Desporto

sábado, 3 de julho de 2021

Os Pobres (XII)

  Salazar e os pobres (Cont)

Paul Descamps (1842/1947), sociólogo belga que lecionou nas faculdades de Direito de Lisboa e Coimbra em 1935 fez um levantamento da sociedade portuguesa publicado em livro com o título “Le Portugal La Vie Sociale Actuelle”. Nele descreve uma família operária em Lisboa: homem, mulher e três filhos. Ele, serralheiro, ela mulher-a-dias, os filhos, aprendizes de serralheiro. Analfabetos os adultos, quase analfabetas as crianças. O quadro incluía bebedeiras diárias do pai seguidas de sovas à mulher. Não sendo pobres qualquer percalço os lançaria na pobreza (hoje é igual). No Alto Douro, Descamps encontrou famílias endividadas, com os homens bêbados e os filhos indisciplinados. Uma refeição típica no Minho incluía, toucinho, pão, batatas e sardinhas (nada mau). As crianças comiam o que calhava e bebiam vinho. A mortalidade infantil era de 200 por mil. (Um aspeto surpreendente face à narrativa atual é que Salazar foi decisivo na publicação do livro de Paul Descamps. Tal contradiz a ideia de que Salazar se empenhava em ocultar a miséria social do país. Nem tal seria possível, ainda que o quisesse.)

   Num episódio ocorrido, em 1939, numa escola primária de 2000 alunos em que um médico lhes perguntou o que pediriam a Salazar, um respondeu que seria “um bocado de pão”. (Mais uma vez, a ideia atual de que Salazar fomentava o analfabetismo, é desmentida pelos factos, a escola de 2000 alunos. Por outro lado, sendo, nesta época, a miséria geral uma realidade - Grande Depressão em 1929, Guerra Civil Espanhola e II GM no início - se um aluno em 2000 pedia pão, o cenário não era tão grave como parece à primeira impressão).

   Um inquérito realizado em Castelo Branco, pela mesma época, revelava uma realidade deprimente; Entre 16000 crianças do ensino primário, 3394 - 21 % -, alimentavam-se mal, 893 - 5,5 % - careciam de uma cirurgia e 512 - 3,2 % - eram retardadas. Porém, a realização do inquérito revelava que havia preocupação com o assunto e que havia um esforço real com a escolaridade da população. (Hoje, 80 anos depois, continua a haver em Portugal crianças com fome. Um inquérito realizado em 2018 na Alemanha concluiu que cerca de 20 % das crianças alemãs eram pobres, apesar dos apoios estatais). Noutro inquérito, realizado também em Castelo Branco, dava conta de agregados familiares atípicos, como o de uma criança que nunca conhecera o pai, cuja mãe desaparecera e que vivia com uma família vizinha - casal com dois filhos. A casa tinha duas divisões e dormiam todos no mesmo quarto, os adultos numa cama e todas as crianças numa tarimba. Mesmo com trabalho, viviam no limiar de pobreza. (Acho espantosa esta solidariedade hoje totalmente inverosímil; abandonam-se as pessoas à intervenção do Estado, que pode, ou não, ocorrer).

   Em 1938, um inglês radicado em Carrazeda de Anciães tinha uma visão curiosa sobre a condição da população local. Reconhecendo que havia pobreza relativamente aos hábitos de consumo da população londrina, que considerava essenciais bens supérfluos, dizia que os trasmontanos se ofenderiam se os considerassem pobres. E, de facto, tinham nas suas quintas tudo o de que necessitavam para o seu dia-a-dia e até para uma emergência. Água canalisada na cozinha não lhes fazia falta. (O comentário que MFM faz a seguir revela o seu empenho em destacar o lado mais negativo da sociedade daquela época: “Caso tivesse assentado arraiais no sul, como Mary McCarthy, teria encontrado gente a reivindicar, não água canalizada, mas uma côdea de pão”).

   Quer no Alentejo, onde predominava a grande propriedade, quer no Douro e Minho, onde a pequena propriedade era o padrão, eram os jornaleiros sem propriedade os mais pobres. Em Figueira de Castelo Rodrigo, em 1943, alimentação diária típica de um jornaleiro consistia em miga de pão de centeio antes de pegar ao trabalho - almoço -, pão seco com uma cebola crua ou queijo ou sardinha ardida ao jantar, e caldo de nabiças sem azeite à ceia. Em Dezembro e Janeiro, a situação piorava devido a falta de trabalho. Segundo o autor do relatório, José Crespo de Carvalho, a jorna de trabalho ia das 9 horas solares ao pôr-do-sol, com uma hora de intervalo ao meio-dia e, na Primavera e Verão, mais meia hora à tarde. O salário diário era de 10$00 e litro e meio litro de vinho para os homens e 5$00 secos para as mulheres. As mancebias eram raras e o analfabetismo situava-se nos 60 %.

   Em 1950, um relatório de Adelino Martins de Almeida sobre Casais do Douro, refere que os proprietários evitavam os trabalhadores locais, que consideravam desleixados e preguiçosos, apesar de miseráveis. Preferiam os trabalhadores beirões, sóbrios, cuidadosos, eficientes e submissos, contratando-os através do rogador. Este contratava os diversos profissionais da lavoura; vindimadores, podadores, apanhadores de azeitona, cavadores, etc. A roga da Quinta das Carvalhas para a vindima, por exemplo, contava com 300 pessoas. A alimentação era deplorável, constando de um caldo mais apropriado a suínos e uma sardinha salgada.

   Américo Gomes Lopes, num relatório de 1951 sobre a freguesia de Vila Nova de Tazem, considera que o nível de vida das populações locais, não sendo dos mais baixos no mundo rural era muito reduzido. O desregramento moral associado ao consumo de vinho era geral. Os trabalhadores recorriam ao vinho para enfrentarem a dureza do trabalho agrícola. Na freguesia havia 11 tabernas. O horário de trabalho era de sol a sol e os salários diários eram de 12 a 15 escudos para os homens e de 6 a 8 escudos para as mulheres. O padrão familiar incluía 3 a 4 filhos e cerca de 1/3 das famílias vivia mal. As mais pobres viviam em casebres de uma só divisão dormindo todos juntos sem cama decente, entre imundice. Aos domingos e dias santos alguns homens refugiavam-se nas tabernas, onde bebericavam e jogavam cartas, apesar de, muitas vezes, a família chorar de fome.

  Na freguesia do Fontelo, Viseu, a situação dos trabalhadores era menos dramática. João da Silva, em 1952, considera que era melhor do que a das populações vizinhas devido ao facto de possuírem alguma terra. Além dos salários, os trabalhadores tinham direito a alimentação. Antes de pegar, ao nascer do sol, havia o mata-bicho, que constava de figos secos e aguardente, às 9 horas, e pelas 1 ou 2 da tarde tinham almoço, o jantar consistia em caldo, sardinha e 2,5 decilitros de vinho.

   Em 1953, um relatório de Adalberto Navarro e Rosa, referia que, na freguesia de Cambres, a alimentação dos jornaleiros variava com a época: ao almoço, sardinha, oferecida pelo patrão, com broa, levada de casa pelo trabalhador; ao jantar, caldo, engrossado com farinha ou com feijão com massa temperada com um fio de azeite, e couves, seguido de uma tijela de arroz com feijão, bacalhau ou tomates. Um luxo tendo em conta o panorama geral.

   No caso de Alfândega da Fé, José Correia Barrigas de Azevedo, em 1955, registava que o trabalhador não vivia mal, era afável e económico, tinha amor à terra, era respeitador e, como ambição, aspirava apenas em deixar alguns bens aos filhos. (Apesar da notória melhoria das condições de vida destes trabalhadores, MFM, implicitamente, considera esta falta de ambição um estímulo negativo para os patrões).

    Em contraste, na freguesia de Beira Grande, em 1954, o regente agrícola Joaquim Ramos Barroso, dava conta do estado de pobreza dos trabalhadores, que nada mais tinham além da roupa que vestiam e que, mesmo os mais desafogados não colhiam alimentos suficientes para todo o ano. Os meses de Verão eram os menos maus. (Mais uma vez, MFM revela o propósito de sublinhar a miséria, ao referir que, em 1938, J. Gibbons, considerara que os trabalhadores da mesma freguesia viviam no paraíso, o que não corresponde à verdade; disse que tinham o essencial para viver sem o consumo supérfluo que se verificava em Londres).

   (Contrariamente à evidência do seu próprio trabalho, MFM, conclui que não havia preocupação com a pobreza por esta ser tradicional, afirmando que Salazar se limitava a manter a condição de pobreza dos trabalhadores e que esta tinha profundas raízes na sociedade. Nem os pobres tinham força para se insurgir, nem o operariado urbano tinha líderes para o fazer. Quanto à pequena burguesia, essa tinha ficado saturada com a turbulência da 1ª República. Só o PCP resistia - desde 1921, data da sua fundação. A verdade, explícita neste livro, é que as greves de Gouveia, do Porto, de Santo Tirso, do Alentejo, da Azambuja e de lisboa demonstraram precisamente o contrário, já para não falar da Revolta da Maria da Fonte. Por outro lado, os mencionados inquéritos nas escolas e os sucessivos relatórios oficiais dos Regentes Agrícolas, mostra que estava em curso a alfabetização do país e um levantamento sistemático da condição social dos trabalhadores. Mas basta consultar as estatísticas da época para constatar a redução da mortalidade infantil, do analfabetismo e o progresso económico, que ocorreu a partir de 1950. Por outro lado, a realidade social em Espanha, Inglaterra, e em toda a europa, na mesma época, não era muito diferente da de Portugal.)

(Cont.)

Fonte: Os Pobres de Maria Filomena Mónica

Peniche, 27 de Junho de 1921

António Barreto