Desporto

domingo, 1 de novembro de 2020

Cinco míseros escudos

  Eh pá, se fores a terra não leves dinheiro! Quando eles topam assaltam a malta. Assim fiz; fui a terra sem um tostão no bolso! Uma das coisas mais estúpidas que fiz na minha vida marítima!



   Foi pelos idos de 73, teria aí uns 22 anos. O Uíge fazia a carreira Lisboa-Bissau-Lisboa. Transportava militares, nos dois sentidos. Uma missão algo deprimente. Especialmente deprimente quando alguns tripulantes aproveitavam para fazer um dinheirinho extra. A bordo vendiam-se relógios, rádios, sandes, sei lá mais o quê, aos jovens e ansiosos militares que viajavam nos porões atulhados. Daquela vez, não sei o motivo, o navio fez escala em Cabo Verde, salvo-o-erro no Mindelo.

   Admirador da música cabo-verdiana, do Bana, do Eugénio Tavares, do Fernando Queijas, do tom dolente e ritmo ondulado das mornas e da alegria vibrante das coladeras, tinha que a ouvir na fonte, nas tabernas, onde era tocada em modo livre - tipo “jam session" -, habitualmente em convívio de gerações que incluía instrumentos típicos como, rabeca, violino, viola, cavaquinho, clarinete, reco-reco e maracas, entre garrafas de vinho tinto e cachaça e alguma "bucha" para enganar a fome.

   Anoitecia quando o navio atracou. Anda tinha umas horas livres, três ou quatro antes do próximo quarto. E lá fui, à sorte, na direção da cidade, perguntando às poucas pessoas que ia encontrando, por uma tasca onde fosse possível ouvir música.

   Ao passar numa rua escura, ouvi os sons ténues do que parecia ser uma rabeca. Fui atrás deles. Encontrei a taberna. Entrei. Uma ténue luz amarelada difundia-se na pequena sala logo após a entrada, de portas escancaradas. Em frente o balcão com algumas garrafas e copos de vinho e cachaça. Taberneiro no seu posto, trapo ao ombro e olhar inquisidor. Uns quantos clientes, quatro ou cinco, estavam por ali, pacatamente, conversando e bebendo. De uma das salas do lado vinha um som meio fanhoso da tal rabeca e algo semelhante a maracas e reco-reco. Disseram-me que estava lá um certo fulano a tocar com miúdos “se calhar é uma espécie de escola, pensei”. Um dos presentes, um pouco mais velho que eu veio em minha direção. Conversámos. Não se podia entrar na sala donde vinha a música. Era o reservado! Pediu duas violas, mandou vir uma garrafa de vinho tinto, chamou dois colegas e fomos para uma salinha anexa, aberta.

   Eram bons de viola; sobrava-lhes tempo para aprender e tocar. Tal como a mim, afinal. Tocaram umas modas, várias; mornas e coladeras. A solo e em duo. Maravilhado com tudo aquilo, quando chegava a minha vez acompanhava-me nuns fadinhos, daqueles que todos os portugueses conhecem. Disseram que era bom. Quis acompanhá-los nas coladeras. Que não, que não dava. Que não sabia. Era verdade; não é fácil fazer os baixos bamboleantes da morna e os arpejos ritmados da coladera. Pelo meio, íamos bebendo uns tintos, entusiasmados com a tertúlia. “Este é que era bom para tocar connosco”. Ouvi entre a pequena multidão que se foi juntando. “Pois era, pensei, para mim era, mas…amanhã já cá não estou! Vamos a todo o lado e não estamos em parte nenhuma.”

   Chegada a hora - Foi até à última -, despedi-me e saí. Já na rua, percebi que era seguido. Voltei-me. Era o músico de quem tinha acabado de me despedir. Olhei para ele sob a luz mortiça que se escapava da porta da taberna. Era jovem, sim. Meio andrajoso, vestia algo parecido com zuarte, calças rasgadas nalguns sítios e…descalço! Descalço, meu Deus!

   Comovi-me. Tínhamos ficado amigos. Como era possível andar roto e descalço? Pediu-me cinco escudos para uma garrafa de vinho. Disse-lhe a verdade; não tinha! Insistiu dizendo que impedira um colega de me assaltar, de navalha. Voltei a dizer-lhe que não tinha e convidei-o a acompanhar-me a bordo. Dar-lhe-ia então, com todo o gosto, algum dinheiro. Não quis. Eu não tinha tempo de ir e voltar, estava a pé.

   Olhei-o mais uma vez, antes de retomar o caminho de regresso, triste e comovido, sentindo-me profundamente estúpido por ter acatado o conselho do meu camarada…até hoje. Ocorreu-me mais tarde que talvez tivesse aceitado a camisa, se lha tivesse oferecido. Soube muito tempo depois que, por essa altura, abatia-se sobre Cabo Verde a maior seca das décadas precedentes.

   Desapareceu na penumbra. Nem sequer recordo o seu nome. E se o soube, esqueci-me dele!

24 de Outubro de 2020

António Barreto

Benfica 2020 - Resultados eleitorais



A novidade destas eleições não residiu na vitória da lista de Filipe Vieira mas no resultado significativo da Lista de Noronha Lopes e na estrondosa derrota de Gomes da Silva.

Filipe Vieira tinha os trunfos na mão e jogou-os no momento certo. Com o regresso de Jesus, a contratação de bons jogadores, um início de época auspicioso e promessas de um futuro europeu risonho, depressa os benfiquistas esqueceram o fracasso da época anterior e optaram pela continuidade, receosos da turbulência desportiva que uma mudança de rumo acarretaria na época em curso. Porém o comportamento de Filipe Vieira ficou indelevelmente marcado pela negativa ao ter-se recusado a debater com os dos outros candidatos e ao vedar o acesso destes à BTV onde poderiam explanar as suas ideias. Os interesses do Benfica estão acima dos de qualquer candidato ou Direção, e o seu destino deve ser decidido pelos sócios. Manter a BTV fora da campanha eleitoral com o pretexto de evitar o “ruido”, constituiu uma habilidade maldosa que contraria a cultura aberta e democrática do clube. Saiu beneficiada a lista de Filipe Vieira uma vez que a estação, implicitamente e desonestamente, foi fazendo campanha em seu favor.

Noronha Lopes, aparecendo a poucos meses do ato eleitoral com um projeto mobilizador, dinâmico, virado para o sucesso desportivo da equipa masculina de futebol sénior, congregou um vasto grupo de apoiantes entre os quais, ídolos do futebol, figuras da cultura, académicos, gestores, empresários, etc. Gente com acesso ao espaço público, com boas ideias e com disponibilidade para as discutir e aprofundar. A votação expressiva na lista de Noronha Lopes, deixa filipe Vieira com margem de erro residual no mandato em curso e coloca sob pressão o seu eventual sucessor, Rui Costa.

Gomes da Silva, não obstante a sua determinação, obteve uma estrondosa derrota, que o afasta de quaisquer ambições futuras. Julgo porém que terá sido vítima do voto útil. Muitos dos seus apoiantes terão intuído vantagem da lista B e mudaram a sua decisão de voto. Por outro lado foi também prejudicado pela vertente negativa da sua campanha e pela tardia apresentação pública da sua equipa. Sem dúvida alguma é dele o mérito do aparecimento duma oposição robusta a Filipe Vieira. Oposição imprescindível ao progresso do clube, ainda que à custa de alguma turbulência.   

De sublinhar a entrada em liça de Bernardo Silva cujas declarações certamente contribuíram na ponderação de mutos sócios que vêm nele o símbolo do adepto genuíno. Já Jorge Jesus deveria ter ignorado a rasteira do jornalista e ter-se abstido de comentar o assunto.

Resta esperar que não ocorra a dispersão dos opositores, que estes se revelem funcionais no acompanhamento do dia-a-dia do clube, na sua defesa perante inimigos externos e, sobretudo, na apresentação e discussão de propostas estratégicas para o futuro.

Peniche, 01 de Novembro de 2010

António Barreto