Desporto

sábado, 29 de outubro de 2022

Porque morrem as democracias

 

As Democracias também morrem

 

   A Democracia é uma ideia fascinante, caracterizada pela soberania popular delegada, pela separação de poderes - legislativo, executivo e judicial - e pelo primado da lei, com o propósito de garantir a defesa das liberdades - de expressão, de participação económica e política - da dignidade humana e de ausência de qualquer tipo de discriminação.

   A atividade democrática implica a coexistência de múltiplas plataformas de informação e debate, com caracter aberto e universal, capazes de fomentar e veicular a turbulência de ideias que, fluindo continuamente, hão-de consubstanciar as características do regime em todas as vertentes.

   Sempre que tais plataformas subvertem a sua função colocando-se, encapotadamente, ao serviço de quaisquer interesses particulares, enfraquecem a democracia, originando tensões de vária ordem que, não sendo corrigidas por mecanismos democráticos constituídos para o efeito, em última análise, podem originar guerras civis e ao advento de regimes autoritários.

   Habituámo-nos a olhar para a Democracia como indiscutível e a dissipar as ocasionais dúvidas ou persistentes perplexidades, com a célebre expressão, paradoxal, atribuída a Churchil, segundo a qual “A Democracia é o pior dos regimes, com exceção de todos os outros”.

   Porém, estabelecidos os pilares primordiais, a Democracia deve ser um processo evolutivo de aprimoramento contínuo dos mecanismos que conduzam à universalidade efetiva, e não apenas teórica, do acesso à dignidade de qualquer cidadão; quem quer que seja, onde quer que seja e qualquer que seja a sua condição.

   Quando, um dia, ouvi um líder africano - julgo que Kadafi - afirmar que a Democracia não devia aplicar-se a todos os povos, fiquei perplexo! O descaramento da afirmação era, então para mim, uma tentativa tola de o ditador justificar a autocracia que estabelecera no seu país.

   Mas não esqueci; hoje compreendo melhor a ideia; a compulsão do poder subverte as elites políticas, e a baixa maturidade cívica da população, quando ocorre, torna-a vulnerável à demagogia, à mentira e até ao medo que, insidiosamente, os poderes instituídos vão disseminando.

   Foi assim, com um arregalar de olhos, que aqui há tempos me deparei, surpreendentemente, com um opúsculo - de um dos alfarrabistas que frequento -, com o título “Contra a Democracia” da autoria dum tal Alfredo Pimenta. Tratei logo de o “abarbatar”, ler e indagar a biografia do autor.

   Alfredo Pimenta (1882/1950) foi um intelectual, académico e político destacado - historiador, poeta, ensaísta, jornalista -, natural de Guimarães, com profusa obra literária - num total de 167 obras publicadas. As origens humildes não o impediram de frequentar colégios de qualidade, graças ao seu talento que cedo suscitou importantes apoios locais. Envolveu-se em atividades políticas e, aos “trambolhões”, lá conseguiu licenciar-se em Direito, área que detestava. Ateu primeiro, fervoroso católico depois, patriota, teórico da Mocidade Portuguesa, defensor do regime nazi, crítico dos Aliados, amigo de Salazar e Monárquico absolutista (Um perfil e tanto!)

   Eis alguns extratos do que pensava Alfredo Pimenta da Democracia, num discurso dirigido a universitários, em finais de Outubro de 1948 - candidatos Óscar Carmona e Norton de Matos -, vésperas de eleições presidenciais.

   “Se, de facto, somos inimigos do Comunismo, e das suas torpezas, das suas blasfémias, das suas indignidades, das suas misérias e das suas infâmias, façamos a guerra impiedosa e permanente ao que a produz, ao que é a sua fonte e a sua razão de ser. Numa palavra, combatamos a Democracia; ataquemos a Democracia.

   Corre mundo e entrou em todos os meios a blague sinistra de que, por serem variadas as máscaras da Democracia, não se sabe já o que a Democracia seja. Poliforma, é certo; a sua substância, porém, é inalterável. E esse seu polimorfismo é o recurso interessado daqueles que a Democracia envenenou. E é à custa desse polimorfismo que a Democracia medra, se infiltra, conquista, perverte e leva ao Comunismo.

   Democracia cristã; Democracia orgânica; Democracia positiva; Democracia social; Democracia temperada; Democracia liberal; Democracia isto; Democracia aquilo; Democracia aqueloutro, são máscaras do mesmo erro, pseudónimos do mesmo mal, disfarces do mesmo cancro: a Democracia.

   O polimorfismo satânico que a Democracia apresenta é o fenómeno moderno; desconheceu-o Aristóteles; desconheceu-o S. Tomás.

   Para os dois, a Sociedade podia ser monárquica, se governa um; aristocrática, se governam alguns; democrática, se governam todos.

   Mas o governo de todos é um mito, porque é um absurdo. A sociedade é uma realidade; o governo é outra. Não há sociedade sem governo - proclamou-o Augusto Comte. Pode governar um; podem governar alguns; não podem governar todos. A Democracia que é o governo de todos é conceito metafísico, abstração pura.

   A Democracia nunca se realizou. Sociedade que tentasse realizá-la suicidar-se-ia. Sociedade a governar-se a si própria nunca existiu, porque a mesma noção de sociedade implica organização e hierarquia, e portanto governantes que mandam, governados que obedecem. A Democracia é a negação da organização e da hierarquia: todos mandam, todos governam, todos são soberanos. Nunca se viu; nunca se poderá ver. O mal da Democracia está, antes de mais nada no mito que a constitui, na mentira que representa, na mistificação idiota que personifica.

   As massas são crédulas, ingénuas e estúpidas. Os seus exploradores, os que vivem, enriquecem, engordam, trepam e se fazem à custa dessa credulidade, dessas ingenuidade ou dessa estupidez, são os profiteurs da Democracia, tão repelentes e tão sujos, como aqueles cadastrados que vivem à conta das desgraçadas que pertencem a quem as compra.

   O Comunismo, última fase da vida evolutiva da Democracia, é menos indigno que esta - porque é franco, é lógico, é desassombrado. Os defensores, os propagandistas, os filósofos, os agentes, os sacerdotes da Democracia, ou são comunistas que se desconhecem, ou comunistas que se disfarçam.

   Combata-se o Comunismo como consequência da Democracia; mas combata-se a Democracia como antecedente do Comunismo.

   Defender a Democracia e combater o Comunismo é de imbecil. Opor a Democracia ao Comunismo é de ignorante.

   Se a Democracia, sociedade em que todos governam, não existe, que é que existe com o nome de Democracia? Existe a sociedade em que alguns se governam - mentindo, iludindo, sofismando, arrastando o povo atrás da sua mentira, levando-o, cego e surdo, atrás duma ilusão!

   As massas não raciocinam: creem. E quanto mais compactas e numerosas são, mais obtusa e irrefletida e infantil é a sua crença.

   Não há almas coletivas, não há razões coletivas, não há inteligências coletivas. As massas têm instintos, não têm Razão; têm reflexos, não têm discernimento. Porque as seduz a Democracia? Porque as encanta o Comunismo? Precisamente porque são bárbaros e absurdos.

   Mas essas Democracias que por aí passeiam sua vida, que são afinal? São burlas escandalosas e é à sua qualidade de burlas que devem o poder viver.

(…) Eles sabem, como todos nós sabemos, que a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade, são entre os homens, mistificações, nuns, superstições, noutros.

(…) E as massas creem…E até creem na mais estupenda das calúnias com que se pretende desonrar o Catolicismo - a de que a Democracia é de natureza Católica!

(…) Para os Católicos a resposta é só uma: “Não há poder que não venha de Deus” - Ou, no latim da Vulgata: non est potestas nisi a Deo. Até o poder ilegítimo? Nunca o Apóstolo o disse, nem podia dizê-lo. Porque antes dele já S. Lucas ensinava: “Devemos obedecer mais a Deus do que aos homens: “obediri opportet Deo maggis, quam hominibus”. Logo, há dois Poderes, há duas Autoridades: o Poder ou a Autoridade de Deus; e o Poder ou a Autoridade dos homens. Se pode haver conflito entre os dois, é porque um deles não emana de Deus. Logo, nem todo o Poder vem de Deus. Só vem de Deus o Poder que reconhece Deus como sua fonte de origem. A Democracia tem como dogma fundamental que o Poder está na própria Sociedade, e desta emana. Logo, a Democracia não vem de Deus1.

   Se a Democracia não vem de Deus, o católico não pode obedecer voluntariamente à Democracia, nem ser seu apologista, defensor ou serventuário.”

   Descontando a espantosa apologia da Monarquia Absolutista e do nazismo, a estrutura de raciocínio relativa *a Democracia, não é destituída de senso.

   Perante a atualidade política nos regimes democráticos - Ocidente -, nomeadamente em Portugal, Espanha, França, EUA, Brasil, etc., e o que sucedeu com a Venezuela, o Chile, o Uruguai, etc., dei comigo a pensar se a Democracia não será a armadilha do Socialismo.

  Certo, certo é que a Democracia está cheia de armadilhas que os oportunistas, falsos democratas, demagogicamente, insidiosamente, vão lançando e normalizando, na obstinada compulsão do poder que lhes permite, e às suas clientelas, apropriarem-se das riquezas dos povos. Por tudo isto é imperioso conduzir os regimes democráticos a níveis que impeçam o seu desvirtuamento.

   Finalmente, fiquei a perceber melhor a razão primordial da incompatibilidade do Republicanismo com o Catolicismo e da insana perseguição deste pelos regimes republicanos.

                                                                 Alfredo Pimenta

1Ver o ensaio teológico-político do autor: A Igreja e os Regimes Políticos, Lisboa, 1942.

Peniche, 29 de Outubro de 2022

António Barreto