Desporto

domingo, 4 de outubro de 2015

Raul Brandão e "Os Pescadores"

 
Quase por acaso "tropecei" nesta obra do popular escritor, ainda por cima ao módico preço de três euros! A propósito, cabe referir a hipocrisia dos "ativistas" da cultura ante os preços exorbitantes dos livros que se vão praticando em Portugal, geralmente entre os 15 e os 25 euros, inacessíveis à maioria das pessoas. Editem-se livros de baixo custo, promovam-se as bibliotecas convencionais e criem-se as e-bibliotecas, produzam-se na TV e na rádio pequenos programas literários simples, despretensiosos, dirigidos ao grande público, centrados nos nossos principais autores.

   Edição modesta, capa mole, folha branca e letra sóbria mas eficaz. Ultrapassado o desconforto dos habituais preâmbulos, o estilo de Raul Brandão prende-nos de imediato pela sua genuinidade, pelo colorido do seu diversificado vocabulário, pelo profundo afecto que emana da sua escrita relativamente a um povo do qual faz parte.

   Natural da Foz, reformado com a patente de Capitão do exército, como com quase todos os descendentes de pescadores, Raul Brandão tem um ascendente, o seu avô, morto no mar. O fascínio e o afecto que tinha pelo mar induziram-no, no ano de 1920, a conhecer e vivenciar a dolorosa e brava vida das gentes do litoral português. De Caminha a Sagres, passando pela sua Foz, Póvoa do Varzim, Aveiro, Mira, Nazaré, Peniche, Lisboa, Sesimbra, Olhão, Tavira e Sagres, com breves pinceladas noutras povoações. Quase nada sobre Buarcos, a minha terra, nessa época um microcosmos da epopeia dos pescadores portugueses, onde, entre homens e mulheres, não faltam histórias de abnegação e bravura. Sou capaz de jurar que, qualquer "buarqueiro", tem na família alguém morto no mar. O meu tio Zé Barreto naufragou e deu à costa, morto, amarrado ao pai, João Barreto, vivo, com a cinta negra dos calções. Não faltam histórias comoventes em Buarcos.

   Raul Brandão envolveu-se emocionalmente e fisicamente!, foi ao mar, sentiu-lhe o cheiro, a cor e o som, inventariou os tipos de barcos e de artes utilizados, identificando tipos muito para além do que alguma vez imaginei!, observou o modo de exploração da pesca, de distribuição dos respectivos rendimentos e de organização social. Eu, que só conhecia os botes, as bateiras, as lanchas, as traineiras, as chalandras, os buques, os arrastões e, vejam bem, as gamelas da várzea - que os miúdos mais espertos construíam para "navegar" dentro delas, remando com duas tábuas improvisadas -, fiquei a saber que haviam ainda as barcas, os botes, as aialas e os bateis, em Sesimbra, em Lisboa os galeões a vapor, as canoas, os saveiros, os botes, as chatas, os buques, em Olhão os caiques "voadores", na Póvoa as maceiras e as volanteiras, Em Mira os barcos grandes, a robaleira e a manhosa. E redes como os arrastões, os botirões, as branqueiras, os camaroeiros, as chinchas, os chinchorros, as curvineiras, os covos, as sabugagens, os savaros, as solheiras, os tresmalhos e os rascos em Lisboa, na Nazaré e por todo o restante litoral, " a nobre arte da chávega", a neta, a valenciana, os cercos, as redondas, o espinhel, os cobos, em Buarcos, Quiaios, Tocha e Pedrógão, as majoeiras, em Olhão, as groseiras e grandes enpinhéis, na Póvoa, as peças da sardinha, as volantes da pescada, o galricho da faneca, o rastão camaroeiro, a rede patelo do caranguejo e o rasco da lagosta.   Quanto a pescado faz referência a espécies de que nunca ouvi falar; godilhão, peixe-rei, peixe-anjo, orega, carocha, peixe-vaca, etc. Identificou funções que, de todo, desconhecia; o Proeiro que nas traineiras informava o mestre do local exato onde devia lançar as redes bem como da quantidade e tamanho do pescado presente - agora são necessários os sonares -, e do pedreiro, que conhecia a natureza dos fundos e dizia onde se devia ou não largar para evitar a destruição das redes.

   Deu conta da comovente solidariedade entre as gentes de Mira, Sesimbra e Olhão, onde os pescadores doentes continuavam a receber o seu quinhão tal como as viúvas, onde se constituía uma poupança comum para o inverno, onde ia ao mar quem queria e precisasse e onde se chegava a fazer o quinhão dos pobres e do Senhor dos Passos. Contrariamente ao que pensava, nesse tempo, havia salários na pesca; oito tostões por dia nas Companhas de Sesimbra e dez tostões por dia no Cerco Americano em Olhão, por pescador, mais uma percentagem da pesca entre os 15% a 25 %. Às mulheres da Póvoa, de Mira e da Nazaré destaca a predominância, seja no governo da casa ou no sustento da família, percorrendo léguas a pé descalço, com filhos ao colo e cesta à cabeça ou...,devido à fome dos "mininos", "mandando" os homens para o mar, apesar de ruim...apesar do risco de morte. Histórias pitorescas também não faltam, como as "batalhas navais" entre poveiros e sãojoaneiros, as zaragatas femininas, as artimanhas do Mendinho, contrabandista de Olhão, o apoio do Rei D. Carlos aos pescadores algarvios, o mau feitio do "náufrago" da Berlenga, o Faroleiro, que designava por musaranho, a angústia das mulheres de negro, vagueando pelas praias em busca de maridos, pais ou filhos, vivos, ou...mortos.

   De todo esse périplo, descreveu com minúcia o fascínio da Ria de Aveiro e da Berlenga e denunciou a sistemática destruição de recursos em todo o nosso litoral, arte em que diz serem os portugueses especialistas, em matança desenfreada agravada pela industrialização do Fialho e pelas traineiras assassinas da Galiza, que pescavam com dinamite e carboneto, vaticinando a inevitável escassez de recursos em cinquenta anos, por falta de comedoria. Ela aí está, em todo o seu "esplendor" noventa e cinco anos depois. Raúl Brandão não era biólogo!

   Testemunhos vários fizeram-no convencer-se que os "cagaréus" - pescadores de Aveiro -, terão sido os principais povoadores de todo o nosso litoral; vinham nas suas embarcações à vela procurar pescado e quando interessava regressavam mais tarde com a família, integrando-se ou fundando novas povoações. Interessante!, sei que os Barretos de Buarcos - minha família -, são, precisamente, oriundos de Ílhavo, donde trouxeram a arte de chávega para a Leirosa donde saíu um ramo para Buarcos. Em Lavos ainda hoje trabalha a arte de chávega julgo que mais para fins turísticos. Em Buarcos a última foi a do meu Tio Fernando Barreto que funcionou enquanto teve forças para tal. Havia outra, do João Cego - pescador de relevo -, depois adquirida pelo Finito, cujo filho alguns diziam ser o homem mais forte da vila, com quem, já espigadote, tive a honra de fazer parelha a pôr a bateira abaixo; um de bombordo, outro de estibordo (o normal eram quatro homens por remo).

   Eu, que quando adolescente experimentei, por opção, o fascínio da "arte", fazendo parte da companha, primeiro como moço, depois como homem, percebi agora, através de Raul Brandão, algumas coisas de que ouvia falar mas não sabia bem em que consistiam. Por exemplo; um dia em que a pesca foi farta, a minha Tia Dionízia, que colhia as cordas da mão de barca com precisão milimétrica, disse ao meu Tio Fernando para se içar o "pandão"!, o pandão, ou pendão içava-se para chamar o povo à praia anunciando pescado em abundância. Ao batedoiro chamávamos bortedor e as chumbadas eram pandulhos - feitos em cimento. As pandas eram pandas, o calão era a última bóia, presa por um longo cabo - corresponte à profundidade máxima - ao fundo do saco, as calimas eram as pequenas bóias das mangas e a rede, puxavam-na as mulheres e os moços com cintos de lona com chicote enfiado numa cortiça, e não com bois. A bateira não tinha leme; o arrais orientava-a, sei-o agora, através do cabo do reçoeiro amarrado ao "ferro" cravado na praia, a tilha era o painel da proa, onde, ainda criança, me diziam para me enfiar, chamavam-se caneiros aos que pegavam na cana do remo - parte mais delgada -, a peça de apoio do remo à borda chama-se cágado que encaixa nos escalamões e a extremidade propulsora era a pá. A bateira punha-se abaixo, carregada de cordas e redes, sem panais, com pelo menos oito homens, e punha-se acima, vazia, na zona do reçoeiro pelo mesmo número de pessoas. Os moços acartavam ao ombro os varais de cordas da mão de barca para o reçoeiro, a bordão. As redes eram estendidas na praia por toda a companha para secar e eram atadas de tarde pelo arrais, meu tio, homem bom, que eu acompanhava com enorme fascínio...porfiando os buracos maiores, que atar era para especialistas como ele, que confecionava toda a rede, incluindo a agulha e o muro. A extensão da arte contava-se em cordas; no caso, entre dezoito e vinte e duas; sei agora que cada corda tem dezoito braças. Havia dois momentos cruciais para lançar a rede; o alvor e o ensejo. O alvo era o carapau, que tinha maior valor, mas habitualmente apanhava-se sardinha e algum peixe grosso.

   Alguns ditos jocosos de meus tios, ganharam agora forma; - a camisa é de ticum, - diziam, de alguém que apresentasse uma camisa velha ou feia! Olha, chegou agora o Carradas, diziam, de quem aparecesse de má catadura, meio andrajoso, ou, simplesmente, diferente. Ora bem, segundo Raúl Brandão; ticum era o fio de melhor qualidade para confeção da rede e o Carradas foi um rico lavrador e armador que acabou falido e a pedir pelo litoral centro! Histórias pitorescas houve muitas; algumas que presenciei e até protagonizei. Tudo aquilo me fascinava!, Não dormia, à espera do chamamento na noite escura: - à TóZé, vamos ái arte!, levantava-me dum salto e corria que nem uma lebre a fazer as minhas tarefas. Gente boa, inesquecível! Deus os guarde para sempre.

   Mas, histórias a sério, são as da pesca do bacalhau; do meu pai, dos meus tios Zé, Tó, João, Magno, Lucas, Curto, Piorro, Ramiro e do meu avô Catulo, que por lá andou quarenta anos, no Hortense, desde o lançamento à água até ao desmantelamento. E de muitos, muitos outros "buarqueiros", com histórias magníficas, algumas heróicas, outras, simplesmente, comoventes, como a dos "ressuscitados".

   "Só tendo a morte quase certa é que  poveiro não vai ao mar. Aqui, o homem, é acima de tudo, pescador".

   "Dormiam no rio cobertos com a vela, e primeiro que pregassem olho era um falatório que se ouvia em toda a vila."

   " (O Poveiro) Foi sempre um eterno explorado pelo fisco, pelos regatões, pelos homens de negócio - e por último, tiraram-lhe o areal, que era a única coisa em que ele fazia finca-pé para os seus varais, para as suas velas, para os seus costumes."

   "E por toda a costa portuguesa a pesca rareia. Como temos o condão de estragar tudo, empobrecemos as populações da beira-mar, para enriquecer meia-dúzia de felizes. Cultivar o mar é uma coisa - é ofício de pescadores; explorar o mar é outra coisa - é ofício de industriais."

   "Assim, até os que por sorte não apanhavam peixe, tinham um quinhão garantido do mealheiro comum. Ficava ainda uma pequena parte nas mãos do arrais para o tempo de inverno, quando se não podia ir ao mar."

   "Não há terriola de seis cavadores submersa pelos montes, onde a sardinha não chegue - viva da costa."

   "Então, o arrais de pé dá o sinal dizendo; - Em nome do Santíssimo Sacramento, saco ao mar! - Toda a companha se descobre. Larga-se a cuada de malha mais miúda, a manga, peça mais grossa, e por fim o cabo, que se desenrola até à terra."

   "Felizes ou infelizes? Não sei bem. Apesar de abandonados pelo Estado, que os rouba, cobrando-lhes de fisco uma exorbitância, quatrocentos contos o ano passado e quase o dobro este ano, não lhes dando em troca uma maternidade, uma pequena biblioteca que os instrua, um médico, uma botica, uma estrada; apesar de abandonados pelos homens, sem organização nem instrução, sem um padre que lhes fale em Deus ou nas coisas eternas (a capelinha de madeira está fechada) - esta gente (de Mira) é tão fundamentalmente boa que, há cinquenta anos para cá, não consta de um roubo, de um crime ou de um delito. Pode-se dormir com a porta aberta. Eu nunca fechei a minha."

   "Enriquece o almocreve, o patrão e o negociante; só o pescador continua pobre e despreocupado. O mar nunca acaba e o mar é deles...(digo eu; ingénuo Raul Brandão)."

   "Quando os tiram por mortos, para fora do mar, metem-nos no sal como as sardinhas, para lhes "apertar os ossos". É grande remédio, dizem. O ano passado, houve um que, depois de estar no sal quarente e oito horas, ainda tornou a si..."

   "Se os batéis estão em perigo, corre a costa, açoitada pelo vento, bebendo as lágrimas e o cuspo do mar, e contendo o coração em farrapos, com as mãos negras apertadas sobre a tábua rasa do peito.... Só o mar dá o sustento e a morte....Má raios partam o mar."

   "É um tipo dorido, destes que vivem e morrem com dignidade, sem ninguém lhes ouvir uma queixa. De quando em quando vem-me à ideia esta figura de doente, com os três filhos agarrados às saias, a carregar até ao fim, até cuspir o último farrapo de pulmão."

   "Em Mira o lar é sagrado. É-o em todas as povoações da costa portuguesa que ficam longe dos centros corruptores."

   "Apareceram no cabedelo, unidos um ao outro. O mais velho erguia nos braços o mais pequeno, procurando salvá-lo."

   "Vou primeiro ao Baleal, que é a mais linda praia da terra portuguesa."

   "Mas Peniche é sobretudo horrível para mim porque é o tipo de pesca industrializada, o barracão, a fábrica de peixe, a caserna da sardinha, onde impera o Fialho do Algarve."

   "De inverno nenhum barco atraca às Berlengas. Só eu e Deus, no mais belo sítio da costa Portuguesa!..."

   "E o tempo ainda lhes sobra para cuidar dos filhos e para trazer a casa limpa e esteirada. Nenhum pescador vive como o da Nazaré: pode-se comer no chão."

   "Creio que só assim parindo e gemendo, tecendo e lavrando, mas principalmente parindo, é que se equilibra a nossa balança comercial, o que nos tem permitido viver como nação independente."

   Mas o melhor mesmo é ler a obra. 

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