Desporto

domingo, 13 de agosto de 2023

Uma Fenda na Muralha

 

Uma Fenda na Muralha

Alves Redol


Poucos romances portugueses há sobre a temática do mar e dos seus povos. Este é um deles. Desenrola-se na Nazaré onde as aspirações dos pescadores, o seu dia-a-dia, as suas tragédias, as suas glórias, os seus amores, são relatados com perspicácia e vivacidade. O respeito e medo pelo mar, a compulsão do seu enfrentamento, das peripécias de gerações, o brio garganeiro, a âncora religiosa e da mulher que, na praia, vive todas as aflições e angústias da incerteza. Incerteza pelo pão, pela vida e pelo amor.

Uma ficção neorrealista - nas fronteiras do realismo mágico dada a exuberância e sucessão de episódios marítimos espetaculares - escrita num estilo gracioso e sintaticamente irrepreensível.

Um livro fascinante que me “agarrou” desde a primeira página e cuja história poderia ter ocorrido em qualquer outra praia. Pela minha mente, inevitavelmente, foram desfilando alguns episódios ocorridos na Praia de Buarcos, minha terra natal.


“Rolam corpos na proa. Todos estão cegos pelas paredes e pelo tecto de água que os envolve, Ah! Ti Zé que estamos desgraçados! Rezam e gritam, amaldiçoam e humilham-se. Manel cai sobre o motor e agarra-o, tapa-o com o corpo, como se a rabana não bastasse. Lembra-se daquela vez que o foram buscar ao mar, acima do casco virado de um barco da xávega e quase tiveram que lhe partir os dedos para o tirar de lá e trazer para terra.

O motor não deixa de trabalhar, martela, martela sempre, e ele incita-o, encosta-lhe o peito, como se o seu coração pudesse animar o coração do barco.

“Ah motorzinho valente! Leva-nos em bem, não pares…”

O perigo maior passara. Olham-se os homens lá em cima e o arrais benze-se. Mas nos seus olhos azuis vidrados há ódio pelo mar.”


Uma Fenda na Muralha

Alves Redol

Peniche, 13 de Agosto de 2023

António Barreto

sábado, 12 de agosto de 2023

Parabéns Benfica

 

PARABÉNS BENFICA


O Benfica é o justo vencedor da supertaça 2022/2023, um troféu de que, por vicissitudes várias, próprias e alheias, se viu afastado no passado, em especial na última década do século XX e primeira do século XXI. Na minha memória continua bem viva a fuga de José Pratas, em pleno relvado, ante a fúria dos jogadores portistas numa final realizada em Coimbra. Uma final caricata num período em que as vitórias do Porto pareciam desígnio nacional.


A saída de Gonçalo Ramos nas vésperas do jogo, deixara alguma desilusão nas hostes encarnadas. O incompreensível castigo a Neres, anulado posteriormente, parece ter tido a dupla finalidade de provocar instabilidade no clube encarnado e, por outro lado, atenuar o escândalo da suspensão do castigo ao Treinador do Porto. As incidências no final da partida demonstraram o erro de tal decisão.


O Porto iniciou muito bem a partida; alta intensidade, pressão altíssima - logo à saída da área adversária -, velocidade, antecipação, agressividade, verticalidade, dinâmica de bloco - todos a atacar e todos a defender -, com linhas de passe variadas e situações de finalização, porém ineficazes.


Aos 14 minutos o Benfica viu o 1º cartão amarelo e cerca de 10 minutos depois já tinha o 3º! Pensei o pior; “o árbitro vai tramar o Benfica; não tarda sai uma expulsão”.


Nesta fase os jogadores encarnados não conseguiam “assentar jogo”. Precisavam de segurar a bola para clarificar ideias e não tinham tempo nem espaço para isso. Praticavam um futebol lento, sem fluidez, aqui e ali interrompido por alguns lances ofensivos algo inconsequentes face às marcações dos adversários. Porém, a linha defensiva encarnada conseguiu impedir, estorvar q.b, os movimentos de finalização dos opositores e manter a sua baliza incólume. Tal revelar-se-ia decisivo.


A 2ª parte trouxe outro Benfica. A lentidão deu lugar à rapidez, a passividade à agressividade, o individual ao coletivo, o relvado “tingiu-se de vermelho” num movimento avassalador amplo e profundo. O adversário perdeu a iniciativa, o discernimento e o primeiro golo surgiu, perfumado, dos pés de Di Maria, na sequência de uma recuperação alta de Korkçu. E não, o excelente Diogo Costa não foi mal batido, atirou-se bem, mas… a bola, rematada com a face interior do pé esquerdo contornou-o e foi aninhar-se ao 2º poste. É destes lances que vive o futebol.


O golo da tranquilidade, o 2º, veio pelo inevitável Musa, bem ao seu estilo, na sequência dum cruzamento da direita de Rafa o “novo pequeno genial”; receção, na área, e remate forte de pé direito ao 1º poste, ante a marcação do defesa e sem hipótese para o guarda-redes.


Sem grandes alterações decorreu a partida até final, com o Benfica mais próxima de fazer o 3º golo do que o Porto o 1º e com o árbitro a poupar nos amarelos aos azuis, talvez ainda à espera de algum “milagre”.


De resto as habituais picardias e manobras de diversão em que jogadores, técnicos e dirigentes portistas são especialistas e a que recorrem sempre que não ganham. Desta forma deslocam os motivos de debate para temas acessórios e não desportivos.


Lamento que, apesar do “toda a gente” desde comentadores desportivos e dirigentes políticos, defenderem, em público, a necessidade de pacificação do desporto e de afastamento dos “bárbaros da bola”, haja membros do Governo e outros políticos a apoiarem a “enésima” recandidatura de um dos dirigentes desportivos que tem dedicado a sua vida à difusão do mal estar, até ao ódio, entre adeptos e mesmo cidadãos em geral.



Autor desconhecido

Peniche, 12 de Agosto de 2023

António Barreto


sábado, 5 de agosto de 2023

Gente da Praia

 

Gente da Praia


Depois, alguns homens desceram à praia...E mar assim tão calmo e céu assim tão aliviado minara-lhes vergonha e saudade de ganhá-lo:

- Eh, gente! vamos aparelhar!...

- Eh, Tóino! Eh, Moisés! Toca a chamar a companha!...

Em ruelas e esguelhas de caminhos, uma chusma de catraios perfurou, endemoninhada gritando o aviso de sempre:

- Zé Liró, o arrais chama, ouviste?...

- Manel da Palmira, o arrais chama!…

- Onde tá o seu filho, ti Custódia? O arrais chama!

Mulheres correram também, levando o mesmo apelo:

- Ó Júlio! Júlio! O arrais chama, ouviste?

- Maximiano, olha o arrais!...

E o chamamento repercutia de norte a sul:

- ...o arrais chama!...

- ...o arrais chama, ouviste!?

- ...o arrais chama!...

A aldeia formigou para a praia, levada pelo grito de todas as bocas. Embarcações afastavam-se de terra – oito remos a espadanar, arrais e espadilheiro encarrapitados na bica de ré. Roncos de óóó upa!, costados a forcejar meias-luas, pés na areia resvaladiça - todos punham a sua gana naquele entusiástico momento.

- Não há fome que não dê em fartura!...- disse o dono de um barco ao enxergar o seu aparelhado. - Ou trazem todo o peixe… ou o espantam para sempre!…

Recoveiros fixavam-se no areal, envolvido pelo nó das pandas. E os traços negros das sirgas submergiam-se na na verdura das águas.

Gente da praia aguardava o alar das redes. Puxavam-se cigarradas gostosas - pois aquele dia foi um dia bem vivinho. História ou peripécia logo arrancava galhofa de soltar as peles.

Amolecia o pesadelo do mau tempo.

O Golfinho do Racha foi a primeira embarcação a findar lance. O Santo António do Chico Soldadinho aportou a seguir. E os alares foram simultâneos: um a sul e outro ao norte. Vinte e cinco, trinta cordas recolhidas – e logo as mangas das redes foram puxadas à finca. As redes agitavam-se em amplas e rítmicas vibrações, quando os sacos foram abertos. Os do fisco acorreram, e começou a lota com a contagem dos escrivães. Berrou-se um chui a 200 mil reis, outro a 340. Catraios procuraram os armadores, com as alvíssaras. Novas embarcações trouxeram panda. Novos alares.

A tarde alongou-se nesse afã. O pessoal de terra nem se lembrava já da bulha dos tascos. Ria-se, agora, das graçolas que um ou outro largava, pois, na vida do mar, não escasseavam motivos e graçolas… Alguns barcos ficaram no segundo lance, arrecadando cordas, bóias e redes. Encalharam meias-luas. Nos tascos mais afreguesados – Mané Choco, Quintinhas, ti Isabel Piló e outros – abateram-se dívidas nos róis. Cartas e dominós vieram para as mesas. Manducas tocou gaita de beiços. Ti Lourenço castanholas. E a malta bebeu e confraternizou.”


Calamento” de Romeu Correia



Peniche, 5 de Agosto de 2023

António Barreto