Desporto

quarta-feira, 14 de abril de 2021

O Fogueiro Fadista

 O pesado silêncio do quarto noturno era apenas quebrado pelo surdo rumor da combustão das caldeiras. Frente a cada uma, os três fogueiros, imóveis, fixavam o olhar, ora nos visores de nível de água, ora nos manómetros, assegurando-se de que se mantinham no regime de trabalho: visor a meio e pressão a 42 bar.


O Vítor d’Alfama, ainda jovem, de serviço à caldeira de bombordo e sempre a cantarolar, destacava-se pelo aprumo e penteado, donde sobressaía uma brilhante, volumosa e perfeita popa.

De pé, junto à escrivaninha, em silêncio, imerso nos pensamentos próprios dum jovem de 19 anos, cabia-me supervisionar o grupo, atento a tudo.

Do seu canto, perguntou o Vítor: “Oh “sou” terceiro, conhece o fado das duas fotografias?” “Não”, respondi, a pensar no que iria sair dali. “É um fado muito bonito! Gosto muito deste fado!" Posso cantá-lo?”. “Pode." Respondi, percebendo a compulsão da saudade que o atingia, enfiado num caixote de aço e perante os cerca de dois meses de viagem que tinhamos pela frente.

Então, O Vítor d’Alfama virou-se para a caldeira, aquele mostrengo cinzento a roncar, como se estivesse perante uma sala de espetáculos cheia de gente, respirou fundo e começou a cantar, a plenos pulmões e a preceito, o fado das duas fotografias,

“No meu pequenino quarto
Há duas fotografias,
De mirá-las não me farto
É com elas que eu reparto tristezas e alegrias.
De mirá-las não me farto,
É com elas que reparto, tristezas e alegrias.

Há dias fui-me deitar,
E tive a impressão que ouvi,
As duas p’ra mim falar
Dizendo vai descansar
Que nós velamos por ti.
As duas p’ra mim falar,
Dizendo vai descansar,
Que nós velamos por ti,

De manhã quando acordei
Sorridente e satisfeito,
Para as duas fotos olhei
Falei, os bons dias dei,
Aos guardiões do meu leito.
Para as duas fotos olhei
Falei, os bons dias dei,
Aos guardiões do meu leito.

Decerto as duas trocaram,
Um sorrisinho contente,
Eu saí elas ficaram
E como sempre esperaram
Que eu voltasse novamente.
Eu saí elas ficaram
E como sempre esperaram
Que eu voltasse novamente.

São fotos são fantasias,
Há quem diga mas porém,
Não me afetam ironias,
Pois essas fotografias,
São meu pai e minha mãe,
Não me afetam ironias,
Pois essas fotografias,
São meu pai e minha mãe!”

Calou-se o Vítor, voltando a fazer-se ouvir o surdo roncar das caldeiras, entrecortado por breves aplausos da escassa assistência.

Já no camarote, apesar de achar o tema algo lamechas, lá fui esgravatar na viola, que comprara precisamente em Alfama, mesmo frente ao Limoeiro, a ver se tirava os respetivos acordes, algo que não me saiu lá muito bem às primeiras tentativas.

O Vítor d’Alfama sofria do mal dos marinheiros. Sofria de saudade.

(Episódio passado no Infante Dom Henrique, lá pelos idos de 1971)


Peniche, 14 de Abril de 2021
António Barreto