Desporto

sábado, 18 de fevereiro de 2023

A Instrução Pública em 1820

 

A Instrução pública em 1820

 

   A temática do ensino foi muito debatida em Cortes na sequência da Revolução Liberal de 1820. Numa época em que vigorava o modelo da reforma pombalina - em que a Coroa aboliu as escolas jesuítas, com o propósito de as substituir por uma rede de escolas públicas, projeto que nunca alcançou a eficácia do modelo anterior e que muitos consideram causa do atraso de Portugal -, as ideias iluministas e a experiência da Revolução Francesa inspiraram alguns intelectuais liberais estudar e propor, em Cortes, a reforma do sistema de ensino, cientes da importância do conhecimento para a emancipação individual e para o progresso social e económico do país.

   As propostas incidiram sobre o ensino das “primeiras letras”, o ensino intermédio e a universidade.

Afirmou-se o direito do cidadão à educação e a obrigatoriedade do Estado em garanti-la desde o berço.

Aos pais impunha-se a obrigação de levar os filhos à escola pública. Ao Estado atribuiu-se o dever de os educar e o direito de escolha do método, considerando-se as crianças propriedade pública. Este entendimento, afinal, vigora ainda hoje, colidindo com o conceito de liberdade que tanto se apregoa.

Também houve quem defendesse o ensino privado e o direito dos pais escolherem a escola dos seus filhos, com o propósito de os subtrair à doutrinação política da Escola Pública.

Duzentos anos depois, o problema persiste; o desejo de formar clientelas e eleitores prevalece relativamente à elevação da capacidade crítica dos alunos.

Entre os proponentes distinguiram-se Borges Carneiro, Santos do Vale, Mouzinho de Albuquerque, Soares Franco, Almeida Garret e os irmãos Passos, entre outros.

   Nas primeiras letras, a população, analfabeta, pedia escolas, cerca de 160, conseguindo apenas 60 por parte da Coroa, que para o efeito criara o imposto literário. Surpreendente, este empenho dos cidadãos, conscientes da necessidade da escola. Normal a insuficiente resposta do Estado, sempre com outras prioridades.

Defendeu-se a criação de duas escolas por aldeia ou povoação, uma para meninos, outra para meninas, onde se ensinasse a ler, escrever e contar e os catecismos civil e religioso, uma vez que o catolicismo era a religião oficial. As escolas de meninas incluiriam as tarefas domésticas tradicionais.

Incentivou-se o ensino privado permitindo a livre formação de escolas, independentemente das habilitações do respetivo autor, e proibindo aos organismos públicos a criação de dificuldades à sua constituição.

Validou-se o ensino mútuo, mediante o qual, devido à escassez de professores certificados, se podia recorrer livremente a particulares dotados de competências informais.

Por fim, alertou-se para o facto de alguns recebedores do imposto literário se apropriarem do produto da coleta adquirindo propriedades para si, fazendo uma vida de opulência.

A receita deste imposto passou a ser usada para fins diversos dos que lhe eram próprios, financiando despesas correntes, em prejuízo da expansão da rede de ensino primário.

   No ensino intermédio defendeu-se a criação de escolas, uma por distrito; de transição para o ensino superior, os liceus, e de ensino das artes, as escolas politécnicas, às quais foi atribuída importância superior à universidade, dado o caracter pouco prático desta e a necessidade de desenvolvimento económico do país.

Mais uma vez, reconheço aqui um constrangimento do sistema educativo de hoje; a corrida aos graus académicos socialmente “nobilitantes” mas de utilidade marginal, em detrimento da aquisição de competências para o real mercado de trabalho.

Tal realidade demonstra que a transição cultural da sociedade para a democracia ainda não ocorreu, uma vez que o reconhecimento da dignidade humana deve ser intrínseca, associada ao comportamento social de cada um, e não dependente de graus académicos, cargos ou funções que se exerçam.   

   O ensino superior era monopolizado pela universidade de Coimbra - à qual competia também o controlo pedagógico do ensino secundário -, completamente controlada por eclesiastas católicos, regulares e irregulares.

O seu conservadorismo radical e inutilidade prática suscitou as mais veementes e corrosivas críticas dos liberais os quais defendiam que aos padres e frades competia a igreja e o seminário, enquanto a universidade pertencia à sociedade Civil.

Defendeu-se o fim da acumulação de cargos, por ser praticamente impossível o desempenho simultâneo de ambos, em especial aos eclesiastas, visto ser despropositado o ofício religioso na universidade.

Houve até propostas para a abolição da universidade - de Soares Carneiro -, por a considerar inútil e perniciosa, defendendo a criação de escolas de artes espalhadas pelo país, que habilitassem a população para o exercício das profissões de que havia carência. Não é este um problema dos nossos dias?

 Discutiu-se as finanças da universidade, uns defendendo a sua autonomia face à Coroa, outros a integração na Administração Pública, que a financiaria, ficando com as respetivas receitas - das vacinas e outras - e o respetivo património. O corpo docente seria integrado na função pública.

Uma das críticas que se fez à universidade radicou no facto de as principais faculdades, as mais importantes, designadas então por das “ciências positivas”, serem Teologia, Cânones e Leis! Das ciências menores faziam parte as faculdades de Medicina e Matemática! E mais não havia! As razões do persistente atraso de Portugal, vão-se tornando cada vez mais nítidas.

Portugal era, pois, um país de padres e doutores, que ocupavam os cargos públicos, enquanto o país carecia de gente qualificada nos mais diversos setores da economia, desde logo, agricultura, pescas e navegação. Esta era a razão pela qual se chegou a defender a sua extinção.

Também se discutiu a obsolescência dos manuais de ensino, em especial na faculdade de Leis, onde se ensinava o Direito Romano, considerado retrógrado por ter origem na “vontade do príncipe”, incompatível com o modelo representativo do regime de então.

Derrubado em 1823 pela contrarrevolução das hostes miguelistas, de que a rainha Carlota Joaquina fazia parte, a que se juntou D. João VI, nenhuma destas propostas chegou ao terreno.

Alguns dos proponentes acabaram por se exilar no estrangeiro, Inglaterra e Brasil, uns regressando mais tarde, por volta de 1834, outros acabando por lá, alguns na miséria.   

Com a Revolução Liberal de 1832 a 1834 e o fim definitivo do Absolutismo seguiu-se um período de profundas reformas, de Mouzinho da Silveira, que lançaram o país na modernidade, em especial nas frentes administrativa e judicial, e na educação onde algumas destas propostas foram realizadas.

   Parece-me evidente que o sistema educativo que vingou, até, pelo menos 1974, foi o defendido pelos irmãos Passos, O Manuel e o José. Com efeito, estes desenharam um projeto muito semelhante ao que esteve em vigor nos anos sessenta do século XX e que, em grande parte, ainda se reconhece nos dias de hoje.

Passos Manuel

(Continua)

Consulta: A Revolução de 1820 e a Instrução Pública, de Luís Reis Torgal e Isabel Nobre Vargues

Peniche, 18 de Fevereiro de 2023

António Barreto   

domingo, 12 de fevereiro de 2023

A Democracia e o Benfica

 

A Democracia e o Benfica

 

   Acabo de ouvir, na BTV, o Treinador de futebol da equipa B do Benfica, comentando o jogo com o Estrela da Amadora - em que o Benfica perdeu por 1-2 -, e a respetiva arbitragem. O resumo do jogo comprova a fundamentação das suas críticas.

Descreveu ainda os casos dos últimos jogos em que a equipa participou onde erros grosseiros e capitais prejudicaram a equipa.

   Logo depois ouvi Carlos Louzeiro, o entrevistado do programa, dizer que há razão de queixa para o clube no jogo de futsal de juniores realizado ontem com o Sporting.

   Tudo isto depois do desastrado desempenho da equipa de arbitragem do jogo da Taça, com o Braga, de que resultou a eliminação do Benfica e contra o qual que se insurgiu Rui Costa, ainda no estádio.  

Por coincidência, a equipa é a mesma que assinalou um penalti, altamente polémico, no jogo em casa, para o campeonato, com o Sporting, de que resultou um empate e que o Benfica poderia ter ganho.

   Os casos de erros prejudiciais às equipas do Benfica têm sido recorrentes em todas as modalidades, verificam-se há décadas, e não se vislumbra que acabem tão cedo.

Ninguém, fora do universo do Benfica, estranha ou se indigna. Aceita-se como consequência natural da natureza humana e consideram-se os protestos falta de desportivismo dos dirigentes e adeptos do clube.  

De tal modo que, perante a passividade das instituições tutelares das diversas modalidades, para o adepto comum do clube encarnado, prevalece a ideia de conluio entre todos, no sentido de criar obstáculos espúrios ao desempenho desportivo das suas equipas.

   Porém, o problema é bem mais vasto e grave, alastrando à sociedade em geral. Ante a adesão maciça dos adeptos benfiquistas aos jogos do seu clube, as autoridades públicas cruzam os braços perante as múltiplas restrições que lhes são impostas por vários clubes adversários!

São os elevadíssimos preços dos bilhetes praticados, são as proibições do uso de adereços alusivos ao clube, são expulsões de adeptos das bancadas com o jogo a decorrer, por alegado ruído excessivo e, mais recentemente, assistimos à estúpida restrição de acesso aos estádios, selando setores importantes das bancadas!

Mas não é tudo; há cidades onde qualquer adepto que assuma o seu benfiquismo corre sérios riscos de segregação social e até de agressões físicas. Há até casos de homicídio, consequência de ofensas corporais!

   Isto dura há décadas e, habitualmente, atribui-se esta anormalidade há imaturidade do regime democrático. Cheguei a pensar o mesmo, mas não hoje. Já o referi em vários textos; o regime tem um problema com o Benfica; é política a causa primordial desta perseguição. O regime jamais consentirá um Benfica forte como no passado, já remoto.

   Esse problema reside na, ainda”, fobia de certos partidos ao salazarismo, que, por sua vez, radica na má consciência que têm da trajetória económica e social do país. Quase cinquenta anos depois do vinte e cinco de abril, constatamos o empobrecimento relativo de Portugal, o endividamento absoluto crescente - o défice comercial atual é idêntico a da primeira década do século XX - cerca de 20 mil milhões de euros por ano -, a dependência das transferências comunitárias e da imigração, alternativa à baixa taxa de reposição populacional e à emigração.

   Uma parte considerável dos portugueses, não quer ter filhos nem viver em Portugal. Perdida a independência nacional, é a continuidade da nação portuguesa, do povo português, que está ameaçada. Mas não para os que querem mudar a matriz cultural da população.

    O Benfica é vítima da hostilidade silenciosa, implícita, de certos partidos progressistas, que o consideram um símbolo do salazarismo. Não lhe perdoam ter suscitado a admiração geral no mundo do futebol, pela excelência do seu futebol, com equipas de multirraciais e pluricontinentais. Para eles tratou-se de propaganda do regime de então, de que o clube teria sido cúmplice.

   As reformas dos códigos Civil e Penal, que anularam as provas contra Pinto da Costa no caso do Apito Dourado conduzindo à sua absolvição, a impunidade dos membros dos superdragões alegadamente envolvidos em desacatos, a rejeição da Providência Cautelar dum Tribunal do Porto, no caso dos emails, de que resultou o enxovalho público do clube e severos danos reputacionais e patrimoniais, a incapacidade de responsabilizar civilmente e criminalmente os mentores deste mesmo caso, apesar das suspeitas gerais, por falta de provas ou por desinteresse nelas, etc., etc..

   Tudo isto me ocorre no imediato, sem esquecer da prisão de dois ex-presidentes do clube, um deles, na prática, condenado ao exílio, sob pena de passar o resto dos seus dias na cadeia caso regresse ao país. O outro, enxovalhado na Comissão de Inquérito Parlamentar ao Novo Banco, como se tivesse sido ele, e não o Governo, o culpado da injeção dos quase quatro mil milhões de euros no respetivo Fundo de Resolução. É demais para ser coincidência!

   Devo dizer porém, que por absurdo que possa parecer, antevi problemas para o Benfica quando o Partido Socialista formou governo em 2015. E não é por ter dotes premonitórios, mas por muito ter visto e lido.

    A centralização dos direitos desportivos e das receitas de bilheteira de que se fala atualmente, e que sucederá se o Partido Socialista continuar a governar o país, não passa de mais uma manobra para socializar as receitas do clube e de o enfraquecer desportivamente. Os atuais dirigentes dos órgãos desportivos tutelares, não são confiáveis para tal tarefa.

   Por tudo isto, e mais a temática da regionalização, que ficará para abordar em outra ocasião, defendo que o Benfica só terá sossego quando a sua dimensão social tiver tradução política.

   É necessário que o clube elabore um plano sustentado, estruturado e fundamentado de abordagem sistemática do espaço público onde todos estes temas sejam apresentados e debatidos, bem como responsabilizar criminalmente e civilmente todos os que infringirem a lei em prejuízo do clube, sejam eles quem forem.

Está demonstrado que a política de contenção e cordialidade praticadas por Rui Costa e pelo seu antecessor, não funciona. Infelizmente. Por medo ou cumplicidade a Comunicação Social não denuncia estas situações, os órgãos tutelares desportivos  punem o clube e seus dirigentes quando protesta, o Governo faz vista grossa e os partidos não querem “sujar” as mãos, exceto para partilhar os louros dos sucessos que, apesar de tudo, por mérito ou vergonha, por vezes ocorrem.

   A omissão das entidades públicas, desportivas, governamentais e judiciais, nesta área, lesa a qualidade da democracia, por subtrair direitos e liberdades das pessoas e ser potenciadora de violência, de nada servindo, depois do facto consumado, alardear indignação, castigando a vítima, que é o que tem sucedido.


Gimnáguia 2022

Peniche, 12 de Fevereiro de 2023

António Barreto    

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Memórias de Bordo

 

O Fim de uma Era (epílogo)

  

   Fomos para Taipé num voo doméstico. Cidade cosmopolita, de largas, movimentadas e limpas avenidas, edificado de traço apurado e, em geral, bem cuidado. Ficámos instalados no hotel Majestic, numa zona central da cidade. Bem instalados; excelente aspeto externo e interno, bons quartos e cordialidade q.b.

   Pairávamos a maior parte do tempo na zona do hall, ou nas proximidades. Não sabíamos onde ir. Quando muito dávamos umas voltas pelo quarteirão. Deve ter sido um embaraço para a gerência. Imaginei que aguardássemos a conclusão da transação económica.

   Demos por ali umas voltas -o Airoso era companhia frequente; muitas. Apercebemo-nos de que abundava uma espécie de tascas, onde serviam arroz branco, simples, em tigelinhas; gente humilde; uns comiam-no no local, outros pelo caminho. Ficámos com a impressão, algo surpresos, de que, para os locais, se tratava de uma espécie de prato gourmet. Aquilo parecia barato.

   Um dia, algo acidentalmente, fui parar aos subúrbios. Casario modesto mas sem barracas, gente simples, cordial, moderadamente solícita. Pareceu-me um bairro operário. Contrastava com a exuberância arquitetónica central. Lembrei-me de Nietzsche e das suas teses do “inevitável Super-Homem”, a quem caberia a tarefa de desbravar os caminhos do progresso cultural, económico e tecnológico da humanidade, e da consequente servidão dos que, “incapazes de tais façanhas”, garantiriam a subsistência daqueles.  

   Todos os dias, mais ou menos a meio da tarde, ouvíamos uma espécie de sininhos, tipo caixinha de música, nas proximidades. O que será, o que não será? Perguntávamo-nos intrigados. - É o carro do lixo! - Disse alguém, certo dia. E era!

Então íamos ver o “fenómeno”. Um pequeno e discreto camião amarelo, fechado, passava pelas cinco horas da tarde, todos dias, emitindo a suave sonoridade.

As pessoas iam saindo de suas casas com um saquinho de plástico que depositavam, tranquilamente, no veículo. Nem aglomerações, nem ruído nem odores, nem vistas desagradáveis.

   No terraço de um edifício próximo avistava-se gente, vestida normalmente, todas as manhãs, a fazer exercício. Parece que era hábito, nalgumas empresas locais, proporcionarem aos seus trabalhadores uns minutos de ginástica sueca, ou algo semelhante. Uma curiosidade a que achávamos graça e que atribuíamos à proverbial sabedoria chinesa.

   Uma manhã preparava-me para descer quando entrou um empregado do hotel. Rapaz novo, calça preta, camisa branca. Não sei o que ia fazer. Pôs os olhos na viola, encostada à parede junto à janela do fundo: - Can I play? - Perguntou, educadamente. - Yes, please. - Respondi, intrigado e curioso.

   Pegou na viola e tocou, maravilhosamente, o clássico “Romance de Amor”. Quando acabou: - I teach you how to play it. - I can’t. - It’s easy, you learn. E estendeu-me a viola.

- Isto vai ser uma seca! Vou-me embrulhar todo e não saio daqui tão cedo! - Pensei, resignado. Comecei a “esgatanhar” conforme as minuciosas instruções que ia recebendo, aqui caio acolá me levanto, e lá consegui, titubeantemente, chegar ao fim.

   Ofereceu-me a respetiva partitura, que ainda tenho. Com o treino sistemático nos dias seguintes adquiri a fluidez adequada. Uma peça das que me dá mais gosto tocar; uma das coisas mais gratificantes que me sucedeu na minha vida marítima.

   Nas nossas repetidas deambulações pelas imediações do hotel - eu e o Airoso andávamos quase sempre juntos -, cruzámo-nos pela primeira vez com civis americanos, uma espécie de “mostrengos” altos e gordos, e com chineses cuja envergadura física desmentia a ideia que tinha do chinesinho meia-leca.

   Volta e meia ouvíamos as garotas exclamarem à nossa passagem: - handsonme, handsome! E nós todos “inchados”. Acho que gostavam do tipo físico dos europeus. Em tempos diferentes metemos conversa com duas delas. Tomámos uns drinques e aquilo ainda deu lugar a umas peripécias algo hilariantes. Uma delas deixou saudades.

   Como deveríamos ser um embaraço para o hotel, levaram-nos numa “expedição” a uma reserva com animais de grande porte Recordo vagamente ter visto, por lá, leões e elefantes e talvez girafas, mas não estou certo disso.

   Entretanto tinha comprado um chapéu do tipo australiano, de feltro castanho, que usava, todo “pimpão”, a título de brincadeira, longe de supor que alguém o considerasse um ato vaidoso. Mantive-o e usei-o durante muito tempo, até se desvanecer.

   De outra vez levaram-nos para uma estância de férias, algo afastada da cidade. Estivemos por lá uns dias, isolados. Pensei levar emprestada, sem falar com o dono, uma belíssima moto, de cor preta com peças cromadas, para dar umas voltas pela região. Foi então que o Airoso “confessou” ter sido incumbido de me manter debaixo de olho; não fosse eu meter o “pé na argola”. Percebi a delicadeza da situação e deixei-me estar sossegado.

   Regressados a Taipé, chegara a hora dos “recuerdos”. Descobri duas bonitas bonecas, uma gueixa e uma camponesa, e dois lindíssimos candeeiros de mesa, de múltiplos painéis de vidro pintados, rodando pela ascensão do ar aquecido no seu interior. Achei fascinante. De Kaohsiung trouxera uma bela resma de LP’s, atuais, a tostão; entre eles, alguns de música chinesa, de que nunca consegui gostar, mas de que acho graça. Gosto de todo o tipo de música exceto desta. Defeito meu.

   Finalmente chegou a hora do regresso. A viagem durou, salvo-o-erro, cerca de dezanove horas. Fizemos várias escalas, uma delas em Karachi onde aguardámos, num hotel, a ligação seguinte.  

   Achei graça ao facto de termos tomado o pequeno-almoço, aí umas três vezes! Parecia que o relógio tinha parado nas nove horas da manhã. Os aviões faziam “parar” o tempo aparente!

   Esta foi uma viagem, para mim, memorável, que marcou o início do fim da magnífica e saudosa frota mercante portuguesa. O Santa Maria, de cuja tripulação também fiz parte, foi logo depois. Quando chegámos a Kaohsiung, após uma viagem bem menos acidentada, já o Vera Cruz estava reduzido a um monte de sucata. Que visse, ninguém chorou, exceto, talvez, interiormente, como me sucedeu.


Vera Cruz


Santa Maria

Peniche, 05 de Fevereiro de 2023

António Barreto