Desporto

sábado, 3 de setembro de 2022

Gratas Memórias

 

Memórias de Bordo

 

   Naquela manhã havia algo diferente. Era a luz. Conhecia aquela luz. Dirigi-me à vigia, que dava para a proa, e afastei a cortina de tecido verde e poroso. Num instante estava nos campos da Várzea, repletos de erva fresca, dum verde quase translúcido, gotejando o orvalho da aurora, salpicados do amarelo claro das “mijonas”. As águas cristalinas do ribeiro rumorejavam suavemente, saltitando de pedra em pedra entre pequenos chorões, onde pintassilgos e piscos chilreavam alegremente. O canto dos piscos, e o seu exuberante peito vermelho, por si só valiam a expedição. Naquela manhã de primavera não resistira ao apelo do campo, a todo aquele verde que parecia infinito, ciente das consequências de ter faltado à escola; a professora Matilde iria zangar-se e os meus pais não me perdoariam; amar a natureza não era desculpa suficiente.

   Não me enganei; a luminosidade suave, difusa, da manhã, definia os azuis matizados do céu e do mar. Tranquilamente o navio deslizava rumo ao infinito sob o surdo rumor sincopado e distante da máquina. No amplo convés cinzento avistava-se a escotilha da “casa das bombas” as quais, uns bons vinte metros abaixo do convés, permitiam gerir a estabilidade do navio.

   Acabara o quarto das oito, para mim o mais difícil. Sentia-me bem, podia descansar um pouco mais tarde. Tomei banho, mudei de roupa e fui dar uma passeata ao tombadilho da ponte. Debrucei-me sobre o varandim de vante observando fascinado aquela imensidão luminosa e tranquila, grato por fazer parte dela.

   Saíramos de Luanda no dia anterior rumo a Lisboa. Fomos recolher os haveres dos nossos compatriotas escorraçados pela guerra civil. Espalhados no cais, os contentores. Ouviam-se tiros na cidade. No chão da avenida, que tantas vezes percorrera a pé até à Praia da Barracuda, viam-se alguns vultos imóveis. Pareciam pessoas. Lembrei-me do pedido que o meu primo Totta me fizera, mas não me atrevi a sair do navio; o tempo era pouco, o risco grande e não tinha como ir-lhe buscar as mobílias a casa. Soube depois que a FNLA fizera uma investida na cidade contra os restantes grupos de guerrilha. Matutava nisto quando ouvi passos:

   - Bom dia, Barreto; Vamos dar a volta. Disse o 2º Piloto.

   - Bom dia, Esteves; dar a volta? Retorqui, supondo que iríamos fazer algum exercício de segurança.

   - Sim; o Comandante recebeu uma mensagem do Presidente da República a pedir para irmos ao Lobito buscar os portugueses que estão acantonados no cais, encurralados pelos guerrilheiros da FNLA, que invadiram a cidade.

   Após uns segundos a digerir aquilo, respondi:

   - Nesse caso vamos fazer, com urgência, uma reunião de oficiais, para delinearmos um plano de apoio às pessoas a propor ao Comandante. Ainda são uns quatorze dias de viagem; há-de haver muita gente com problemas, sobretudo mulheres e crianças. 

   Era o tempo dos delegados sindicais; cada categoria profissional elegia um delegado, constituindo-se uma comissão que debatia os assuntos internos, cujas conclusões, sendo caso disso, eram apresentadas ao Comandante. Eu era o delegado dos oficiais de Máquinas e coordenador da comissão eleito pelos restantes delegados.

   Reunimos ainda nessa manhã a oficialidade subalterna; avaliámos o que podíamos fazer e, eu e o 2º Piloto - delegado dos oficiais náuticos -, incumbidos pela comissão de delegados, propusemos ao Comandante uma reunião geral de tripulação para convidar todos a aderirem ao nosso plano, que consistia em disponibilizar os nossos camarotes às senhoras com filhos ou pessoas doentes, restringir as nossas refeições ao mínimo - tipo um prato de sopa por refeição, ou uma sandes - libertando mantimentos para os mais carenciados, manter a enfermaria de serviço aberta em permanência - tínhamos um enfermeiro a bordo e o 3º Piloto, estudante de medicina, tinha experiência de banco. E pedir-lhe para canalizar aos conterrâneos resgatados todos os meios disponíveis em matéria de mantas, cobertores e alimentos, reservando o leite exclusivamente para as crianças. Água não faltaria; tínhamos os tanques cheios e o navio fabricava-a com abundância.

   O Comandante Câmara, homem de elevada estatura, barbudo, um tanto ríspido mas, ao-fim-e-ao-cabo, uma boa pessoa, surpreendido, alegando que o navio não dispunha de mantimentos para tanta gente, perante a nossa insistência e disponibilidade, autorizou a reunião.

   Marcámo-la para a noite do mesmo dia, aí pelas 2100 horas, na sala de convívio do navio. Fizemos correr palavra e, à hora aprazada, lá estávamos, os delegados, aguardando a chegada dos restantes tripulantes, enquanto o navio prosseguia a sua marcha já rumo ao Lobito.

   Foram chegando os tripulantes, e, a certa altura, ouviram-se protestos em voz alta de alguns dando conta da sua discordância da ida ao Lobito devido ao risco inerente. Sentimos o perigo duma reviravolta. Naquele contexto, em que afundar um navio mercante desarmado era acessível a qualquer operacional munido de um lança roquetes ou bazuca, o medo poderia propagar-se como rastilho, gerando o pânico, e conduzir a um resultado oposto ao que pretendíamos.

   Não havia tempo de avisar o Comandante. Decididos a “matar” a dissidência à nascença, iniciámos a reunião de imediato iniciando os Trabalhos, com a votação da ida ou não ida ao Lobito. Declarei de imediato que me demitiria caso a decisão fosse pelo regresso imediato a Lisboa esperançado qua tal não ocorresse.

   Surtiu efeito, para meu alívio, a esmagadora maioria dos tripulantes votou a favor da ida ao Lobito. Senti algo difícil de descrever, foi um pequeno gesto, é certo, mas, naquele navio, quase todos, indiferentes ao eventual perigo, decidimos socorrer os nossos concidadãos em desespero. O desafio era o de chegarmos antes de serem chacinados. Senti uma espécie de enaltecimento e algum orgulho; afinal, ainda eramos uma comunidade solidária.

   Quando o Comandante chegou tudo estava consumado. Alertado pelo imediato - de alcunha “o Mãozinhas” -, manifestou a sua indignação pela alteração do motivo da reunião. Aceitou, porém, a justificação que lhe apresentei de imediato, em nome da Comissão de Delegados.

   Chegámos ao Lobito noite dentro, talvez meia-noite, duas da manhã. A multidão esperava-nos no cais, ansiosa. O embarque decorreu sem incidentes e o navio zarpou, sem demora, rumo a Lisboa.

   Cumprimos o plano estabelecido ao qual aderiu a maior parte dos tripulantes, incluindo o Comandante, o Imediato, o Chefe de Máquinas e o 1º Maquinista. Nós, oficiais subalternos dormíamos no chão do escritório do convés, revezávamo-nos no serviço de enfermaria e, não nos tendo faltado nada de essencial, alimentávamo-nos mais frugalmente. Dávamos o apoio possível a um ou outro caso mais delicado, pessoas doentes ou crianças com fome, mas, que me recorde, não houve qualquer situação grave além do desconforto, resultante da precariedade das acomodações nos porrões.

   Chegámos a Lisboa sem incidentes de maior, com o sentimento, discreto mas indelével do dever cumprido.

   Lamento não me recordar dos nomes dos restantes colegas, apesar de ter memorizado os traços gerais das suas feições. 

   Hoje, gostaria de os encontrar e recordar esses tempos.

   O navio era o H. Capelo, o maior navio frigorífico da nossa frota da época.

H.CAPELO

   Peniche, 03 de Setembro de 2022

   António Barreto

Um Pouco de História (VIII)

 

As mulheres na República Romana

 

  “O traço mais grave e mais geral da vida elegante dos romanos do fim da república é a liberdade das mulheres, que são como os homens; Têm as mesmas ocupações, os mesmos negócios. Casam-se e descasam-se com frequência. Passam de mão em mão: Lúculo casou com Clódia; depois com Servília, irmã de Catão, mãe de Bruto, amente querida de César; com Servília de quem se dizia faltar-lhe só um dos vícios de Clódia – o ter sido amante dos irmãos. O próprio Catão divorcia-se a pedido de um amigo, e quando o amigo morre volta a casar com a mulher de quem se separara. O celibato ia-se tornando regra e o malthusianismo no matrimónio era, como é hoje, a lei de toda a gente rica. Emancipadas, as mulheres intrigam, conspiram; nos seus salões dão o tom à política e fazem dos seus amantes instrumentos. César tê-las ia como sócias – César que se deitou em todos os leitos de Roma. Terência governa Ciro, Fúlvia Marco António. No Verão, as praias eram a época privilegiada do reinado feminino: em Abril suspendiam-se as sessões do Senado e começavam os passeios, as pescas, os piqueniques, onde as intrigas de amor se entrelaçavam com as políticas, e as leoas romanas traziam pelo beiço os janotas efeminados em cujas mãos estavam os destinos da república. Livres, as mulheres mostravam uma cobiça ainda superior à dos homens, porque a mulher, mais fina, mais artista, era requintada em tudo. Era célebre Afrânia, esposa do senador Licínio Búcio, pela sua paixão pelas demandas: ela em pessoa ia advogar as causas perante o pretor, atroando o Foro com a sua eloquência histérica. Tinha passado em moda dizer que uma mulher atrevida era uma afrânia.

   Também só os casos excessivos eram capazes de impressionar o romano blasé. As dançarinas, as atrizes, as cantoras, as citarinas e toda a espécie de cortesãs mais ou menos artistas tinham-se tornado o enlevo das senhoras da boa sociedade, que lhes copiavam as modas imitando-lhes os costumes. Précia foi uma espécie de Sara Bernhardt: foi amante de Betego e em seu nome governou a república. Os escândalos repetiam-se diariamente e constituíam o melhor das conversas. Só um caso excepcional, como foi o de Clódio em casa de César, já pontífice, era capaz de dar brado.”

Agripina Maior 14 a.C

História da República Romana

Oliveira Martins

Peniche, 03 de Setembro de 2022

António Barreto