Desporto

domingo, 17 de março de 2019

Humberto Delgado: a face “oculta” do "democrata"


  
A imagem pública do “General Sem Medo” é a do grande opositor de Salazar, romântico, impoluto, destemido, e que, com sacrifício da própria vida lutou para derrubar o regime autocrático e instaurar uma democracia em Portugal. 

   Há porém um lado semioculto, menos difundido, menos romântico, menos democrático, talvez por não servir os interesses da narrativa dominante dos fundadores do novo regime, alguns dos quais se assumem como herdeiros do legado político de Humberto Delgado.

   Num perito por alguns livros que me chegaram às mãos, com alguma surpresa e deceção, pude inteirar-me de lado mais obscuro da atividade política de Humberto Delgado e em sentido oposto, duma faceta, que desconhecia, na história do Partido Comunista Português. Do que me pareceu mais relevante elaborei duas séries de despretensiosas notas, a primeira das quais  publicada nas redes sociais. 

   Humberto Delgado foi um homem do 28 de Maio, indefetível adepto do Estado Novo e de Salazar, com uma carreira militar fulgurante, e relevantes realizações na área da aviação civil. Desempenhando um alto cargo de representante militar em Washington, sensibilizou-se com a luta de Henrique Galvão estabelecendo-se entre eles, uma amizade e admiração mútua, na sequência das visitas que lhe fazia na cadeia, sempre que regressava à Europa.

   A Henrique Galvão, no percurso da sua luta suicida contra Salazar, depois de recusar a disponibilidade do General para fazer a sua defesa judicial, ocorreu convidá-lo para candidato a Presidente da República pela oposição, nas eleições de 1958, para dar dimensão nacional à sua causa. Delgado acabou por ser candidato pelo círculo eleitoral do Porto - com a condição de não se envolver em golpes militares -, unificando todas as oposições, após desistência do candidato comunista, Arlindo Vicente, em consequência da concertação de objetivos estratégicos.

   A adesão das massas populares à campanha do candidato da oposição foi apoteótica, gerando a expetativa de vitória que acabou gorada com a atribuição de 25 % dos votos do eleitorado. Queixando-se de fraude - Américo Tomaz, candidato opositor, comentaria, mais tarde, ser esta a habitual desculpa dos derrotados -, Humberto Delgado, considerou legitimado o direito à revolta armada, seguindo a máxima de Henrique Galvão: -“quando a ditadura é um facto, a Revolta é um Direito”.

   Considerando-se o virtual Presidente da República Portuguesa rejeitou a oferta do Governo da Salazar para uma formação, na área da economia, no Canadá e receoso da sua própria segurança, Humberto Delgado pediu asilo político ao país “irmão” - com Juscelino Kubitschek de Oliveira na presidência -, asilo que viria a ser-lhe concedido, após longa e aparatosa batalha diplomática travada no espaço público, graças à intervenção do diplomata e democrata brasileiro, Álvaro Lins.

   Ali, congregando outros democratas portugueses, como Miguel Urbano Rodrigues e alguns imigrantes lusos, desenvolveu intensa atividade oposicionista, através de publicações regulares na imprensa, própria - o Portugal Livre -, ou brasileira - o Jornal de São Paulo -, etc., e de viagens de propaganda política através de vários países europeus, condicionada aos recursos disponíveis e às restrições impostas pelos governos locais, e aos países do norte de África, Marrocos e Argélia, onde encontrou franco acolhimento e apoio logístico.

   A pedido de Henrique Galvão, a quem passou credenciais como delegado do MNI junto do DRIL, assumiu a liderança política do sequestro do paquete Santa Maria, potenciando o impacto junto da comunidade internacional, a qual, acabaria por reconhecer o caráter político do ato e não um evento de pirataria, como pretendia Salazar.

   Ultrapassada a euforia do primeiro episódio de sequestro político de um navio mercante, Humberto Delgado acabou por se incompatibilizar com Henrique Galvão, recusando-lhe a direção operacional do movimento, reivindicando para si todos os poderes, político e operacional, alegando a superioridade da sua patente de general face à de capitão de Henrique Galvão. Despeitado, revogou a credencial deste, esvaziando a sua função no MNI, e cessou a parceria deste movimento com o DRIL de Pepe Velo.

   A faceta autocrática de Humberto Delgado, revela-se, talvez pela primeira vez, neste episódio, com prejuízo da eficácia das ações do movimento - Henrique Galvão era melhor estratega e operacional. Como se confirmaria mais tarde, o general, considerava-se o líder indiscutível da oposição, indisponível para partilhar ideias e protagonismo; defendia a democracia mas não a praticava. Um salazar na oposição.

   Descoroçoado com a fraca adesão dos portugueses no Brasil, acusado, juntamente com Henrique Galvão, de desvio de fundos pelos operacionais do sequestro do paquete Santa Maria, Humberto Delgado zarpou rumo a Argel, não sem acusar aquele de traição.

   Do projeto delineado para o sequestro do paquete, falhara o assalto à ilha de Fernando Pó e a Luanda. O lançamento da guerra colonial aparece, pela primeira vez, como um objetivo primordial de Delgado. Este voltaria a acusar Galvão de traição, por denúncia pública do assalto ao quartel de Beja, no seu entender, razão do fracasso do golpe. Por sua vez, Galvão acusaria Delgado de traição por denúncia do sequestro do avião da TAP que, no entanto, acabaria por ser bem-sucedido. Uma tremenda confusão originada pelo exacerbado egocentrismo de Delgado que conduziu à alienação do contributo de Galvão e ao enfraquecimento operacional da oposição.

   Os encontros de Delgado com os chefes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas em África, tinham-se iniciado ainda antes do episódio do sequestro do paquete Santa Maria. Na documentação que serve de base a este texto, há referências ao fornecimento de armamento a Holden Roberto, por Humberto Delgado, em vésperas da chacina perpetrada pela UPA, contra colonos no norte de Angola, com que se iniciou a guerra colonial. A ser verdade, não tenho dúvidas em considerá-lo, hipócrita e traidor. Uma coisa é conspirar para derrubar o governo de Salazar, outra coisa bem diferente é apoiar atos de terrorismo e de guerrilha contra o povo português; o tal povo humilde, sofrido, objeto da sua comiseração e propalada causa da sua luta pela democracia.

   No decurso da crise do paquete Santa Maria, Henrique Galvão, patriota, contra a vontade dos seus aliados, Pepe Velo e Jorge Sottomayor, recusou o fornecimento de mísseis, que a União Soviética lhe ofereceu para afundar o paquete Vera Cruz, com 1500 militares a bordo. Não encontrei qualquer referência à posição de Humberto Delgado sobre este assunto, mas é certo que, este, confessou publicamente a sua admiração pelos países socialistas, Checoslováquia e URSS, enaltecendo a qualidade de vida das respetivas populações. A determinação de derrubar, mesmo, matar, Salazar, era comum, mas, Henrique Galvão, ao contrário de Humberto Delgado, preocupava-se em poupar os portugueses. 

   Tinham oposições diferenciadas sobre as colónias; ambos defendiam a autodeterminação dos povos colonizados, sujeita a referendo, mas, Galvão, considerava-os impreparados para a independência imediata e, ao contrário de Delgado, não consta que tenha apoiado a luta armada nas colónias.

   Com falta de apoio político no mundo livre, que, formalmente, respeitava Salazar e Portugal, Humberto Delgado, desliza para a esfera socialista através de Álvaro Cunhal, conseguindo recuperar clinicamente, na Checoslováquia, duma hérnia que o apoquentava e quase o matava - Henrique Cerqueira, o seu braço direito, acabaria por afirmar ter-se tratado, efetivamente, duma tentativa de homicídio gorada pela pressão mediática que foi despoletada pelos seus correligionários.

   Ainda em recuperação, Delgado, acedeu à concentração da oposição numa nova organização, a Frente Patriótica de Libertação Nacional, com a adesão do seu Movimento Nacional Independente. Tendo-se concertado estratégias no primeiro congresso, privilegiando a luta armada em Portugal, rapidamente emergiram divergências insanáveis entre Humberto Delgado e os restantes membros da Frente - com algumas exceções, entre as quais, Mário Soares e Emídio Guerreiro -, com destaque para o Partido Comunista.

   Para as autoridades portuguesas e espanholas, Humberto Delgado estava sinalizado como o líder privilegiado da URSS para a península ibérica. Neste contexto, o choque com o PCP assumia particular gravidade; a sobrevivência do partido estava em causa, tal como a integridade programática do general.

   É aqui que surge uma circunstância duplamente reveladora e surpreendente; enquanto Humberto Delgado se empenhava no planeamento da luta armada em Portugal sujeitando os portugueses a uma guerra civil de consequências imprevisíveis, o PCP defendia um trabalho prévio de consciencialização de massas, preparando-as para a adesão maciça a um futuro pronunciamento militar, poupando a população a uma guerra sangrenta. Sendo um decidido opositor do comunismo e um crítico da ação política do PCP, não hesito em elogiar-lhes o comportamento aqui referido e sentindo-me grato.

   De facto, Humberto Delgado, com o apoio logístico e militar do governo argelino recém-independente, presidido pelo ex-líder militar e ex-jogador do Marselha, Ben Bella, acordou a formação de uma força mista com um ex-oficial republicano espanhol, constituída por cerca de 8 mil operacionais espanhóis e, eventualmente, portugueses, armada e treinada pelo governo de Ben Bella, constituindo a Legião Estrangeira argelina, com a finalidade de invadir Portugal e Espanha, a partir do Algarve e derrubando os respetivos governos e unificando a Península Ibérica instaurando nela, uma república socialista. Adicionalmente, comprometiam-se a aceitar a integração no comando militar argelino enquanto permanecessem na Argélia e a intervir na sua defesa contra Marrocos, em caso de necessidade, ou de neutralização de eventual rebelião interna.

   Humberto Delgado, aceitou e assinou estas condições. A sua cegueira pelo poder, a sua sede de vingança contra Salazar sobrepunha-se à sua repulsa pelo totalitarismo socialista, ao seu amor à democracia, à sua comiseração pelos conterrâneos sofredores. O seu ego degradou os seus valores democráticos e humanos, o seu patriotismo, ao aceitar constituir-se em mercenário dum exército estrangeiro a troco do apoio no derrube do seu arquirrival.

   Sediado em Argel, o “General sem medo” concertou, com os chefes dos movimentos de libertação, estratégias diplomáticas e operacionais de apoio à guerra colonial que moviam contra Portugal, Contra o “Zé soldado”, reiteradamente chorado pelos poemas hipócritas de Manuel Alegre, dos quais os “fascistas” Salazar e Caetano, permitiam a difusão pública nas rádios, em particular pelo extraordinário Adriano Correia de Oliveira, juntando-se
às numerosas canções de protesto de José Afonso e Luís Cília, e aos “reacionários” Tristão da Silva, Amália Rodrigues e Alan Ou
lman.

   Humberto Delgado estava em guerra com o Governo da Salazar e foi morto em circunstâncias não totalmente esclarecidas, em vésperas da planeada invasão de Portugal. Irresponsavelmente corajoso, tolo, não percebeu que a sua organização estava, desde o início, infiltrada pela polícia política de Salazar, que o atraiu a Badajóz , onde o neutralizou, cientificamente, em Villa Nueva Del Fresno, no camiño de los malos pasos, às portas da fronteira de Elvas.

   Neste contexto, defendo que Humberto Delgado não é digno da homenagem que lhe foi feita com a atribuição do seu nome ao aeroporto de Lisboa. Esta operação, consistiu, apenas, em mais uma manobra de propaganda socialista, visando induzir nos cidadãos a ideia de que, o legado político do “General Sem Medo” era protagonizado pelos autores do encómio; o Partido Socialista e os seus líderes do momento. Um embuste de uma democracia falhada sustentada na expetativa da inevitável ignorância dos portugueses vulneráveis às manipulações dos atuais detentores do poder.

Peniche, 9 de Fevereiro de 2019
António Barreto

terça-feira, 5 de março de 2019

Bruno Lage; A Revolução Tranquila


Bruno Lage   Das explicações que por aí ouvi acerca das causas da transformação que se verificou na equipa de futebol sénior do Benfica após a entrada do novo Treinador oriundo da equipa B, nenhuma focou os apetos que considero essenciais.

   Desde o tempo em que treinou os Juniores da Luz que Lage revelou grande talento. A sua saída deixou um sentimento de perda em quem acompanhava o seu trabalho, mesmo a distância. O seu regresso - saudado pela generalidade dos adeptos - agora à equipa B, traduziu-se na imediata melhoria nos resultados desportivos da equipa.

   Foi a comunicação, dizem uns. Foi a atitude dos jogadores, dizem outros. É verdade, mas nenhuma destas razões é primordial no salto qualitativo da equipa.

   Antes de mais a saída do anterior Treinador - pessoa estimável - foi parte da razão; os jogadores sentiram-se libertos duma liderança confusa, titubeante, periférica e conformada, que, frequentemente, relativizava a importância das derrotas e se revelava incapaz de promover a progressão qualitativa do modelo tático. Uma espécie de pesado lastro, com origem no treinador, impedia a equipa de evoluir. Sem disciplina tática, a equipa vivia do talento dos jogadores, que lá conseguiam subir, à custa de tabelas de dois, três jogadores, e esporádicos lançamentos longos, com que se ganhavam os jogos menos exigentes.

   O resto é de Bruno Lage; e o resto é quase tudo. Lage é portador da cultura profunda do Benfica; vem dali da zona do Barreiro, alfobre de grandes figuras do clube, e vem do grande Jaime Graça; nos seus tempos áureos o melhor extremo direito da Europa. Nenhum jogador, nenhuma equipa, nenhum estádio temia. Bruno Lage, interiorizou essa cultura, a cultura da vitória e da nobreza de caráter.

   “O Benfica são as pessoas”, disse Lage, e esta é a essência do Benfica. É o que os seus adeptos sonham, sentem e vivem, que move o Benfica; tudo o resto é instrumental; presidentes, dirigentes, treinadores, estádios, campos de treino, etc. A cultura de Bruno Lage vem das fontes do benfiquismo.

   Tudo isto é fundamental mas insuficiente para produzir o tal “milagre” que se verificou. O resto é…conhecimento profundo do jogo e competência emocional. Bruno Lage é possuidor de ambas. Revelou-o desde o início.

   Logo que se pronunciou foi direito ao essencial identificando como prioridades a disciplina de ocupação do terreno e as dinâmicas táticas. O resto, o talento para a execução, está nos jogadores e revela uma outra competência decisiva de Lage; a capacidade de perceber as qualidades intrínsecas de cada um e o momento em que se encontram.

   Acabaram-se os grande “buracos” no terreno, avenidas, por onde qualquer boa equipa fazia progredir o seu jogo na direção da baliza encarnada.  Acabou-se com o futebol “estático” em que o portador da bola era obrigado um duelo desigual, de um para dois ou para três, por falta de linhas de passe disponíveis. Acabaram-se as rececões estáticas, os passes de baixa velocidade ao 2º e terceiro toques. Acabou-se com as corridas inglórias trás da bola, com os jogadores a chegarem quase sempre atrasados. Acabou-se com o futebol denunciado e o desgaste físico precoce da equipa.

   É certo que, aqui e ali, ainda aparecem os “fantasmas” jogo do passado, mas paulatinamente, a equipa consolida a nova postura tática:

o   Ocupação racional e dinâmica do terreno de que resulta, na fase defensiva:

o   Redução de espaços dificultando a progressão do adversário.

o   Rápida reação à perda de bola dificultando a construção do jogo adversário.

o   Criação de superioridade numérica nas disputas de bola.

o   Repartição do esforço físico de recuperação da bola.

o   Na fase ofensiva

o   Rápida desmarcação para os espaços livres, abrindo várias linhas de passe.

o   Aumento da dificuldade de leitura de jogo por parte do adversário.

o   Dispersão do adversário no terreno, dificultando a formação dos bloqueios coletivos.

  À disciplina tática permanente junta-se o aumento da velocidade de troca da bola, receção dinâmica em progressão, de frente para o adversário, e entrega ao primeiro, segundo toque. Daqui resulta que, quando o adversário faz a leitura do lance, normalmente, já é tarde para reagir. Vimos isso nos últimos jogos. Com Samaris e Gabriel a equipa recuperou capacidade atlética e criativa, ganhando mais lances no corpo a corpo e capacidade de colocação da bola, com precisão, a longas distâncias. Por outro lado, os jogadores vão perdendo o “respeito” aos guarda-redes, rematando nas proximidades da área, com resultados já bem visíveis. Tudo isto é maximizado pela alegria dos jogadores, que provém da confiança na liderança da equipa; Bruno Lage sabe “ver” os detalhes táticos do jogo como muito poucos treinadores, e sabe como alterá-los.

   Com uma humildade que lhe provém da nobreza de caráter, Bruno Lage, indiferente às controvérsias periféricas, endossa aos seus jogadores os méritos do desempenho e agradece-lhes o seu crescimento como treinador. E isso cala fundo no coração dos seus jogadores e dos adeptos.

Peniche, 05 de Março de 2019
António Barreto