Desporto

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Fogo no Vera Cruz

 

   “Barreto! Há fogo na Casa das Caldeiras” Chamou o Airoso batendo vigorosamente na porta do camarote. levantei-me dum salto, enfiei, num ápice, o fato de macaco e dirigi-me, em passo de corrida para a Casa das Caldeiras, cerca de seis pisos abaixo, onde já se encontravam o Airoso e o Adalberto.

   O navio tinha a saída marcada, com destino a Kaoshiung - a sua derradeira viagem - para as doze horas do dia seguinte. Seria o princípio do fim da frota mercante nacional. Tinha estado de serviço no dia anterior e decidira ficar a bordo dada a escassez de tempo para ir a casa e voltar. Acabara de me deitar, seriam cerca de nove horas quando ocorreu este incidente.

   Pelo caminho, descendo apressadamente as escadas metálicas, imaginava a Casa das Caldeiras em chamas, o risco de explosão do combustível - os tanques estavam cheios de nafta - e o navio a afundar-se, ali mesmo, no cais de Alcântara. O “Vera Cruz” morreria em Lisboa, numa explosão de raiva, recusando o destino infame de Kaoshiung, onde seria mutilado, esventrado e reduzido a sucata. Fosse como fosse, embora de folga, estaria com os meus colegas.

   Quando cheguei à Casa das Caldeiras não vi chamas em lado nenhum! “Estes gajos estão a gozar comigo!” Disse para mim, porém, vi que o Adalberto, secundado pelo Airoso, olhava atentamente para o visor da câmara de combustão da caldeira de bombordo-vante - o Vera Cruz, tal como o Santa Maria, tinha seis caldeiras, três de vante e três de ré, simétricas, cuja pressão de regime, salvo-o-erro, era da ordem dos 38 bar.

   “A fornalha está demasiado ativa! Já fechei o combustível e parece que a chama ainda aumentou de intensidade!” Disse o Adalberto, espreitando a fornalha. “Deve estar a queimar combustível derramado, por deficiência do injetor ou insuficiente temperatura do combustível.” Disse eu. “Foi o que pensámos, mas não dá sinais de abrandar!” Verificámos que a pressão de vapor estava abaixo da pressão de regime e resolvemos aguardar na espetativa de que a chama se extinguisse. Por essa altura, a caldeira auxiliar,  “a caldeirinha” - a caldeira assassina -, a título preventivo, já tinha sido desativada.

   Passados cerca de trinta a quarenta e cinco minutos, a combustão não dava sinais de abrandar e a pressão de vapor atingira o valor de regime. O Airoso subiu, pela escadaria, ao topo da caldeira e gritou; “ As chapas estão demasiado quentes! Estão ao rubro e a pressão continua a subir!”. Percebemos então o que se passava. A fuligem acumulada nos tubulares e invólucro tinha inflamado e devia ser em grande quantidade. Com a válvula de segurança prestes a “disparar”, tínhamos que agir.

   Depois do Adalberto despejar os extintores de espuma química na fornalha, sem que se tivesse registado qualquer redução da intensidade da combustão, já com labaredas a trepar pela antepara de vante, resolvemos pôr em prática a única solução disponível; combater as chamas e arrefecer a superfície externa da caldeira, com água do mar. Organizámo-nos num ápice.

   O Airoso foi à Casa da Máquina lançar o diesel-gerador, ligá-lo ao quadro e desativar o turbogerador, então em serviço, para não nos faltar energia elétrica. O Adalberto lançou a bomba de serviço-geral e comunicou-a com o coletor de incêndios. Eu desenrolei a mangueira de incêndios e dirigi-me com ela à zona da antepara, onde comecei a combater as chamas em rápida progressão, consciente do “trinta e um” que iríamos ter na viagem, com os curto-circuitos, se nos safássemos. Regressando da Casa das Máquinas, o Airoso desligou os circuitos elétricos dispensáveis e, desenrolando a mangueira de bombordo, “atacou” a envolvente superior da caldeira.

   Entretanto, o piloto Teles, que estava de serviço e tinha sido avisado pelos Airoso e Adalberto, contactara os bombeiros. Enquanto combatia as chamas, deixei de ver os fogueiros, que, de início, estiveram connosco. Soube mais tarde que tinham feito as malas e aguardavam, junto ao portaló, a evolução da crise, prontos a abandonar o navio. Entretanto o Adalberto desencantou uma mangueira de incêndios, não sei onde, e atacou as chamas, que se propagavam, também na antepara de vante, mas ao nível do piso inferior.

   E assim estivemos, cada um no seu posto, na dúvida quanto ao desfecho do incêndio. Foi então que, suavemente, dentro de mim brotou um sentimento: tive orgulho nos meus colegas. Ninguém arredou pé, nem se desorientou; solidários, concentrados e estoicos! A certa altura, umas duas horas e meia a três horas depois, gritou o Airoso de bombordo, “a chapa arrefeceu…a pressão deixou de subir…está a baixar”. “Estamos safos”, pensei - receava que a caldeira explodisse por falta de débito da válvula de segurança que, entretanto, tinha “disparado”. Logo depois voltou a gritar o Airoso: “A chama apagou-se!”. Respirei de alívio. Já não tinha dúvidas: estávamos safos.

   Continuámos até extinguir as últimas labaredas que ainda “lambiam” a antepara, até, por fim, pousarmos as mangueiras. Estava junto à porta de acesso e ouvi-a a abrir-se. Era um bombeiro que se preparava para entrar e, ao ver o cenário, recuou um passo. Entretanto o Airoso veio ter comigo, estava eu a estibordo já no piso superior da escadaria onde acabara de apagar os últimos focos. Quase não o reconheci! Estava preto da cabeça aos pés! Tal como o Adalberto, que chegou pouco depois. Percebi então o susto do bombeiro; aquele era também o meu estado.

   Além dos bombeiros, já desnecessários, chegaram o Chefe de Máquinas - cujo nome não recordo, mas que alguém alcunhara de “Porfírio Rubirosa” e se mostrou estupefacto -, o Comandante Manaças - o Herr Manaças, como era conhecido - e os jornalistas. Logo ali, o Comandante anunciou a manutenção da hora de saída para o dia seguinte.

   E assim foi. O “Vera Cruz” saiu para a sua derradeira e memorável viagem com uma caldeira desativada. Uma viagem inesquecível, rica em peripécias, à qual se seguiu a do “Santa Maria”, do “Pátria”, do “Império”, etc. Todos com o mesmo destino: a sucata. Os símbolos do Estado Novo e do Império foram erradicados. Desta forma inglória se pôs fim a uma das maiores e mais bonitas frotas mercantes do mundo. O “país de marinheiros, de naus, de esquadras e de frotas” cantado por António Nobre, morreria em 1975, em pleno PREC.


Peniche, 27 de Fevereiro de 2021

António Barreto

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Fado

 De tudo que tenho lido sobre o fado é o ensaio do inglês Barry Hatton, no seu livro “Os Portugueses” que melhor o define:

"(…) Apesar de ser decerto melancólico e lacrimejante, o fado não é acerca da resignação. Há nele um arrebatamento consentido. É acerca da coragem, de uma celebração da vida, apesar dos obstáculos, acerca da fé. A paixão da vida espreita nas suas entranhas É um lamento alegre. É isso que nos arrepia a pele, mesmo que não consigamos compreender as palavras. Os cantores do fado poderão chorar a sua desgraça, mas não desistem, nem nunca desistirão. Maldizendo a infelicidade, é o sofrimento é o sentimento íntimo que é contado, forte, em público, e o desafiador cantor solitário continua de pé no final, numa exibição metafórica da resistência portuguesa. Uma sessão de fado oferece um cativante solilóquio - o do intérprete contra os elementos.”

Fado - José Malhoa

Peniche 21 de Fevereiro de 2021

António Barreto

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Marcelino da Mata e o Benfica


   Não sei se Marcelino da Mata tinha simpatia por algum clube. Nem tão pouco sei se gostava de futebol. O seu falecimento trouxe à tona a ferida, ainda bem viva, dos traumas da guerra colonial. Em quarenta e seis anos de democracia, da narrativa da tolerância, não se fez a tão necessária reconciliação nacional. Não se deu o abraço fraterno sem o qual em vez de progresso viveremos um permanente mal-estar social, económico e político. Pelo contrário, alguns Partidos empenham-se em remexer, avivar, infetar a velha ferida, congregando para a sua esfera as alegadas vítimas, apelando ao ressentimento e à vingança.

   Marcelino da Mata foi um português negro que arriscou a vida pela sua Pátria. Que se distinguiu por atos de bravura ao nível dos mais distintos portugueses. Na guerra colonial, ninguém tem as mãos limpas; nem os guerrilheiros das forças independentistas, nem os que fugiram da guerra, ainda que por objeção de consciência, nem os arautos da paz que semearam, e semeiam, guerra por todos os continentes. Nem sempre militar, mas guerra. Guerra com vítimas.

   O que os vis detratores de Marcelino da Mata não suportam é que, o Estado Novo, regime que consideram fascista, tenha atribuído a um negro as mais altas condecorações. Um negro que, entrando nas Forças Armadas como soldado raso, atingiu o posto de tenente-coronel. O elevador social, bandeira das democracias, também funcionou no regime autoritário de Salazar. A qualidade racista que, teimosamente, atribuem ao povo português, desmorona-se com o caso de Marcelino da Mata. E há muitos casos como o dele. Não com notoriedade idêntica, mas, sim, há muitos mais. Todos os grandes chefes das forças independentistas, com exceção, em parte, de Eduardo Mondlane, foram formados nas escolas portuguesas ou em escolas estrangeiras, financiados por Portugal.

   Em quarentas e seis anos de democracia, à exceção de um ou outro caso - atualmente o Primeiro-Ministro e a Ministra da Justiça -, menos que os dedos de uma mão, não se vêm negros nem ciganos, nem pessoas de outras etnias, entre os quadros partidários, e, por inerência, nem no parlamento. Nem na alta administração pública. Nem nas administrações locais, salvo um ou outro caso. Tal demonstra que a retórica do racismo, da igualdade e, já agora, da liberdade, como bandeira da democracia, está bem longe da realidade. Não passa disso mesmo, retórica, instrumento político, proselitismo.

   Marcelino da Mata foi de novo enxovalhado, agora num momento que deveria ser de silêncio e respeito, pelos herdeiros ideológicos dos que o torturaram violentamente no RALIS. Dos que perseguiram e ameaçaram Jaime Neves e a sua família, apesar de já retirado da vida ativa.

   Marcelino da Mata é um símbolo do Estado Novo. E é essa qualidade que a esquerda quer destruir, denegrir, enxovalhar. Transformar um bravo militar num vil assassino a soldo do “tenebroso ditador”. Segundo estes apátridas “defensores da liberdade”, a Pátria de Marcelino não deveria ser a que ele escolheu, mas a que eles gostariam que fosse.

   O Benfica é alvo do mesmo fenómeno. É visto pelos mesmos setores da sociedade como símbolo do salazarismo. Como um alvo a abater. Isso mesmo se verifica na comunicação social, escrita e audiovisual, onde, sistematicamente, se corrói a imagem do clube, por vezes sordidamente. Mas também a nível institucional se assiste ao silêncio e, por vezes, desdém insultuoso com que os assuntos do clube são tratados. Tal abrange, não só, as instituições desportivas, onde é notória a atitude persecutória, ao nível do jogo e do sancionamento disciplinar, como as instituições públicas, governativas e judiciais, permissivas relativamente aos detratores do clube e diletantes nas ações de ressarcimento levantadas por aquele.

   Da mesma forma que votam os ex-combatentes do ultramar ao desprezo por não terem derrubado o regime, culpam o Benfica por ter sido utilizado pela propaganda salazarista. Clube multirracial, nos anos 60 e 70, a excelência do seu futebol suscitou a admiração geral fora de portas. Num país pequeno e pobre um clube dava cartas no futebol internacional. Com jogadores pretos e brancos, alguns filiados nos movimentos nacionalistas africanos - Santana e Coluna -, onde, pela primeira vez num clube europeu um negro era Capitão de equipa, o Benfica, paradoxalmente, praticava a democracia interna e albergava dirigentes antifascistas, como Ribeiro dos Reis e Borges Coutinho.    

   Porém, foi uma lufada de ar fresco no regime autoritário, que concitou um outro olhar externo sobre o pequeno Portugal. Um microcosmos do projeto de Salazar de construção dum país multirracial e pluricontinental. Um microcosmos de sucesso, agregador dos portugueses de aquém e de além-mar, que servia a um regime autoritário. É isto que certos setores da sociedade portuguesa, as esquerdas, não perdoam ao Benfica. É este fator que tem sido explorado ad nauseum pelos seus inimigos, abertamente nuns casos, implicitamente, cobardemente noutros.

   Enxovalham Marcelino da Mata, manifestam-se pela destruição dos brasões da Praça do Império e pela demolição do Padrão dos Descobrimentos. Acusam os portugueses de racistas, homofóbicos e xenófobos, vilipendiam o Fado e a Igreja, e ostracizam o Benfica. Apavoram-se com as alusões ao salazarismo quando o popular clube encarnado ganha. Toleram-no, mas num plano secundário, subjugado às virtudes da “democracia”. Em Portugal, os ciclos desportivos seguem os ciclos políticos. E há políticos que fazem prova de vida e de filiação “democrática” perseguindo o Benfica e os seus dirigentes.

 Os benfiquistas, onde quer que estejam, o que quer que façam, de todos os extratos sociais e etários, devem tomar consciência desta realidade e defender o seu clube.

                                 

Peniche, 20 de Fevereiro de 2021

António Barreto

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O Abandono do Ultramar

 O Caso da Guiné:

   De Maio a Junho de 74, as delegações de Portugal e do PAIGC debatem os termos do reconhecimento da independência da Guiné. O lado português foi representado por Mário Soares, Almeida Santos, Jorge Campinos e Almeida Bruno, e o PAIGC por Pedro Pires e José Araújo. O General Spínola dera ordens precisas ao tenente-coronel Almeida Bruno para salvaguardar os interesses dos oficiais e sargentos dos batalhões de comandos e dos chefes das milícias, constituídas por cerca de 20000 homens (os guerrilheiros do PAIGC eram cerca de 6000).

   Porém quando, na sequência dos acordos de Argel, Portugal reconhece o estado da Guiné-Bissau, não foi incluída, nem na ata, nem nos respetivos anexos, qualquer cláusula de salvaguarda da segurança dos militares portugueses negros. Assegurou-se-lhes o pagamento dos salários até 31 de Dezembro de 1974, o pagamento das pensões de sangue, de invalidez e de reforma e colaboração na reintegração na vida civil da Guiné dos soldados desmobilizados, em especial dos graduados e comandos.

   O governo Português ignorou a Lei da Justiça Militar do PAIGC que condenava à pena de morte por fuzilamento todo o guineense que tivesse combatido ao lado das forças portuguesas ou, de alguma forma, colaborado com elas, considerando-os traidores.

   Centenas de militares e cidadãos portugueses africanos foram chacinados, fuzilados na solidão das matas, ou em espaços públicos, e atirados para valas comuns.

   A transferência de aquartelamentos decorreu num ambiente de confraternização entre militares portugueses e guerrilheiros do PAIGC. A “revolução de Lisboa” tornara vencedores os que não tinham conseguido vencer no campo de batalha.

   Em agosto, as três unidades de fuzileiros africanos, os DFE 21, 22 e 23, são desativadas e, a contragosto, desarmadas, permitindo-se-lhes ficarem com dez G3 por unidade e algumas pistolas, com vista à manutenção da segurança das instalações e do pessoal metropolitano. Disciplinados, leais e confiantes, os militares acataram as ordens, recusando a oferta de integração na marinha do PAIGC, preferindo regressar a suas casas.

  Na turbulência de abril, o competente general Bethencourt Rodrigues, que substituíra o general Spínola é, por sua vez, substituído pelo coronel Mateus da Silva, e este, finamente, pelo tenente-coronel graduado em brigadeiro Carlos Fabião, como Alto-Comissário. Mais um equívoco do general Spínola.

   Em Moçambique, a bandeira portuguesa é arrastada pelas ruas de Lourenço Marques e em Angola, Pezarat Correia desarma os brancos retirando-lhes qualquer veleidade de defesa dos seus interesses. Para a História fica a vergonha das unidades do Exército obrigadas a abandonar os quartéis em cuecas. Outro feito de abril que “ficaria bem” em qualquer muro encomiástico.

   “Na Guiné, ainda antes da independência e à medida que as Forças Armadas portuguesas retiram, explode o sentimento de vingança do PAIGC contra os seus concidadãos que estiveram ao lado de Portugal, e começam os assassinatos.

    A primeira vítima é o tenente Abdulai Queta Jamanca, que pertencera à 1ª Companhia de Comandos Africanos e participara na operação “Mar Verde”, um herói condecorado pelo general Spínola. Jamanca era um mito entre os africanos, um príncipe local que, servindo então na Companhia de Caçadores 21, em Babadinca, foi fuzilado naquela localidade após ter sido preso numa horta perto de sua casa.

   (…) Logo a seguir ao 11 de Março de 1975 em Lisboa, o PAIGC lança uma enorme operação de limpeza entre os ex-soldados, os ex-marinheiros e os  ex-milícias, portugueses e guineenses, com o argumento falacioso de que pretendiam desferir um golpe de estado na Guiné. No 11 de Março planeara-se, em Lisboa, a “Matança da Páscoa” com cerca de 500 personalidades elencadas pelo MDP/CDE (braço “intelectual” do PCP) e eliminar ou aferrolhar pelo COPCON e Luar. Na Guiné, largas centenas de antigos militares são presos, torturados e fuzilados (500, segundo as autoridades informaram posteriormente, 1000 de acordo com os seus companheiros sobreviventes). Muitos dos prisioneiros são pendurados pelos pés e chicoteados até à exaustão. Outros obrigados a carregar às costas gigantescos pneus de Berliet com as respetivas jantes.

   Joaquim Baticã Ferreira, rei manjaco e antigo deputado da Assembleia Nacional Popular, muito querido do seu povo, credor de grande consideração por parte das autoridades portuguesas, e Didi, um sargento dos comandos africanos natural de Cdjindjaça - povoação um pouco a norte de Bissau -, são fuzilados depois de julgamento sumário. Para os humilhar, amarram-lhes as mãos atrás das costas e, de joelhos no chão, nem lhes dão o direito a defender-se. Aquilo a que chamaram julgamento durou apenas um minuto.

   Os fuzilamentos não param. Nas matas, em aeroportos, nos campos de futebol, na presença das populações, centenas de guineenses, cujo único “crime” foi terem sido leais à sua Pátria, acabam por ser sumariamente executados.

Os linchamentos continuam até aos anos 80, sob as ordens de Luís Cabral, ao tempo, Presidente da Guiné. Os corpos são atirados de qualquer maneira para as valas comuns nas matas de Jungudul, Cumeré, Portogole, Mansabá e Mansoa e, pretendendo que tudo tivesse um ar de legalidade, era então passada uma ingénua certidão de óbito – muitas vezes em papel timbrado e selado com as armas de Portugal -, na qual se atestava que “faleceu por fuzilamento um indivíduo do sexo masculino…”

   Questionado, em 1994 pelo jornal “O Diabo” sobres estes fuzilamentos, o brigadeiro ex-Alto Comissário da Guiné Carlos Fabião, “herói de Abril” respondeu com um lavar-de-mãos endossando as responsabilidades para o embaixador Sá Coutinho. Este, por sua vez, reconhecendo ter tido conhecimento de algumas perseguições considerava que tal informação não devia passar as paredes da embaixada!

   Foi “Nino” Vieira, líder do golpe militar de 14 de Novembro de 1980, que depôs o Governo de Luís Cabral, que pôs fim a esta chacina. Em 22 de Novembro, “Nino”, procurando legitimar o golpe que o levou ao poder, conduz os diplomatas acreditados e os jornalistas às valas comuns, demonstrando a barbárie do regime de Cabral.

   Este viria a exilar-se em Portugal onde viveu e morreu tranquilamente enquanto “Nino” Vieira, o respeitado combatente do PAIGC viria a ser assassinado num golpe idêntico ao que o levara ao poder.

   Os testemunhos dos atos sanguinários, tenebrosos, de Luís Cabral a que a administração portuguesa do regime de Abril fechou os olhos, são violentos e convocam-nos a repudiar a narrativa construída por socialistas e comunistas acerca das virtudes da “Revolução dos Cravos”.

   Foi Luís Cabral que ordenou o assassinato dos três majores em Teixeira Pinto, quando estes, de boa-fé, desarmados, se dispunham a negociar a paz com elementos do PAIGC com tinha sido combinado. Spínola escapou por mero acaso.

   Foi Luís Cabral, cordialmente recebido em Portugal após deposto, que mandou derrubar as estátuas de Teixeira Pinto, Diogo Gomes, Diogo Cão, Honório Barreto e D Henrique. Só a estátua de Maria da Fonte, na Praça do Império, escapou à sua sede de vingança.

  Foi Luís Cabral que encarcerou militares portugueses num paiol de munições em Farim, onde muitos morreram de claustrofobia e dos outros ninguém conhece paradeiro.

   Foi Luís Cabral que, de 1976 a 1978 prendeu e fez desaparecer vários militares portugueses, constando tê-los mandado para Angola combater ao lado do MPLA, contra a UNITA, donde nunca regressaram. E por cá, também nenhuma das autoridades quis saber.

   Foi Luís Cabral que mandou trazer do Senegal os militares portugueses que lá se refugiaram, mandando-os fuzilar em Cuntima (fronteira) e Bafatá, onde, num só dia, no ano de 1975, foram mortas 480 pessoas, confirmadas à rádio pelo Ministro do Interior de Cabral.

   Foi Luís Cabral, réplica do tenebroso Idi Amin Dada, que ordenou fuzilamentos em Cuntima, Farim, Mansôa, Bissorã, Mata de Mansabá, Mata do Jugudul, Madina Mandinga, Ponte Caió, Cumeré, Bula, Teixeira Pinto e Bolama. Foi aqui, em Bolama, que o militar português Isac Dias Ferreira foi enfiado num saco, regado com gasolina e queimado.

   Foi Luís Cabral que, depois de mandar fuzilar o furriel “comando” Anastácio Ferreira (Didi), impediu a família de fazer o seu funeral, atirando-o, como se fosse um saco de batatas, para uma vala comum.

   Foi Luís Cabral que, durante 6 meses proibiu a venda de alimentos às populações para as obrigar a lavrar os campos, causa do golpe de 14 de Novembro de 1980, que o destituiu. Três dias antes tinha mandado fuzilar o capitão “comando” Adriano Sisseco, o capitão Zacarias Saiegh e o tenente Sicre Marques Vieira, todos atirados para uma vala comum.

    Foi este homem que as autoridades portuguesas acolheram, cordialmente, para não dizer encomiasticamente, como uma espécie de herói na reforma.

   Depois disto e do que se passou em Angola, na Guiné e em Timor, não me venham falar nas hipócritas utopias de abril com que iludiram os pobres portugueses nem na “descolonização exemplar.” Os “heróis de Abril” têm as mãos manchadas de sangue. Todos.

Ossadas de militares portugueses das valas comuns na Guiné


(Créditos a: “Alpoim Calvão, Honra e Dever” de Rui Hortelão, Luis Sanches de Baiêna e Abel Melo e Sousa)

Peniche, 16 de Fevereiro de 2021

António Barreto

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Operação Mar Verde

   A Operação Mar Verde foi uma ação militar secreta desencadeada em 20 de Novembro de 1970 em Conakry pelas Forças Armadas Portuguesas, planeada e liderada pelo Comandante Alpoim Calvão, com conhecimento e consentimento do General Spínola e de Marcelo Caetano. O seu objetivo inicial consistia na libertação dos prisioneiros portugueses - 26 - e no afundamento das lanchas do PAIGC e da Guiné Conakry. À data da operação, os objetivos eram mais vastos: capturar e levar para Bissau Amílcar Cabral, capturar o Presidente da Guiné Conakry, Sékou Touré e entregá-lo aos opositores do regime, com vista ao derrube deste, e destruir os dois aviões MIG que a URSS tinha fornecido ao PAIGC e ameaçavam a superioridade aérea das Forças Armadas Portugesas.

   Os objetivos iniciais foram alcançados; soltaram-se e trouxeram-se para Bissau os 26 soldados prisioneiros, entre os quais, o heróico e patriota sargento piloto aviador António Lobato - prisioneiro durante sete anos, recusou-se a trair Portugal a troco da sua libertação - e afundaram-se ou incendiaram-se todas as lanchas do inimigo. A captura de Amílcar Cabral e a destruição dos MIG falharam devido a informação deficiente da secreta portuguesa. Removida toda a resistência, nem Cabral estava no Quartel-General do PAIGC nem os MIG estavam no aeroporto. Quanto a Sékou-Touré, alertado na véspera, fugiu apavorado para uma habitação próxima. Quando os operacionais portugueses entraram no Palácio Presidencial depois de removerem a respetiva guarda, encontraram-no vazio.

   Marcelino da Mata participou nesta operação e teve ação de destaque no assalto ao quartel da Guarda Republicana, transformado em prisão política e rebatizado com o nome de Camp Boiro.

 “Da LDG “Montante” larga às, 01h35’ o GA “Óscar”, em quatro botes sintex, conduzidos por pessoal de bordo, que abicam num local da margem próximo da Gendarmerie, o quartel da Guarda Republicana recentemente transformado em prisão política e rebatizado como Camp Boiro. Este grupo era formado por 40 homens, integrando comandos africanos e membros do Front, comandados pelos Alferes Ferreira e Tomás Camará. Dele faz ainda parte um comando africano de créditos largamente firmados, o furriel Marcelino da Mata. Levam como missão principal neutralizar o quartel da Guarda Republicana.

   Ao chegarem ao seu objetivo vêm a sentinela fechar o portão, alertada por populares de que qualquer coisa de anormal se passava. Marcelino da Mata, sem hesitar um momento, mergulha de cabeça pela janela da casa da guarda e elimina com o sabre o sargento que lá se encontra. Vai abrir o portão para permitir a entrada da restante força, mas nesse instante, o alferes Ferreira é morto pela guarda com uma rajada de metralhadora. Investem de seguida pelas casernas e abatem todos os que lá se encontram.

   À medida que o alerta soa na cidade novos reforços começam a chegar à Porta de Armas do quartel, mas são eliminados à entrada. Dentro das instalações os portugueses deparam-se com cerca de 600 presos políticos do regime de Sékou Touré, vivendo, ou apenas sobrevivendo, amontoados em celas exíguas, enxovias sem quaisquer condições, muitos deles maltratados, outros cegos. Todos são libertados. Depois da missão cumprida, o grupo apodera-se de um jeep para transportar o corpo do alferes Ferreira e a saída do quartel faz-se por cima de uma barreira de cadáveres. 

   Resta-lhes ainda tempo para cumprir a ordem inesperada do comandante Calvão para calar a rádio Conakry II, que ainda não fora silenciada, muito embora tivesse sido enviada para terra a equipa “Hotel” exclusivamente destinada a essa missão. A equipa “Óscar” obedece, e dirigindo-se ao edifício onde se supunha encontrar a rádio, destrói-o. No entanto, a emissão continua no ar, pois a transmitir estava, afinal, a rádio Conakry I. Mais uma informação que as forças portuguesas desconheciam.”1

   Esta operação, considerada um dos maiores feitos militares das Forças Armadas Portuguesas, está repleta de peripécias e constitui, ainda hoje, objeto de estudo militar.

   O infame silêncio dos órgãos de soberania relativamente ao falecimento de Marcelino da Mata e aos insultos de que tem sido alvo, mostra o profundo ressentimento que, 46 anos depois, continua a flagelar a sociedade portuguesa. Mal vai uma Nação quando os respetivos titulares dos órgãos de soberania não honram a sua História.

(1Alpoim Galvão, Honra de Dever, de Rui Hortelão, Luís Sanches Baêna e Abel Melo e Sousa)



Marcelino da Mata

Peniche, 13 de Fevereiro de 2021

António Barreto

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Os Pobres (II)

 O Caso Inglês

  Inglaterra foi o país onde mais cedo se tratou o tema da pobreza e que dispõe de mais e melhor bibliografia a este respeito. Gareth Stedman Jones em “An end to Poverty” assegura que as primeiras propostas de eliminação da pobreza, através de apoios sociais estruturados, surgiram na sequência das revoluções americana e francesa e datam da década de 1790.

   O francês Alexis de Tocqueville, em 1835, registou uma estranha contradição nos países europeus segundo a qual os que pareciam mais miseráveis eram os que tinham menos indigentes, enquanto nos mais opulentos parte da população vivia da caridade alheia. Refere o caso da Inglaterra onde os seus campos paradisíacos, paradigma da modernidade, contrastavam com a indigência de cerca de 16 % da população revelada pelos registos das autarquias e paróquias. Em contraste, em Espanha e, sobretudo, em Portugal, observando-se por todo o lado um espetáculo chocante, de gente mal alimentada, mal vestida, ignorante e grosseira, habitando casebres miseráveis no meio de campos meio incultos, o número de indigentes era reduzido. (interessante esta distinção entre miséria e indigência!). M. de Villeneuve calculara que, em Portugal, havia um pobre por cada 25 habitantes (4 %), e antes dele, o geógrafo Balbi determinara o rácio de 1 pobre por cada 98 habitantes (1,1 %).

   Tocqueville desconfiava da indústria. Considerava que a vida do camponês, por mais desagradável que fosse, era menos horrível que a do operário na medida em que aquele tinha as suas carências vitais asseguradas. Chocado com a necessidade de apoio contínuo aos pobres, opôs-se à modernização da agricultura na Inglaterra. Esta reforma deixou muitos agricultores sem terra obrigando-os a migrar para as cidades em busca de trabalho nas fábricas. Com as crises cíclicas do capitalismo os operários acabavam desempregados caindo na indigência.

   Tocqueville considerava que a intervenção permanente do Estado no apoio aos pobres acabaria por “corromper os homens”. Defendia um esquema de mutualidades e montepios em que os trabalhadores contribuiriam para um fundo de apoio cujos recursos não deveriam ficar nas mãos do Estado por este o os não saber gerir. Considerou a caridade individual importante mas insuficiente e que, entre os indivíduos e o Estado, deveria haver entidades intermédias. 

   A consciência pública inglesa despertou para o fenómeno da pobreza no século XIX com as obras de Charles Dickens - Oliver Twist -, de outros ficcionistas como Elisabeth Gaskell - North and South - dos reformadores Henry Mayhew - London Labour and the London Poor - e Charles  Booth - Life and labour of the people in London -, e do antropólogo Friedrich Engels - The condition of the working class in London,  entre outras. Até então vigorava o conformismo com a inevitabilidade da pobreza, “consequência” do ordenamento Divino. Comprovavam-no o hino Anglicano, All Things Bright and Beautiful: “The rich man in his castle / The poor man at his gate / God made them high and lowly/And ordered their estate”. Nas sociedades agrárias relativizava-se a pobreza por se considerar que o povo retirava da terra os bens alimentares essenciais à sua subsistência.

   Contudo havia apoio social aos cegos, órfãos e desvalidos, através de instituições particulares financiadas por fidalgos e industriais - casos dos industriais Robert Owen e Joseph Rowntree -, e pelo poder local - de acordo com a Poor Law, decretada no reinado de Isabel I (1533-1603) - e do sistema Speenhamland - de finais do século XVIII. Em nenhum dos casos se impunha o trabalho aos indigentes. Algo que mudou com a Poor Law de 1834 que os obrigou a trabalhar nas workhouses. A ideia subjacente era a de os desencorajar a declararem-se pobres. Uma crueldade bem patente no romance Oliver Twist, de Charles Dickens, por estigmatizá-los, quando, afinal, eram vítimas do capitalismo.

O conceito de limiar de pobreza foi popularizado por J.C. Booth e a sua London School Board, que o estabeleceram entre 10 e 20 xelins para uma família de quatro a cinco pessoas. Tal resultou do estudo que efetuou no Est End londrino onde verificou que 35% dos residentes viviam em condição de extrema pobreza. Booth alterou a forma como, no início do século, se olhava para os pobres. Enquanto Henry Mayhew e Malthus, viam os pobres como resíduo populacional, gente ociosa deambulando pelos campos que vivia da miséria e do vício. Booth libertou-os do estigma da degradação, considerando-os consequência do desordenamento social e económico. De facto, entre os operários valorizava-se a instrução, a respeitabilidade e a limpeza, comprovada pela análise de diários e trabalhos de investigação. Tal é testemunhado pela obra de J Rose, The Intellectual life of the British Working Class (Yale University Press 2001). De forma que, no final do século XIX os operários se organizaram em sindicatos e fundaram o Partido Trabalhista, cujo líder, Clement Attlee, chegou a primeiro-ministro de 1945 a 1951.

   Contudo, a preocupação ética com a pobreza já vinha de finais do século XVI, vertida na legislação elisabetiana que refletia a necessidade de criação de um sistema de assistência legal, secular e nacional. A compaixão tornara-se política pública. Beatrice Webb, em 1884, no seu diário, reconheceu que as questões sociais eram as mais importantes do mundo contemporâneo tinham substituído o papel da religião. De facto eram as religiões não anglicanas que desempenhavam papel de relevo na assistência aos pobres.

   No final do século XIX, o académico William Beveridge, lançou as ideias que serviram de base à criação do moderno Welfare State. Oriundo da alta classe média, educado em escolas de grande reputação e licenciado em Oxford, Beveridge, não se ficou pela academia, discutiu os temas da prostituição, do trabalho infantil e do desemprego e exerceu voluntariado em instituições religiosas. As suas ideias, fruto das aspirações reformistas do período vitoriano, converteram-se em propostas políticas do seu contemporâneo Clement Attlee, futuro primeiro-ministro trabalhista.

   Nos primórdios do século XX na Inglaterra, havia consenso na dissociação do apoio social de considerações de natureza moral. Com efeito, até os liberais Lloyd George e Winston Churchill defendiam a necessidade de um programa social de iniciativa governamental. Para o jovem Churchill não interessavam as causas que tinham conduzido um trabalhador à pobreza; desde que tivesse efetuado as contribuições sociais e pago o seguro contra o desemprego, tinha direitos.

   Entendimento semelhante tinha Beveridge, dissociando a moralidade individual da política social. No seu livro Unemployment: A Problem of Industry defendia que o desemprego era um problema da indústria e não dos desempregados e que a pobreza era da responsabilidade da sociedade e não dos pobres. Este conceito inspirou as reformas sociais de atribuição de pensões para os velhos, de criação de centros de apoio a desempregados, do Ato Nacional de Seguro e do Beveridge Report de 1942.

   No seu manifesto Let’s Face de Future, de 1945, o Partido Trabalhista considerava que os melhores serviços de saúde deveriam ser assegurados pelo Estado a todos os cidadãos, independentemente do seu estatuto social ou condição económica. Eliminar o estigma da pobreza dependente da caridade religiosa era o objetivo.

   O conceito de pobre foi redefinido, tendo-se alterado o limiar do correspondente rendimento e acrescentando requisitos de natureza cultural e social, de forma abarcar cada vez mais gente.

   Em Portugal foi o Estado que promoveu estudos sobre a pobreza embora de natureza restrita: “O Inquérito Industrial de 1881”, no qual colaborou Oliveira Martins, o “Inquérito sobre o Estado da Indústria da Tecelagem da Cidade do Porto e Situação dos Respetivos Operários” de 1888, o “Inquérito Agrícola: Estudos de Economia Rural da 7ª Região Agronómica” de 1889 e o “Inquérito Industrial” de 1890.

   No final do século XIX, o tema da pobreza estava na moda - até Napoleão III publicou um trabalho sobre o assunto em 1844: The extintion of Pauperism. Circularam alguns opúsculos de caráter geral limitando-se a replicar as teorias da época: J. Borges Pacheco Pereira com o título “Sobre o Pauperismo ou as Classes Indigentes da Sociedade” e J. C. Preto Pacheco com “O Pauperismo e a Associação”.


(Síntese de "Os Pobres" de Maria Filomena Mónica)

Peniche, 9 de Fevereiro de 2021

António Barreto