Desporto

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Da violência no futebol

      Apesar de este ser um tema permanentemente em foco na sociedade portuguesa não me parece que todas as entidades que se revelam preocupadas façam o que podem para  erradicar ou atenuar a violência no futebol.
 
   Recentemente, a Assembleia da República dedicou uma sessão ao assunto sem que de lá tenha saído qualquer contributo válido a respeito do mesmo. Tirando os casos de oportunismo em que alguns correm a associar-se aos sucessos dos clubes, a generalidade da comunidade política mantém-se à distância do futebol, contribuindo para o restringir a uma espécie de gueto onde prolifera certa marginalidade nem sempre desincentivada.
 
   Haverá entre os adeptos do futebol uma propensão particular para a violência? Será que este desporto atrai os revoltados da vida por verem nele a oportunidade integração  que lhes é negada noutros setores? Será que os fenómenos de massas refletem a violência contida na sociedade atual funcionando o futebol como regulador, prevenindo males maiores? Será que o Homem, por razões da sua natureza profunda, carece de agregação,  funcionando os clubes como substitutos das ancestrais tribos ? Será que nas sociedades atuais os adeptos de futebol são vítimas de manipulação para fins políticos, económicos ou outros? Será tudo isto junto? E como se previne? Haverá uma causa primordial da violência do Homem?, ou várias? 

   Julgo que este fenómeno tem a ver com as contradições associadas à liberdade; concretamente, entre a liberdade natural e a liberdade social. Sendo a absoluta liberdade a maior das utopias, inalcançável até para Deus, fica fora deste pseudo-ensaio. A compulsão da satisfação do Homem das suas necessidades vitais, materiais e espirituais, contende com a sua necessidade vital de agregação social. O Homem só, não existe. Nunca existiu. Nunca existirá. Mesmo Zaratustra, o misantropo alter ego de Nietzshe, é habitado pelas vicissitudes das sociedades humanas, objeto das sua ambição de criação de uma nova ordem; o eterno desafio. Naquelas, cada homem aceita prescindir de parte da sua liberdade natural a fim de tornar possível a convivência com os outros homens. Nasce assim aquilo que designo por "liberdade social"; a máxima liberdade que cada unidade de um agregado social pode disfrutar sem a desagregar. Nas sociedades modernas esta "liberdade social" está consagrada na Lei, elaborada pelos seus órgãos legítimos, constituindo o que se designa por Estado de Direito. Creio que é a repressão prolongada da liberdade natural a causa primordial geradora de violência em cada pessoa. Lidar com esta tensão exige recursos mentais e emocionais do próprio nem sempre disponíveis, competindo-lhe fortalecê-los em nome da sua necessidade de associação. Na "construção" da sua República, Sócrates, utopicamente, dispensava o aparelho judicial considerando que uma educação apropriada impediria cada cidadão de violar os direitos dos outros. Perante esta impossibilidade compete à comunidade zelar pela difusão dos valores subjacentes à Lei, pelo respeito universal desta e pela identificação e correção dos desvios que se lhe verifiquem.

   Em síntese, compete a cada cidadão considerar os direitos alheios quando exerce os seus e à comunidade cabe a administração da justiça. A origem da violência no futebol não é muito diferente da que se verifica noutros contextos, embora com diferentes características e nuances; a compulsão de distinção, cada um à sua maneira, tanto afeta o adepto comum, como o ilustre banqueiro.

  Esta terceira república ergueu-se sobre uma estrutura democrática mínima, caracterizada pela deficiente representação da soberania popular no órgão parlamentar e pela permeabilidade dos poderes democráticos à influência partidária, em especial o poder judicial, pondo em causa a independência destes e, por extensão, a legitimidade do próprio regime.

   Os exemplos de condicionamento e má administração da Justiça geram sentimentos de impunidade nuns cidadãos e de revolta, noutros. Concretamente no futebol, são muitos os casos graves em que tal se verificou, ficando a ideia da seletividade dos Tribunais em função da qualidade dos arguidos e das causas que lhe estão associadas. Houve casos cujo desfecho sugere que as instancias judiciais envolvidas subordinaram a Lei  a propósitos políticos transversais entre os arguidos e as elites locais integrando agentes da justiça. Um historial já longo de disfuncionalidades judiciais que tem funcionado como incentivo ao criminosos - alguns até institucionalmente elogiados -, falhando na sua função dissuasora.

   Acresce a excessiva mediatização do fenómeno futebolístico, seja nos média, seja na imprensa, que atingiu patamares de agressividade inaudita, eventualmente por imperativos de natureza económica, criando um ambiente de guerra civil entre adeptos e dirigentes, sem que as entidades reguladoras lhe tenham posto cobro. Afastam-se os adeptos pacatos, radicalizam-se outros, perde o futebol, perde o país.  
   Em conclusão, a violência no futebol, previne-se com educação e integração dos cidadãos, com os bons exemplos das elites políticas, económicas, sociais e religiosas e com o empenho e competência das instituições de justiça. Algumas das entidades que têm mostrado a sua repugnância pela violência no desporto têm, também, a sua quota parte de responsabilidades nela, por omissão das instituições que servem. 



 Egon Schiele, Agonia, 1912
 

Peniche, 16 de Maio de 2018
António J.R. Barreto