portugueses que estão acantonados no cais, encurralados pelos guerrilheiros da FNLA, que invadiram a cidade.

   Após uns segundos a digerir aquilo, respondi:

   - Nesse caso vamos fazer, com urgência, uma reunião de oficiais, para delinearmos um plano de apoio às pessoas a propor ao Comandante. Ainda são uns quatorze dias de viagem; há-de haver muita gente com problemas, sobretudo mulheres e crianças. 

   Era o tempo dos delegados sindicais; cada categoria profissional elegia um delegado, constituindo-se uma comissão que debatia os assuntos internos, cujas conclusões, sendo caso disso, eram apresentadas ao Comandante. Eu era o delegado dos oficiais de Máquinas e coordenador da comissão eleito pelos restantes delegados.

   Reunimos ainda nessa manhã a oficialidade subalterna; avaliámos o que podíamos fazer e, eu e o 2º Piloto - delegado dos oficiais náuticos -, incumbidos pela comissão de delegados, propusemos ao Comandante uma reunião geral de tripulação para convidar todos a aderirem ao nosso plano, que consistia em disponibilizar os nossos camarotes às senhoras com filhos ou pessoas doentes, restringir as nossas refeições ao mínimo - tipo um prato de sopa por refeição, ou uma sandes - libertando mantimentos para os mais carenciados, manter a enfermaria de serviço aberta em permanência - tínhamos um enfermeiro a bordo e o 3º Piloto, estudante de medicina, tinha experiência de banco. E pedir-lhe para canalizar aos conterrâneos resgatados todos os meios disponíveis em matéria de mantas, cobertores e alimentos, reservando o leite exclusivamente para as crianças. Água não faltaria; tínhamos os tanques cheios e o navio fabricava-a com abundância.

   O Comandante Câmara, homem de elevada estatura, barbudo, um tanto ríspido mas, ao-fim-e-ao-cabo, uma boa pessoa, surpreendido, alegando que o navio não dispunha de mantimentos para tanta gente, perante a nossa insistência e disponibilidade, autorizou a reunião.

   Marcámo-la para a noite do mesmo dia, aí pelas 2100 horas, na sala de convívio do navio. Fizemos correr palavra e, à hora aprazada, lá estávamos, os delegados, aguardando a chegada dos restantes tripulantes, enquanto o navio prosseguia a sua marcha já rumo ao Lobito.

   Foram chegando os tripulantes, e, a certa altura, ouviram-se protestos em voz alta de alguns dando conta da sua discordância da ida ao Lobito devido ao risco inerente. Sentimos o perigo duma reviravolta. Naquele contexto, em que afundar um navio mercante desarmado era acessível a qualquer operacional munido de um lança roquetes ou bazuca, o medo poderia propagar-se como rastilho, gerando o pânico, e conduzir a um resultado oposto ao que pretendíamos.

   Não havia tempo de avisar o Comandante. Decididos a “matar” a dissidência à nascença, iniciámos a reunião de imediato iniciando os Trabalhos, com a votação da ida ou não ida ao Lobito. Declarei de imediato que me demitiria caso a decisão fosse pelo regresso imediato a Lisboa esperançado qua tal não ocorresse.

   Surtiu efeito, para meu alívio, a esmagadora maioria dos tripulantes votou a favor da ida ao Lobito. Senti algo difícil de descrever, foi um pequeno gesto, é certo, mas, naquele navio, quase todos, indiferentes ao eventual perigo, decidimos socorrer os nossos concidadãos em desespero. O desafio era o de chegarmos antes de serem chacinados. Senti uma espécie de enaltecimento e algum orgulho; afinal, ainda eramos uma comunidade solidária.

   Quando o Comandante chegou tudo estava consumado. Alertado pelo imediato - de alcunha “o Mãozinhas” -, manifestou a sua indignação pela alteração do motivo da reunião. Aceitou, porém, a justificação que lhe apresentei de imediato, em nome da Comissão de Delegados.

   Chegámos ao Lobito noite dentro, talvez meia-noite, duas da manhã. A multidão esperava-nos no cais, ansiosa. O embarque decorreu sem incidentes e o navio zarpou, sem demora, rumo a Lisboa.

   Cumprimos o plano estabelecido ao qual aderiu a maior parte dos tripulantes, incluindo o Comandante, o Imediato, o Chefe de Máquinas e o 1º Maquinista. Nós, oficiais subalternos dormíamos no chão do escritório do convés, revezávamo-nos no serviço de enfermaria e, não nos tendo faltado nada de essencial, alimentávamo-nos mais frugalmente. Dávamos o apoio possível a um ou outro caso mais delicado, pessoas doentes ou crianças com fome, mas, que me recorde, não houve qualquer situação grave além do desconforto, resultante da precariedade das acomodações nos porrões.

   Chegámos a Lisboa sem incidentes de maior, com o sentimento, discreto mas indelével do dever cumprido.

   Lamento não me recordar dos nomes dos restantes colegas, apesar de ter memorizado os traços gerais das suas feições. 

   Hoje, gostaria de os encontrar e recordar esses tempos.

   O navio era o H. Capelo, o maior navio frigorífico da nossa frota da época.

H.CAPELO

   Peniche, 03 de Setembro de 2022

   António Barreto

Um Pouco de História (VIII)

 

As mulheres na República Romana

 

  “O traço mais grave e mais geral da vida elegante dos romanos do fim da república é a liberdade das mulheres, que são como os homens; Têm as mesmas ocupações, os mesmos negócios. Casam-se e descasam-se com frequência. Passam de mão em mão: Lúculo casou com Clódia; depois com Servília, irmã de Catão, mãe de Bruto, amente querida de César; com Servília de quem se dizia faltar-lhe só um dos vícios de Clódia – o ter sido amante dos irmãos. O próprio Catão divorcia-se a pedido de um amigo, e quando o amigo morre volta a casar com a mulher de quem se separara. O celibato ia-se tornando regra e o malthusianismo no matrimónio era, como é hoje, a lei de toda a gente rica. Emancipadas, as mulheres intrigam, conspiram; nos seus salões dão o tom à política e fazem dos seus amantes instrumentos. César tê-las ia como sócias – César que se deitou em todos os leitos de Roma. Terência governa Ciro, Fúlvia Marco António. No Verão, as praias eram a época privilegiada do reinado feminino: em Abril suspendiam-se as sessões do Senado e começavam os passeios, as pescas, os piqueniques, onde as intrigas de amor se entrelaçavam com as políticas, e as leoas romanas traziam pelo beiço os janotas efeminados em cujas mãos estavam os destinos da república. Livres, as mulheres mostravam uma cobiça ainda superior à dos homens, porque a mulher, mais fina, mais artista, era requintada em tudo. Era célebre Afrânia, esposa do senador Licínio Búcio, pela sua paixão pelas demandas: ela em pessoa ia advogar as causas perante o pretor, atroando o Foro com a sua eloquência histérica. Tinha passado em moda dizer que uma mulher atrevida era uma afrânia.

   Também só os casos excessivos eram capazes de impressionar o romano blasé. As dançarinas, as atrizes, as cantoras, as citarinas e toda a espécie de cortesãs mais ou menos artistas tinham-se tornado o enlevo das senhoras da boa sociedade, que lhes copiavam as modas imitando-lhes os costumes. Précia foi uma espécie de Sara Bernhardt: foi amante de Betego e em seu nome governou a república. Os escândalos repetiam-se diariamente e constituíam o melhor das conversas. Só um caso excepcional, como foi o de Clódio em casa de César, já pontífice, era capaz de dar brado.”

Agripina Maior 14 a.C

História da República Romana

Oliveira Martins

Peniche, 03 de Setembro de 2022

António Barreto