Desporto

sábado, 5 de agosto de 2023

Gente da Praia

 

Gente da Praia


Depois, alguns homens desceram à praia...E mar assim tão calmo e céu assim tão aliviado minara-lhes vergonha e saudade de ganhá-lo:

- Eh, gente! vamos aparelhar!...

- Eh, Tóino! Eh, Moisés! Toca a chamar a companha!...

Em ruelas e esguelhas de caminhos, uma chusma de catraios perfurou, endemoninhada gritando o aviso de sempre:

- Zé Liró, o arrais chama, ouviste?...

- Manel da Palmira, o arrais chama!…

- Onde tá o seu filho, ti Custódia? O arrais chama!

Mulheres correram também, levando o mesmo apelo:

- Ó Júlio! Júlio! O arrais chama, ouviste?

- Maximiano, olha o arrais!...

E o chamamento repercutia de norte a sul:

- ...o arrais chama!...

- ...o arrais chama, ouviste!?

- ...o arrais chama!...

A aldeia formigou para a praia, levada pelo grito de todas as bocas. Embarcações afastavam-se de terra – oito remos a espadanar, arrais e espadilheiro encarrapitados na bica de ré. Roncos de óóó upa!, costados a forcejar meias-luas, pés na areia resvaladiça - todos punham a sua gana naquele entusiástico momento.

- Não há fome que não dê em fartura!...- disse o dono de um barco ao enxergar o seu aparelhado. - Ou trazem todo o peixe… ou o espantam para sempre!…

Recoveiros fixavam-se no areal, envolvido pelo nó das pandas. E os traços negros das sirgas submergiam-se na na verdura das águas.

Gente da praia aguardava o alar das redes. Puxavam-se cigarradas gostosas - pois aquele dia foi um dia bem vivinho. História ou peripécia logo arrancava galhofa de soltar as peles.

Amolecia o pesadelo do mau tempo.

O Golfinho do Racha foi a primeira embarcação a findar lance. O Santo António do Chico Soldadinho aportou a seguir. E os alares foram simultâneos: um a sul e outro ao norte. Vinte e cinco, trinta cordas recolhidas – e logo as mangas das redes foram puxadas à finca. As redes agitavam-se em amplas e rítmicas vibrações, quando os sacos foram abertos. Os do fisco acorreram, e começou a lota com a contagem dos escrivães. Berrou-se um chui a 200 mil reis, outro a 340. Catraios procuraram os armadores, com as alvíssaras. Novas embarcações trouxeram panda. Novos alares.

A tarde alongou-se nesse afã. O pessoal de terra nem se lembrava já da bulha dos tascos. Ria-se, agora, das graçolas que um ou outro largava, pois, na vida do mar, não escasseavam motivos e graçolas… Alguns barcos ficaram no segundo lance, arrecadando cordas, bóias e redes. Encalharam meias-luas. Nos tascos mais afreguesados – Mané Choco, Quintinhas, ti Isabel Piló e outros – abateram-se dívidas nos róis. Cartas e dominós vieram para as mesas. Manducas tocou gaita de beiços. Ti Lourenço castanholas. E a malta bebeu e confraternizou.”


Calamento” de Romeu Correia



Peniche, 5 de Agosto de 2023

António Barreto