Desporto

domingo, 19 de novembro de 2023

Um Banho de Benfiquismo

 

Um Banho de Benfiquismo



A ansiedade reinava nas hostes benfiquistas nas vésperas do jogo com o “grande rival”. A equipa da luz não apresentava consistência tática. As saídas de Grimaldo, Ramos e Vlachodimos deixaram a equipa sem ideias; perdera-se o sentido posicional, a articulação coletiva e a capacidade finalizadora. A falta de confiança traduzia-se na passividade geral e na previsibilidade, tornando a equipa vulnerável a qualquer outra, desde que organizada, dinâmica e agressiva.


Se nas competições internas as coisas não corriam mal de todo; ganhara-se a supertaça no confronto direto com o outro grande rival, o Porto e, apesar de tudo, o primeiro lugar - ocupado, precisamente pelo adversário do dia -, continuava acessível. Na Liga dos Campeões, contrastando com o desempenho na época anterior, os resultados eram catastróficos. A depressão geral era uma ameaça real.


A equipa técnica, liderada por Roger Schmidt, infrutiferamente, procurava soluções. O conservadorismo da época anterior dera lugar ao experimentalismo atual. Trubin, o novo titular da baliza, promissor no jogo aéreo, com os pés e nas saídas - lacunas de Vlachodimos -, suscitava ainda alguma reserva. Na esquerda adaptara-se o centro-campista Aursness preterindo os novos laterais Jurasek e Bernart. Na direita, as lesões do titular Bah, obrigavam também a soluções de recurso variáveis. No eixo do ataque nem Musa nem Cabral - o novo recruta -, faziam esquecer o eficaz Ramos. As saídas de Gilberto e Risic, pareciam, parecem, precipitadas.


Testou-se o sistema de três centrais, com a inclusão de Morato; a defesa ganhou músculo e altura, o meio-campo ficou mais denso melhorando o apoio aos avançados e colocando mais pressão nas defesas. Mas desposicionaram-se alguns elementos - casos de João Neves, deslocado para a esquerda, e, novamente, Aursness, desta vez para a direita, sem resultados convincentes.


Sem dinamismo nas alas, faltavam centros e cruzamentos, e sem eles, os pontas-de-lança tinham que recuar abandonando as zonas de finalização. Quando, nas raras incursões pelas laterais, surgia a oportunidade de cruzamento, raramente havia avançados na área, e quando os havia estavam em inferioridade numérica. Só por milagre, ou magia, poderia haver haver golos.


O adversário estava confiante, a insegurança das primeiras jornadas dissipara-se e o primeiro lugar reforçara a determinação da equipa e adeptos. Entraram fortes.bem entrosados, jogando um futebol apoiado, bem articulado, intenso, vertical e intencional. O Benfica voltou ao esquema anterior, o 4-4-2, com Morato à esquerda, Neves no meio e Aursness na direita.



Ante a coesão tática do adversário, o Benfica apresentou-se algo disperso, com demasiado espaço entre jogadores, algo passivo, algo nervoso, mas também com muito nervo, muita intensidade.


O Sporting pressionava alto, instalava-se no meio campo “vermelho” metendo muitos jogadores na zona de finalização. Temia o pior. Era preciso sacudir aquela pressão mas a equipa teimava nos passes laterais, apesar da proximidade dos adversários, insistindo, infrutiferamente, em construir jogo, calmamente, a partir da sua área. O menor desaire seria fatal.


Mas foram do Benfica as melhores oportunidades no primeiro tempo; uma bola na trave a remate indefensável de Rafa e outra no poste, por Di Maria. Com o final da primeira parte à vista e a equipa encarnada instalada no meio-campo adversário, foi o Sporting que marcou, numa bela jogada de contra-ataque, em que o extremo Morita fez magia, fintando com grande mestria o defesa Morato, endossando de seguida a bola ao avançado Gyokers que, num remate fulminante, bateu Trubin, fazendo a bola entrar mesmo rente ao poste.


Com este “banho gelado” chegou o intervalo, e o pessimismo instalou-se entre os adeptos encarnados face à previsível dificuldade de inversão dos acontecimentos, ante um rival, forte, coeso e ainda mais confiante.


Na segunda parte manteve-se o padrão de jogo com o Sporting decidido a “arrumar” a partida e o Benfica, inconformado, a tentar virar o resultado, mas sem chegar à área contrária com perigo, excetuando um remate fortíssimo de Di Maria a que Adan respondeu com soberba defesa.


A expulsão de Gonçalo Inácio alterou o jogo; o Sporting fechou-se, ainda mais, no seu meio-campo, os caminhos para a sua área tornaram-se mais escassos e tortuosos.


O jogo aproximava-se do seu termo, o rosto do Paulinho e colegas espelhava confiança; a vitória parecia segura e com ela o conforto da ampliação da vantagem pontual para segundo classificado, o Benfica. O sonho do título ganhava contornos reais.


Com o espetro da derrota e da contestação à vista Schmidt mexeu na equipa e alterou a tática, metendo mais avançados; Guedes, Tengstedt e Cabral juntaram-se a Rafa, Di Maria, Neves e Aursnes - rendendo João Mário, Musa e Florentino. A equipa subiu no terreno, aumentou a velocidade e a intensidade insistindo nos ataques pelos flancos e metendo, finalmente, três, quatro, e mais, jogadores na área.


Tudo ia rechaçando a densa defesa verde-branca; um após outro, centros e cruzamentos morriam nas suas cabeças, nos seus pés!

Até ao quarto minuto do tempo de compensação, quando a esperança vermelha já se desvanecia; num lance que pareceu ensaiado, Di Maria, de canto, colocou a bola, ao primeiro poste, na cabeça do possante Morato que a cabeceia para a zona de penálti.


Sem marcação direta, Neves resiste à tentação do remate de primeira e amortece o esférico para o remate frontal, de pé direito, à meia-volta, afastando-o da multidão à sua frente. E a rede tremeu, apesar do estiraço do Adan!


Uma explosão de alegria fez estremecer o estádio, Neves e colegas, eufóricos, correram a comemorar com os adeptos, aquele beijando demoradamente o amado emblema.


Ainda podemos ganhar”, pensei. António Silva pensou o mesmo e foi buscar os colegas que comemoravam junto à vedação do recinto.


E aconteceu mais um momento dos que fazem este desporto tão popular; dos que fizeram o fascínio histórico, invulgar, do Benfica.


Di Maria tem esse condão, essa alegria de jogar, esse misticismo que, por vezes, materializa a aspiração transcendental do comum dos mortais.


Recebeu a bola na direita a passe de Rafa, fletiu para dentro, para a zona onde o seu pé esquerdo se agiganta. Nuno foi atrás dele retirando-lhe a veleidade do remate, mas atrasou-se na inversão do movimento que o hábil campeão do mundo fez.


Calmamente, a bola, numa trajetória perfeita, chegou a Aursness, este, sem marcação próxima, cruzou-a em arco, para frente da baliza, onde uma bateria de três avançados a esperava.


Falhou Rafa o já célebre toque de calcanhar. Mas não falhou Tengstedt que, em grande estilo, de pé direito, a fazer lembrar o ausente Ramos, fez o desvio para a baliza. Passavam sete minutos dos noventa.


Nova explosão de alegria troou no estádio, logo abafada pelo “bandeirinha”, que assinalara fora-de-jogo. Era a vez do VAR entrar em ação, ele que, no decurso da partida, parecera distraído em duas ocasiões capitais, qualquer delas em prejuízo do Benfica.


Tiago Martins, o árbitro de má memória, o homem dos cinco cêntimos, iria decidir. - “Estamos tramados”, - pensei; - “aquele patife vai-nos tirar a vitória”.


Na minha memória estava ainda fresco o lance do golo anulado a Darwin por dois centímetros, precisamente naquela baliza, que teria dado a vitória ao Benfica sobre o Porto! Dois centímetros! Hoje, nada me espanta no futebol português. Tudo parece possível e justificável, sempre que o Benfica fica por baixo.


Enganei-me! O golo foi validado. Não houvera fora-de-jogo! - “Faltou-lhes a coragem”, - pensei.


Nova explosão de alegria ecoou em Lisboa, o Benfica, adormecido, inseguro, deprimido, dera lugar ao “velho”, ao “mítico” Benfica, inconformado, talentoso e lutador, tal como o sonharam os seus fundadores e de que se fez a sua história.




Peniche, 19 de Novembro de 2023

António Barreto

domingo, 12 de novembro de 2023

A Ética Republicana em Portugal (3)

 

A Ética Republicana em Portugal


Pela noite dentro a camioneta pára junto à porta de Machado Santos, na rua José Estêvão. D. Beatriz, a mulher do almirante, foi intimada a abri-la. Rebentando com a fechadura a tiro, os intrusos perguntaram-lhe pelo marido. Queriam levá-lo à presença de Procópio de Freitas que lhe queria falar.


No interior, de pistola em punho, António, o filho do almirante estava pronto a resistir. Este, confiante na sua patente e no prestígio que granjeara, dissuadiu-o. Nada demoveu os intrusos. Abel Olímpio o tenebroso cabo que chefiava a brigada homicida, manteve-se inflexível, ignorando o pedido de garantia de regresso em segurança do detido.


Idealista, insatisfeito e intransigente, Machado Santos, a quem os republicanas deviam a vitória no 5 de Outubro, era um homem marcado. Os democráticos não lhe perdoaram as críticas ao governo, o apoio ao ditador Pimenta de Castro, o envolvimento no 13 de Dezembro de 1916 ( Revolta de Tomar, contra a entrada da IGM), e o 5 de Dezembro de 1917 em que alinhara ao lado de Sidónio contra o governo de Afonso Costa.


Traidor para os democráticos é odiado marinheiros, que não lhe perdoaram a humilhação da revista militar na rotunda ao lado de Sidónio. Incorruptível, patriota, Machado Santos, quando governante, fora implacável com especuladores e açambarcadores.


A pensão que lhe fora atribuída pelo congresso e a inveja que suscitava tornaram-no alvo de sucessivas acusações avulso com o propósito de destruição da sua imagem pública. Chegara a hora do desejado desfecho, do assassínio físico.


O relógio de parede batia a uma e meia. Perante o desespero de D. Beatriz, o cínico Olímpio assegurava o regresso do detido em segurança após rápida visita ao Arsenal. Porém, ignorou o pedido de palavra de honra.


Vestido à civil, o herói do 5 de Outubro seguiu na camioneta com os seus algozes. Num side-car, os redatores do “Imprensa da Manhã” acompanhavam-nos, e confraternizavam alegremente com os assassinos, eufóricos com a oportunidade jornalística.


Desceram pela Almirante Reis e pararam no Intendente, por avaria. Augusto Gomes, empresário teatral, foi mandado parar, tendo-lhe sido requisitada a viatura para “transportar um cadáver ao necrotério”.


Ao ver Machado Santos, o empresário percebeu o que se passava. Pediu para não matarem o almirante.


Dos doze marinheiros da comitiva, oito “valentes” dispararam sobre o herói do 5 de Outubro.


Porém, não seria a última vítima mortal da “ética republicana”, uma ficção criada por quem tem a consciência pesada.


Créditos a “Nobre Povo; os anos da República”, de Jaime Nogueira Pinto



Machado Santos


Peniche, 12 de Novembro de 2023

António Barreto