Desporto

domingo, 25 de junho de 2023

Das Ideologias e da Ciência

 

Das Ideologias e da Ciência


A extraordinária força da persuasão decorrente das principais ideologias do nosso tempo não é ocidental. A persuasão não é possível sem que o seu apelo corresponda às nossas experiências ou desejos ou, por outras palavras, as necessidades imediatas. Nestas questões, a plausibilidade não advém nem de factos científicos, como vários cientistas gostariam que acreditássemos, nem de leis históricas, como pretendem os historiadores nos seus esforços para descobrir a lei que leva as civilizações ao aparecimento e ao declínio. Toda a ideologia que se preza é criada, mantida e aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica. …O seu aspeto científico é secundário. Resulta da necessidade de proporcionar argumentos aparentemente coesos e assume características reais, porque o seu poder persuasório fascina também cientistas desinteressados pela pesquisa propriamente dita e atraídos pela possibilidade de pregar à multidão as novas interpretações da vida e do mundo. É graças a esses pregadores “científicos”, e não a quaisquer descobertas científicas, que não há praticamente uma ciência cujo sistema não tenha sido profundamente afetado por questões raciais….


...A doutrina do “Direito” precisou de vários séculos (do XVII ao XIX) para conquistar a ciência natural e formular a “lei” da sobrevivência dos mais “aptos”. ...A culpa não é da ciência em si, mas de certos cientistas não menos hipnotizados pelas ideologias que os seus concidadãos menos cultos.”


Hannah Arendt em “As Origens do Totalitarismo”

Hannah Arendt

Peniche, 25 de Junho de 2023

António Barreto

domingo, 18 de junho de 2023

O Povo e a Ralé

 

O Povo e a Ralé



Se o erro comum dos nossos tempos é imaginar que a propaganda pode conseguir tudo e que um homem pode ser persuadido a fazer qualquer coisa, contando que a persuasão seja suficientemente forte e atraente, era crença comum naquela época que “a voz do povo era a voz de Deus” e que a tarefa de um chefe era, como disse Clemençeau com tanto desdém, seguir essa voz com esperteza. As duas atitudes derivam do mesmo erro fundamental de considerar ralé idêntica ao povo e não uma caricatura dele.


A ralé é fundamentalmente um grupo no qual estão representados resíduos de todas as classes. É isto que torna tão fácil confundir a ralé com o povo, o qual também compreende todas as camadas sociais. Enquanto o povo, em todas as grandes revoluções, luta por um sistema realmente representativo, a ralé brada sempre pelo “homem forte”, pelo “grande chefe”. Porque a ralé odeia a sociedade da qual é excluída e odeia o parlamento onde não está representada. Os plebiscitos, portanto, com os quais os chefes modernos da ralé têm obtido resultados tão excelentes, correspondem à tática dos políticos que se estribam na ralé. “



Hannah Arendt em: “As Origens do Totalitarismo”



Therese sur une banquette - Balthus



Peniche 18 de Junho de 2023

António Barreto

sábado, 17 de junho de 2023

Ás vezes a História repete-se

 

Ás vezes a história repete-se


"A Igreja Católica, devia a popularidade ao ceticismo disseminado entre o povo, que via na república e na democracia a falta da ordem, da segurança e da consciência política. Para muitos, o sistema hierárquico da Igreja parecia a única forma de evitar o caos. Era isto, realmente, e não qualquer revivescência religiosa, que fazia com que o clero fosse olhado com respeito. Na verdade, os mais firmes partidários da Igreja nesse período eram os expoentes daquele catolicismo chamado "cerebral" , os católicos "sem fé", que iriam daí por diante dominar todo o movimento monárquico e nacionalista extremo. Sem crerem na sua base extra-terrena, esses católicos clamavam por maior poder para todas as instituições autoritárias. Essa é, de facto, a atitude primeiro assumida por Drumont e mais tarde endossada por Maurras."


Hannah Arendt

As origens do totalitarismo


(Maurras foi o filósofo-político inspirador de Salazar)


                                   Quadro de Balthus (Balthasar Klossowski): Thérèse Dreaming

Peniche, 17 de Junho de 2017

António Barreto

domingo, 11 de junho de 2023

Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades

 

Dia de Portugal e das Comunidades



Antigamente, o 10 de Junho, era conhecido por “dia da raça”. Um dia, já depois do 25 de abril, mudou-se essa designação para a atual. Não liguei muito ao assunto mas percebi vagamente que havia algum desconforto, alguma inadequação política, com a celebração da “raça”.

Celebrações de raça é coisa que nunca me agradou; pressupõe sempre uma ideia de superioridade, induzindo no respetivo povo uma falsa, perigosa e dispensável ideia de domínio, alimentando nos outros povos uma reserva de conduta prejudicial ao relacionamento entre povos.


Mas faz sentido celebrar a Portugalidade, onde quer que se encontrem os respetivos nacionais, seja em Portugal, seja por esse mundo fora. Afinal, somos um estado-nação com quase nove séculos, com uma história de altos e baixos, mas riquíssima, invulgar, dos que mais cedo, em todo o mundo, definiram as fronteiras do seu território.


De há uns anos para cá, a extrema-esquerda, com o apoio implícito da esquerda moderada, trouxe para o espaço público a questão do racismo e a dos Descobrimentos insistindo, exclusivamente na vertente negativa, com se tivessem sido, exclusivamente, um mal para a humanidade, algo de que nos devamos envergonhar.


Por outro lado é hoje bem patente, de forma quase explícita, a hostilidade dos referidos setores ao mundo rural e à igreja católica. Uma tendência que ocorre desde a 1ª Revolução Liberal - 1820 -, que se acentuou com a 2ª Revolução liberal - 1834 - e na 1ª República – 1910/1926, atenuando-se na ditadura militar - 1926/1974 – voltando a afirmar-se, mais ou menos discretamente, depois do 25 de abril na democracia de pendor socialista que vigora.


Uma série de fatores tem contribuído para o declínio do Mundo Rural; migração das novas gerações para as cidades, excesso de regulamentação, falta de segurança, expansão do Estado, etc.


Comam carapau”; exclamou uma ministra ao ser questionada publicamente acerca das consequências da brutal redução da cota de pesca da sardinha imposta por Bruxelas.


Recentemente, a ministra da agricultura fez gala em destratar os dirigentes da principal associação de agricultores justificando a falta de apoios governamentais com a não adesão ao projeto eleitoral do seu partido.


Incêndios e enxurradas devastam os campos deixando um rasto de destruição que expõe a inépcia das estrutura públicas de prevenção, coordenação e combate aos mesmos a despeito das avultadas verbas gastas e dos recursos humanos envolvidos.


Na 1ª República, apesar das promessas de democratização do Partido Democrático, o governo de Afonso Costa alterou a lei eleitoral restringindo o direito de voto ao campesinato e retirando-o às mulheres! O medo de perder as eleições foi superior ao seu “amor” à causa da democracia.


Atualmente, apesar do coeficiente de reposição populacional negativo, o apoio à maternidade, consultas de obstetrícia e partos, parece em crise permanente. Há demasiados partos em ambulâncias, há mulheres que morrem em transferências de hospitais, há falta de consulta médicas, etc.


Porém, aprovou-se o aborto e a eutanásia, não faltando apoios àquele, considerado, agora, uma questão de saúde pública. Quanto à eutanásia, negligenciam-se os planos nacionais de cuidados paliativos, mas não faltarão os incentivos à sua prática até porque, segundo referiu recentemente uma “ilustre” deputada, o “direito à vida não é um direito absoluto”, apesar de a Lei Constitucional o definir como inviolável.


Paralelamente, depois da adesão do Governo ao “Pacto das migrações” proposto pela ONU, à revelia da população, tem-se incentivado a imigração maciça e assumido a defesa incondicional dos imigrantes, mesmo em casos de banditismo ou homicídio.


Ao mesmo tempo, implicitamente, por vezes expressamente, acusam-se os portugueses autóctones de racistas, xenófobos, retrógados, obsoletos, homofóbicos, negacionistas, etc., relativizando as preocupações que se vão instalando nas várias comunidades afetadas por este fenómeno.

Foi neste ponto que comecei a convencer-me de que certos setores políticos não gostam dos portugueses e estão determinados em puni-los e até a verem-se livres deles, substituindo-os por gente mais ao seu gosto.


Percebi então que a acusação latente e por vezes explícita de racismo, aos portugueses, não tem a ver com o facto de estes gostarem ou não de povos de outras raças ou religiões, mas tão somente de quererem ser o que são; portugueses fieis à sua cultura tradicional e secular; maioritariamente cristãos, vinculados à família, à sua comunidade, ao trabalho e à propriedade, adquirida com esforço e abnegação. Numa palavra conservadores! Fascistas, no linguarejar rancoroso, persecutório, vingativo, das gentes vinculadas às ideias de Marx, Engels, Trotski e Cª.


Indo um pouco mais longe, apesar do caráter ideologicamente neutro do Movimento dos Capitães, a deriva socialista que se estabeleceu posteriormente, introduziu um conflito político-social, que agora emerge com maior nitidez e que se traduz numa espécie de revanchismo por parte das vítimas da ditadura sobre a restante população que lhes é contemporânea ou as novas gerações conservadoras.


Incapaz de resolver este problema, a democracia enfraquece ao estigmatizar e segregar a população não socialista criando e agravando fraturas sociais e descredibilizando os agentes políticos bem como as instituições da República.


Que o “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades” seja um momento de união entre todos os que amam Portugal, independentemente da sua origem e condição, mas jamais um pretexto para os grupos próximos do poder hostilizarem os restantes, como sucede nas comemorações do 25 de abril.



                                              JOAQUIN SOROLLA 


Peniche, 11 de Junho de 2023

António Barreto

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Do Anti-Semitismo na Europa

 

Do Anti-Semitismo na Europa


...Durante mais de 100 anos o anti-semitismo havia, lenta e gradualmente, penetrado em quase todas as camadas sociais em quase todos os países europeus até emergir como a única questão que podia unir a opinião pública. Era simples este processo: cada classe social que entrava em conflito com o Estado tornava-se anti-semita, porque o único grupo que parecia representar o Estado, identificando-se com ele servilmente, eram os judeus. E a única classe que demonstrou ser quase imune à propaganda anti-semita foram os trabalhadores que, absorvidos pela luta de classes e equipados com a explicação marxista da história, nunca entravam em conflito direto com o Estado, mas só com outra classe social, a burguesia, que os judeus certamente não representavam e da qual nunca haviam sido, até então, parte importante.”

Hannah Arendt – “As Origens do Totalitarismo”


Hannah Arendt 

Peniche, 08/06/2023

António Barreto

domingo, 4 de junho de 2023

"As Origens do Totalitarismo"

 

As Origens do Totalitarismo”

Hannah Arendt


Hannah Arendt (1906/1975), foi uma filósofa política alemã de ascendência judia perseguida pelo nazismo, que escapou aos campos de concentração e se refugiou na América onde permaneceu apátrida, naturalizando-se americana ao fim de 18 anos.


Dedicou-se ao estudo das causas dos refugiados, dos apátridas, dos judeus e do totalitarismo. Conhecedora profunda dos movimentos sociais e políticos dos séculos XIX e XX, trouxe para o espaço público o seu vasto conhecimento das origens - em especial do anti-semitismo - das características e das dinâmicas que produziram os regimes totalitários da época, o nazismo e o comunismo.


Discípula de Martin Heideggar, estudiosa da obra de Kant, a Teoria da Razão Pura, as suas principais obras são, “As Origens do Totalitarismo”, “A Condição Humana” e Eichmann em Jerusalém.


Deparando-me, frequentemente com referências de outros autores às suas ideias, avancei para a leitura de “As Origens do Totalitarismo”, obra cuja 1ª edição foi publicada em 1951, sendo esta a 9ª edição. Um belo exemplar de 600 páginas, com papel de boa cor e textura e letras de confortável tamanho e contraste.

   

   Só após o primeiro terço me convenci da qualidade da obra, até aí exposição das ideias é tão fracionada que dificultava a sua articulação coerente. Cheguei a duvidar da tradução, pronto a abandonar a leitura. Nenhuma obra, por maior que seja a sua qualidade intrínseca, resiste a uma tradução literal. Ultrapassada esta “crise” revelou-se-me todo o fascínio do conhecimento e pensamento da autora. De tal modo que decidi ler as restantes numa próxima oportunidade.


   Um dos temas que me chamou a atenção é o dos “povos eleitos”; afinal, além dos judeus, também alemães e russos se consideram detentores desse suposto desígnio divino! Esta cultura transgeracional acaba por se traduzir, a partir das elites intelectuais, na assunção geral da responsabilidade de conduzir um povo à “salvação” do mundo. É esta uma das causas do totalitarismo; a salvação futura, impossível de confirmar na época.


   Acontece que na cultura portuguesa também há vestígios de ideias semelhantes. A ideia do 5º império foi referida por Agostinho da Silva como desígnio transcendental dos portugueses! Desconheço os fundamentos desta teoria, a não ser, eventualmente, a conhecida gesta marítima. Não me agrada; os povos, os partidos, os homens providenciais que querem salvar o mundo, são perigosos.

   

   Outro dos temas “revelação”, é o das origens do imperialismo; foi em 1884, na sequência da Conferência de Berlim, em que foi efetuada a partilha da África pelos países europeus, carentes de matérias-primas e novos mercados para sustentação das suas economias, a que a revolução tecnológica dera nova expressão.


  Talvez resida aqui o fundamento da ideia da diferença da colonização portuguesa face às subsequentes. Certo é que este acontecimento despoletou uma série de acontecimentos cujas consequências se refletem nos dias de hoje.


    A ideia de nação e estado-nação ficou-me, finalmente clara com o exemplo dos judeus; um povo com uma cultura comum, interligado por laços familiares e espalhado pela Europa e pelo mundo, sem território próprio - até 1948 -, apesar do vínculo a diversos países.


O caso dos ciganos não é abordado mas parece-me ter contornos semelhantes, dada a resistência secular geral à integração nos países onde habitam, à persistência de uma estrutura social própria, diferenciada, anacrónica, e a dedicação a atividades económicas informais, geralmente nas franjas da marginalidade. Porém, contrariamente aos judeus não lhes é conhecido histórico de proximidade ao poder nem o envolvimento em atividades bancárias ou de administração pública.


Refugiados e apátridas na Europa - condição a que a autora esteve sujeita -, foi e é uma realidade com uma dimensão e impacto que estava longe de supor. As sucessivas guerras europeias travadas ao longo dos séculos, as consequentes alterações da respetiva geografia política, geraram milhares, milhões de refugiados, muitos dos quais se tornaram apátridas; gente cujos países de origem foram suprimidos, simultaneamente rejeitada pelos países de refúgio, ou tolerada por estes sem o estatuto de cidadania.


O caso dos Judeus é tratado com grande profundidade e detalhe, identificando as causas prováveis da segregação de que foram vítimas históricas; a auto-convicção de “povo escolhido”, o hermetismo das suas comunidades recusando a assimilação, a quase indigência de vastas comunidades, a proximidade do poder de outras, o exercício de funções de nomeação no topo das administrações, e o imenso poder que alguns dos seus membros adquiriram no financiamento de regimes absolutistas e até republicanos.


Falsamente acusados pelo partido nacional-socialista alemão de conspiração contra a Alemanha, foram as principais vítimas do genocídio praticado pelo III Reich. Porém, a autora mostra como o anti-semitismo foi muito para além da Alemanha tendo sido praticado também em França - caso Dreyfus -, e na Rússia - “O Homem de Kiev” (minha referência).


Fiquei também a perceber a diferença entre massas e ralé; aquelas constituídas pelos cidadãos alienados, desinteressados da coisa pública, estes pelos excluídos, rejeitados, da atividade económica geral.


Trata também do percurso dos movimentos sociais que deram origem aos regimes totalitários do século XX, o nazismo - focado na questão racial -, e o comunismo - crente no “inevitável” advento do poder universal do operariado -, ambos imbuídos do “supremo” desígnio de salvação da humanidade. Desígnio que, perante as consciências dos respetivos chefes, justificava todas as atrocidades que cometiam.


A caracterização e comparação das correspondentes estruturas de poder, em ambos os casos constituída por um conjunto de órgãos institucionais, governamentais, redundantes, sobrepostos, dispersos, mas de fachada, sendo o poder exercido diretamente pelos respetivos chefes - Hitler e Estaline -, através de correspondentes estruturas policiais secretas, à margem dos respetivos partidos. Qualquer dos totalitarismos alimentava o desígnio de domínio global, no caso do nazismo pela via militar, no caso do comunismo pela ação revolucionária.


Tenebrosas foram as práticas sistemáticas de purgas civis e partidárias, que permitiam, em ambos os regimes, a “perpetuação” do poder dos respetivos chefes. Os métodos eram idênticos; facilitava-se o acesso às carreiras política, governativa, policial e militar de jovens prometedores, cuja inabalável lealdade ao chefe, lhes garantia rápida ascensão hierárquica. Chegado o momento, liquidavam-se os respetivos chefes cuja influência e poder crescera e ameaçava o chefe supremo repetindo-se o processo ciclicamente.


Em ambos os casos consegue-se o mesmo objetivo: o extermínio torna-se processo histórico no qual o Homem apenas sofre aquilo que, de acordo com leis imutáveis, sucederia de qualquer modo. Assim que as vítimas são executadas, a “profecia” transforma-se em álibi retrospetivo: o que sucedeu foi apenas o que havia sido predito.” (Hannah Arendt)



Hanna Arendt


Peniche, 04 de Junho de 2023

António Barreto