Desporto

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Fundamentos da Benficafobia

        

Quarenta e dois anos depois de estabelecida a democracia em Portugal, ainda há setores da sociedade que não conseguem ligar com o fenómeno Benfica Uns, outrora adversários hoje inimigos, justificam os fracassos do passado, com alegados favorecimentos espúrios ao clube da Luz, atribuídos pelos títeres do antigo regime, teimando em apresentar-se como credores históricos de méritos desportivos, considerando legitimadas as benesses de que atualmente disfrutam, como corolário da alegada democratização política. Outros, elegeram o popular clube como instrumento de manipulação mediática, caracterizando-o, ainda que implicitamente, como símbolo do autoritarismo e centralismo, cuja decadência resultaria do alegado progresso sociopolítico, fruto da sua ação "libertadora" que todos poderiam testemunhar e premiar.  Uns e outros, decidiram transformar o futebol em instrumento de afirmação política regional ou nacional, alimentando uma guerra verbal e material com uma das poucas entidades que têm uma forte característica agregadora e identitária nacional, considerada resistente ao desejado fracionamento político-administrativo do território; o Benfica. Outros ainda, servem-se do clube encarnado como instrumento de diversão e ofuscamento de episódios infelizes da vida coletiva ou de mera prova de vida política.
 
      Infelizmente não faltam exemplos próximos da segregação social, alimentados na sombra por elites regionais, servindo-se de gente sem eira nem beira, nem escrúpulos. Em algumas cidades, como Porto, Vila Nova de Gaia, Braga, Guimarães, e agora, Samora Correia e Faro, onde parece perigoso a qualquer cidadão expor pacificamente, isolado ou associado, o seu benfiquismo. Dolorosamente exposta hoje em dia, a degradação  das funções públicas, sucedendo-se em múltiplos setores, anunciou-se com exuberância nos primórdios do novo regime, no setor do desporto. O êxtase da liberdade, a frustração desportiva e a falta de escrúpulos dos novos senhores do futebol, associado  à cumplicidade ou covardia das autoridades públicas, transformaram-no numa gigantesca farsa e num fator de conflito social persistente. A repetida falência das instituições no escrutínio e correção das vicissitudes do desporto, sugerem algo mais além de descontrolos circunstanciais.

      Contrastando com a democracia política emergente em 75, o futebol, paradoxalmente, entrou na idade das trevas; controlado infamemente pelas novas maiorias com centro de gravidade na cidade do Porto, estas, não hesitaram em impor a sua  lei, a lei de que, hipocritamente, se diziam vítimas na vigência do velho regime. Desse período tenebroso assistimos incrédulos a impunes invasões de campo com agressões a dirigentes adversários e árbitros; agressões e atropelamentos impunes a jornalistas dissidentes numa qualquer viela esconsa, ameaças de morte proferidas em público a dirigentes rivais, agressões a autarcas incómodos, ataques a viaturas de atletas e dirigentes rivais com risco de morte, vandalizações sucessivas de agremiações de clubes rivais, aeroportos e estabelecimentos diversos, ameaças e agressões a atletas dissidentes, tudo acompanhado de sucessivos dichotes de mau gosto que os covardes, alguns bem tosados, classificavam de "fina ironia". No terreno de jogo o erro grosseiro tornou-se norma consentida por todos os que não ousavam arriscar um "lugar ao sol" no panorama do desporto nacional.. A dissidência pagava-se caro; jogador dissidente acabava excluído, árbitro descuidado descia de categoria, clube espevitado ficava sem financiamento e descia de divisão. Esvaíram-se, ingloriamente, em recursos os principais rivais do clube dominante. Relegados para a segunda liga quase todos os clubes abaixo do mondego, ainda por lá militam, quase todos vítimas da "nova ordem" instaurada com a "conquista" da almejada liberdade política; Atlético, Oriental, Montijo, Barreirense, Campomaiorense, Elvas, Farense, Portimonense - curiosamente, esta época regressado ao primeiro escalão  -, Olhanense, Lusitano, desapareceram do mapa do futebol primodivisionário.

      Com todos os defeitos que se lhe possam apontar, após a infame submissão de Manuel Damásio ao poder do norte,  um só homem foi capaz de enfrentar os novos poderes. Vale e Azevedo. Destemido, denunciou-os e enfrentou-os como pôde, chegando a encostar às cordas a entidade que viria a ser um dos pilares da supremacia portista. A Olivedesportos. Imprudente, quase só - honra a José Manuel Capristano, que nunca o traiu -, acabaria por cair na teia do sindicato bancário que apoiava os rivais, cometendo irregularidades que lha haveriam de custar, salvo o erro, 17,5 anos de prisão - cúmulo jurídico com algumas penas de origem não desportiva. Condenado, ironicamente, por um confesso adepto portista - alegado dragão de ouro -, pena que cumpriu na sequência de complexas peripécias, algumas das quais, desprestigiantes do aparelho judicial; mandar prender um homem recém-libertado após 3,5 anos de cadeia, é, simplesmente desumano e violador da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Tal como é desumano e indiciador de empenhamento persecutório a abertura de novo processo, agora contra sua mulher, após cumprimento dos 17,5 anos de prisão. Mais que castigar o prevaricador, talvez se pretenda dar um sinal à sociedade em geral e aos benfiquistas em particular, dos desígnios dos novos tempos. Benfica, sim, mas pequenino, submisso, errático vencedor, uma espécie de selo de garantia da "democracia". Se não é, é o que parece, e na esfera pública, o que parece, é.

   Esta fase tenebrosa do desporto nacional, coincidindo com o ciclo político, sofreu um profundo abalo por efeito do processo conhecido por "Apito Dourado". Uma parte sã do país, cumprindo os trâmites da legalidade, luta pela restituição da dignidade do desporto. Após aturada investigação policia,l os vastos elementos de prova reunidos dão lugar a acusações e julgamento dos vários arguidos. Paralelamente, os principais partidos do arco da governação, entendem-se e concluem mais uma reforma dos códigos civil e penal, de que resulta a anulação da validade das provas associadas a escutas, ainda que efetuadas ao abrigo da lei. O resultado traduziu-se na nulidade de quase todo o acervo de provas reunido e na absolvição dos principais arguidos, tendo sido condenada apenas, a "arraia" miúda. Ficou então claro que certa corrupção parecia consentida, quiçá apadrinhada, por agentes políticos de relevo, regionais e nacionais, que certa promiscuidade estava instalada em vários organismos públicos, incluindo órgãos de soberania. Os casos que, hoje, enlameiam a praça pública, assim o demonstram.

    Foi o Benfica de Luís Filipe Vieira, com a criação da sua TV (BTV) e a recuperação dos direitos desportivos do clube, que quase dava o golpe de misericórdia na "nova velha ordem". A concentração inamovível dos direitos desportivos dos clubes numa só entidade afeta ao clube então dominante, permitia gerir interesses e desempenhos dos vários agentes no jogo, a ponto de garantir as vitórias daquele, sem grande esforço. O dinheiro entrava a rodos e os sucessos atribuíam-se, para descanso das almas, ao desempenho da "exemplar" estrutura e à democracia. Coisa nunca vista!

   Ao pujante crescimento da BTV sucedia o definhamento da sua principal congénere - anterior detentora dos direitos do clube -, agravado com a profunda crise económica superveniente em outras entidades do respetivo grupo no setor da comunicação, consequências da crise geral. A simultânea crise que se abateu sobre os tradicionais aliados políticos do grupo, facilitadores de financiamento deste, contribuiu para o acentuar do quase descalabro de toda a organização.

   Alterações profundas ocorridas no âmbito da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, numa luta intensa conduzida por Mário Figueiredo, acabaram com a exclusividade de aquisição dos direitos de transmissão dos jogos dos clubes, que se verificara até então, implementando-se uma profunda reestruturação no setor da arbitragem conduzida por  Vitor Pereira.

      Foi toda esta conjuntura, fruto de circunstâncias aleatórias - crise económica e política nacional - e as opções estratégicas de gestão implementadas na LPFP e no Benfica, que abalaram os espúrios alicerces competitivos da agremiação dominante e  restituíram alguma normalidade ao futebol nacional, da qual resultou o crescimento competitivo do clube encarnado e os recentes sucessos conhecidos.
     
   Hoje, com as alterações verificadas nos ciclos económico e político, a reestruturação ocorrida na comunicação social e as transformações verificadas no âmbito da Liga, apesar da introdução do VAR, assistimos a um revivalismo da "velha ordem", esperemos que, de efémera duração. Erros grosseiros de arbitragem continuam a ocorrer com espantosa inanição dos órgãos institucionais respetivos e a condescendência de grande parte do comentarismo profissional. Não tardarão loas aos supinos méritos da "exemplar estrutura".

   A intolerância aos adeptos do Benfica continua a verificar-se nalguns locais, alimentada por doentia obsessão de afirmação política regional. Um caso de reiterada discriminação consentido pelas autoridades as, quais, implicitamente, mostram estar em sintonia com tais práticas antidemocráticas. Os recentes episódios ocorridos em Braga ilustram esta realidade. A edilidade local numa demonstração de descortesia, parece ter cedido ao clubismo, escusando-se a receber nos Paços do Concelho a comitiva benfiquista, apesar de estar ao corrente do enorme contingente de bracarenses simpatizantes do popular clube lisboeta. A Casa do Benfica local continua a ser alvo de reiterados atos de vandalismo sem que as correspondentes autoridades, incompreensivelmente, lhes ponham termo. Um adepto encarnado, no final do jogo da consagração da conquista do título dessa época, é barbaramente agredido por um graduado da PSP em frente ao seu Pai e seu filho, sem motivo aparente, arrastando-se o processo na corporação e nos tribunais, sem fim à vista. Por essa ocasião, nas vésperas desse jogo, uma figura destacada local tem a lata de aconselhar os benfiquistas a moderação nas comemorações, deixando no ar, eventuais riscos de represálias por parte da população local. Recentemente, na zona do grande Porto, um jovem é assassinado à pancada por ter entrado num bar com a camisola do Benfica vestida. De uma outra vez, mais remotamente ainda em Braga, um jovem é convidado a sair pela sua professora, por se apresentar vestido com a camisola do Benfica a uma palestra dum jogador do clube local, considerando-o um ato provocatório.

   Enfim, a própria Justiça tem tido comportamentos algo caricatos em vários episódios ligados ao futebol, dando a ideia de conivência de sujeição ao primado de certa região. Hoje mesmo a Comunicação Social dá conta da insatisfação das autoridades Judiciais - DCIAP - com certa postura do Ministério Público no julgamento do caso da segurança ilegal a certos dirigentes desportivos. Até para um leigo é incompreensível que seja o responsável da acusação, em pleno Tribunal, a defender a inocência do arguido, após ter concluído da evidência das provas de ilícito em sede de investigação. Algo já ocorrido com o mesmo arguido em outros processos. Outros exemplos de teor semelhante, não faltam.Tudo isto vai consolidando a ideia de que o fracionamento do país tem vindo a ocorrer a nível social e institucional através do futebol, e que, tal resulta de uma ampla concertação  política com interesse na propalada regionalização.

   Á política o que é da política, ao futebol, o que é do futebol. Vivemos uma democracia, apresentem-se à sociedade os argumentos idóneos da regionalização, contra e a favor, debatam-se, discutam-se, e decida-se conforme a vontade do povo. Deixem o futebol fora do processo.

Deixem o Benfica em paz.

Peniche, 24 de Fevereiro de 2018

António Barreto (JR)