Desporto

sábado, 7 de janeiro de 2023

Memória de Bordo

 

O Fim de uma era (3)

 

       Os dias seguiam pachorrentos a 16 a 18 nós, por aí. Nos portos não havia ordem de sair. O tempo de permanência era o suficiente para a manobra da carga. Luanda, Lobito - talvez Moçâmedes, Cape Town e Durban (não estou certo) -, Lourenço Marques e Beira.

   Desta vez não tive oportunidade de dar umas braçadas nas águas calmas, translúcidas e cálidas das praias da Barracuda, em Luanda, da Restinga no Lobito, da baía de Moçâmedes, nem na piscina do Ferroviário, em Lourenço Marques. Na passagem do Cabo, o avistamento da ilha de Robben - onde Nelson Mandela estava preso -, e da Table Mountain, era sempre um acontecimento.

   Na Beira desembarcou o imediato, meu tio João. A turbulência que se vivia nos portos ultramarinos, com greves múltiplas e sucessivas, à semelhança do que sucedia na Metrópole, impedia qualquer previsão fiável, suposta causa de dissidência com o Comandante. Tive pena, gostava de o ver por ali. O 1º Piloto Bettencourt, homem cordial e popular, subiu a imediato.

   Da Beira seguimos para a Ilha de Moçambique. Desta vez tivemos permissão para ir a terra - por pouco tempo - talvez por anteceder a longa travessia do Índico. Talvez o Comandante Manaças nos quisesse premiar pelos cerca de 30 dias antecedentes, “diretos”.

   A ilha, que teve importância estratégica na rota comercial de Portugal no Índico, nos séculos XV e XVI, fora alvo das investidas dos holandeses no século XVII - destaque para os cercos de 1607 e 1608 -, onde, por essa época, se instalaram os Jesuítas e se deu início ao comércio de escravos para o Brasil, entrou em declínio no século XIX após a independência desta colónia - 1822 - e a proibição da escravatura em 1837.    

    Todo um acervo monumental atesta a sua importância e a presença lusitana; a Fortaleza de São Sebastião, o Forte de São Lourenço, o Fortim de Santo António, a Capela de Nossa Senhora do Baluarte, o Palácio e a Capela de São Paulo, a Igreja da Misericórdia, o Convento de São Domingos, a Igreja de Nossa Senhora da Saúde, o Hospital, e outros.

   A missão evangélica Católica da epopeia ultramarina de Portugal, contraofensiva à expansão islâmica Otomana, travada na batalha de Lepanto em 1571, com participação de uma esquadra portuguesa, está bem demonstrada pela profusão de monumentos católicos.  

   Do lado oposto, a cidade de Macúti – macúti: folhas de coqueiros usadas na cobertura das palhotas -, construída pelos autóctones quando, no século XIX, lhes foi franqueado o acesso à cidade!

    Baltazar Rebelo de Sousa, Governador-Geral de Moçambique de 1968 a 1970, destacou-se, entre outras coisas, pelo papel que desempenhou na integração da comunidade islâmica da região, objeto de discriminação económica, social e institucional, estabelecendo acordos com os respetivos chefes na sequência de negociações realizadas precisamente na Ilha de Moçambique. 

    Uma esplêndida luminosidade matinal banhava a ampla praça quadrilátera, irregularmente pavimentada a cimento e limitada por edifícios de dois a três pisos, de cores variadas, com destaque para o rosa, amarelo e branco, salvo-o-erro. No meio estacionavam quatro riquexós pretos, impecáveis, com os respetivos operadores, negros, ao lado. Nunca tinha visto! Fiquei chocado. Aquilo parecia-me surreal!

   O Basso: - Vamos dar uma volta pela ilha, Barreto. - Recuso-me a andar numa carroça puxada por um homem. - Eh, pá, mas eles agradecem, ganham um dinheirinho, é a vida deles. - Não me sinto bem com isso. - Hoje estou arrependido; teria ficado a conhecer melhor a ilha.

   Apareceram uns colegas com um roteiro e juntámo-nos a eles numa visita aos principais edifícios e monumentos locais. Todos tínhamos consciência do valor simbólico e Histórico da Ilha e foi com certa emoção que calcorreámos as ruas da cidade. Porém, não visitámos o outro lado; alguém terá dito que não era seguro e o tempo escasseava.

   Finda a inesquecível visita, regressámos a bordo prontos para largar rumo a Madagáscar.

                                                                 Ilha de Moçambique

(Continua)      

   Peniche, 05 de Janeiro de 2023

   António Barreto