A República
A narrativa política
dominante atual refere a 1ª República como paradigma da democracia e da promoção
do progresso económico e social, interrompida pelo pronunciamento militar do 28
de Maio de 1926 o qual, em 1933, daria lugar ao autocrático, conservador e
semi-clerical “Estado Novo” salazarista. Contudo, a realidade é bastante
diversa. No caso português, a expressão “ética republicana” está destituída do
conteúdo que lhe atribui quem a profere.
O regime inaugurado em 5 de Outubro
de 1910 preocupou-se mais em consolidar o seu poder do que com a assistência
aos pobres, doentes e mendigos. Identificando a Igreja Católica como seu
principal inimigo, pela formação moral das populações através dos serviços
religiosos e das escolas a seu cargo e pela assistência solidária às populações,
a República tratou de lhe restringir os movimentos chamando a si as tarefas
assistenciais e de educação. Uma nova moral, a moral republicana, centrada na
promoção do racionalismo e do nacionalismo, tinha de ser imposta contra a
superstição, a submissão e a hipocrisia. Fiéis seguidores de Robespierre, os
republicanos assumiam a sua doutrina, expressa em 1874, segundo a qual “só a Pátria
tinha o direito de educar os seus filhos”. A nova ordem dispensava os padres.
Estes foram acusados de vagabundagem quando pediam nas ruas, de obstrução da
via pública quando organizavam procissões e de danos à saúde pública quando
mandavam tocar os sinos das igrejas.
As iniciativas de apoio social do Antigo Regime revelaram-se inúteis e
consistiram na criação do Conselho Geral de Beneficência em 1835, com o objetivo
principal de reprimir a mendicidade, e, em 1901, da Repartição de Beneficência
e do Conselho Superior de Beneficência Pública.
Instaurada a República, uma lei de 1911 tratava de enviar os pobres para
as suas aldeias a fim de ocupar os menores nos trabalhos agrícolas. Em Lisboa
foi criada, no âmbito das paróquias, a “Obra dos 10” segundo a qual cada dez
pessoas deviam sustentar um pobre. Em 1919 malograram-se as tentativas de criação
de seguros obrigatórios na doença, nos acidentes de trabalho e nas pensões de
invalidez, velhice e sobrevivência.
Uma vez no poder os republicanos rapidamente esqueceram princípios e
promessas. A agitação social não tardou. Em Novembro de 1910 os operários da
Carris - de administração britânica - entraram em greve. Respondeu o Governo
impondo restrições à lei da greve. Solidarizaram-se os ferroviários com os
grevistas, paralisando os comboios em Janeiro de 1911. Alarmado com as proporções
do protesto, recorreu o Governo às Forças Armadas, mandando prender dezenas de
operários. Nas ruas, a multidão em protesto empunhava cartazes com os dizeres “Viva
a Liberdade” e “Abaixo os Jesuítas”.
Sem soluções para os graves problemas económicos e sociais do país, o
Governo republicano, temendo perder o poder acabado de “conquistar” pela violência,
publicou, em Março de 1911, nova lei eleitoral, reduzindo o corpo de eleitores
a cerca de metade do que resultara do sufrágio universal instituído em 1878 por
Fontes Pereira de Melo. Enquanto isso, decorria a greve dos operários das
conserveiras de Setúbal, que eclodira em Fevereiro e duraria até Abril de 1911.
A famosa “ética republicana” não coibiu o Governo de assassinar um operário e
uma operária às mãos da G.N.R. Em Agosto do mesmo ano foi a vez dos operários têxteis
reivindicarem 8 horas de trabalho, uniformidade salarial e garantia de emprego,
manifestando-se, ingloriamente, frente a São Bento.
Entretanto, no Alentejo, vinham ocorrendo focos de agitação social, em
Outubro de 1910 e fins de Janeiro de 1911. Totalmente dependentes do incerto e
misero trabalho sazonal nos grandes latifúndios, os proletários rurais viviam
da mendicidade o resto do tempo. Sobre eles, Cesário Verde escreveu no seu
poema “Provincianas”: “Tal como existem mercados/Ou feiras, semanalmente/ Para
comprarmos os gados/ Assim há praças de gente/ Pelos domingos calados”. Desiludidos
com a ausência de resultados do novo regime, na sequência de um inverno
excecionalmente frio e chuvoso que fizera aumentar o número de desempregados,
os assalariados rurais revoltaram-se concentrando-se, entre 10 a 20 mil, nos
campos em redor de Évora. Sapateiros, pedreiros, carpinteiros e corticeiros
locais juntaram-se aos revoltosos. Desorientadas, as autoridades atribuíram o
motim aos monárquicos e cercaram a cidade. Em 24 de Janeiro, num conflito com
os grevistas, a G.N.R mata um trabalhador, fere seis e prende oitenta. Foi
encerrada a Associação de Classe dos Trabalhadores Rurais de Évora, assaltada a
Federação Anarcossindicalista de Lisboa e presos dezenas de operários.
A 29 de Janeiro de 1912, os operários de Lisboa solidarizaram-se com os trabalhadores
rurais de Évora, paralisando todos os meios de transporte exceto o
caminho-de-ferro. Fábricas e oficinas da capital aderem estabelecendo a
anarquia na cidade. A 30 de Janeiro o Governo decreta o Estado de Sítio, assalta
a sede da Casa Sindical na Calçada do Combro e prende 584 operários, levando-os
para os navios de guerra “D. Fernando”, “Pêro de Alenquer” e “5 de Outubro”. No
dia seguinte, o Governo completa a tarefa prendendo militantes em rusgas, e
trabalhadores nas suas casas, ascendendo a 700 o total de detenções. Muitos
foram transferidos para os fortes de Sacavém, de Monsanto e do Alto do Duque,
ficando alguns no navio “ Pêro de Alenquer”. Todos seriam julgados em Tribunal
Militar, por decisão do Governo. Estima-se que em meados de 1912, o número de
presos políticos fosse 2382, a maioria dos quais operários.
Fracassada a greve, os trabalhadores deixaram de acreditar na República.
Afinal, afastado o rei e humilhados os padres, a alimentação continuava cara, o
direito de voto era-lhes negado e as liberdades continuavam escassas. Os políticos
eram todos iguais.
No capítulo da instrução popular, a construção de escolas manteve-se exígua,
apesar da consciência, partilhada por republicanos e operários de que a escola
era a via para o progresso. Nem o Governo tinha dinheiro para o investimento
necessário, nem as famílias estavam interessadas na instrução dos filhos. A maioria
dos trabalhadores deixara de acreditar em quem quer que fosse.
Ficaram os testemunhos fotográficos de Joshua Benoliel da pobreza na
capital: “Um velho comendo o seu caldo, “Mendigos no Terreiro do Paço” ou “Uma
família pobre e numerosa à porta de sua casa em Lisboa”.
Excetuando os “amigos” de Afonso Costa, a República assustava toda a
gente e não dava nada a ninguém.
Fonte: “Os Pobres” de Maria Filomena
Mónica
Greve do operariado 29 30 31 janeiro 1912
(Joshua Benoliel)
Peniche, 12 de Abril de 2021
António Barreto
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