A Instrução pública em
1820
A temática do ensino foi muito debatida em Cortes na
sequência da Revolução Liberal de 1820. Numa época em que vigorava o modelo da
reforma pombalina - em que a Coroa aboliu as escolas jesuítas, com o propósito
de as substituir por uma rede de escolas públicas, projeto que nunca alcançou a
eficácia do modelo anterior e que muitos consideram causa do atraso de Portugal
-, as ideias iluministas e a experiência da Revolução Francesa inspiraram alguns
intelectuais liberais estudar e propor, em Cortes, a reforma do sistema de
ensino, cientes da importância do conhecimento para a emancipação individual e
para o progresso social e económico do país.
As propostas incidiram
sobre o ensino das “primeiras letras”, o ensino intermédio e a universidade.
Afirmou-se o direito do cidadão à educação e a obrigatoriedade
do Estado em garanti-la desde o berço.
Aos pais impunha-se a obrigação de levar os filhos à escola
pública. Ao Estado atribuiu-se o dever de os educar e o direito de escolha do
método, considerando-se as crianças propriedade pública. Este entendimento,
afinal, vigora ainda hoje, colidindo com o conceito de liberdade que tanto se
apregoa.
Também houve quem defendesse o ensino privado e o direito dos
pais escolherem a escola dos seus filhos, com o propósito de os subtrair à doutrinação
política da Escola Pública.
Duzentos anos depois, o problema persiste; o desejo de formar
clientelas e eleitores prevalece relativamente à elevação da capacidade crítica
dos alunos.
Entre os proponentes distinguiram-se Borges Carneiro, Santos
do Vale, Mouzinho de Albuquerque, Soares Franco, Almeida Garret e os irmãos Passos, entre outros.
Nas primeiras
letras, a população, analfabeta, pedia escolas, cerca de 160, conseguindo
apenas 60 por parte da Coroa, que para o efeito criara o imposto literário.
Surpreendente, este empenho dos cidadãos, conscientes da necessidade da escola.
Normal a insuficiente resposta do Estado, sempre com outras prioridades.
Defendeu-se a criação de duas escolas por aldeia ou povoação,
uma para meninos, outra para meninas, onde se ensinasse a ler, escrever e
contar e os catecismos civil e religioso, uma vez que o catolicismo era a
religião oficial. As escolas de meninas incluiriam as tarefas domésticas
tradicionais.
Incentivou-se o ensino privado permitindo a livre formação de
escolas, independentemente das habilitações do respetivo autor, e proibindo aos
organismos públicos a criação de dificuldades à sua constituição.
Validou-se o ensino mútuo, mediante o qual, devido à escassez
de professores certificados, se podia recorrer livremente a particulares
dotados de competências informais.
Por fim, alertou-se para o facto de alguns recebedores do
imposto literário se apropriarem do produto da coleta adquirindo propriedades
para si, fazendo uma vida de opulência.
A receita deste imposto passou a ser usada para fins diversos
dos que lhe eram próprios, financiando despesas correntes, em prejuízo da
expansão da rede de ensino primário.
No ensino intermédio
defendeu-se a criação de escolas, uma por distrito; de transição para o ensino
superior, os liceus, e de ensino das artes, as escolas politécnicas, às quais foi
atribuída importância superior à universidade, dado o caracter pouco prático
desta e a necessidade de desenvolvimento económico do país.
Mais uma vez, reconheço aqui um constrangimento do sistema
educativo de hoje; a corrida aos graus académicos socialmente “nobilitantes”
mas de utilidade marginal, em detrimento da aquisição de competências para o
real mercado de trabalho.
Tal realidade demonstra que a transição cultural da sociedade
para a democracia ainda não ocorreu, uma vez que o reconhecimento da dignidade
humana deve ser intrínseca, associada ao comportamento social de cada um, e não
dependente de graus académicos, cargos ou funções que se exerçam.
O ensino superior
era monopolizado pela universidade de Coimbra - à qual competia também o controlo
pedagógico do ensino secundário -, completamente controlada por eclesiastas católicos,
regulares e irregulares.
O seu conservadorismo radical e inutilidade prática suscitou
as mais veementes e corrosivas críticas dos liberais os quais defendiam que aos
padres e frades competia a igreja e o seminário, enquanto a universidade pertencia
à sociedade Civil.
Defendeu-se o fim da acumulação de cargos, por ser praticamente
impossível o desempenho simultâneo de ambos, em especial aos eclesiastas, visto
ser despropositado o ofício religioso na universidade.
Houve até propostas para a abolição da universidade - de Soares
Carneiro -, por a considerar inútil e perniciosa, defendendo a criação de
escolas de artes espalhadas pelo país, que habilitassem a população para o
exercício das profissões de que havia carência. Não é este um problema dos
nossos dias?
Discutiu-se as
finanças da universidade, uns defendendo a sua autonomia face à Coroa, outros a
integração na Administração Pública, que a financiaria, ficando com as
respetivas receitas - das vacinas e outras - e o respetivo património. O corpo
docente seria integrado na função pública.
Uma das críticas que se fez à universidade radicou no facto
de as principais faculdades, as mais importantes, designadas então por das “ciências
positivas”, serem Teologia, Cânones e Leis! Das ciências menores faziam parte
as faculdades de Medicina e Matemática! E mais não havia! As razões do
persistente atraso de Portugal, vão-se tornando cada vez mais nítidas.
Portugal era, pois, um país de padres e doutores, que ocupavam
os cargos públicos, enquanto o país carecia de gente qualificada nos mais
diversos setores da economia, desde logo, agricultura, pescas e navegação. Esta
era a razão pela qual se chegou a defender a sua extinção.
Também se discutiu a obsolescência dos manuais de ensino, em
especial na faculdade de Leis, onde se ensinava o Direito Romano, considerado retrógrado
por ter origem na “vontade do príncipe”, incompatível com o modelo
representativo do regime de então.
Derrubado em 1823 pela contrarrevolução das hostes
miguelistas, de que a rainha Carlota Joaquina fazia parte, a que se juntou D.
João VI, nenhuma destas propostas chegou ao terreno.
Alguns dos proponentes acabaram por se exilar no estrangeiro,
Inglaterra e Brasil, uns regressando mais tarde, por volta de 1834, outros
acabando por lá, alguns na miséria.
Com a Revolução Liberal de 1832 a 1834 e o fim definitivo do
Absolutismo seguiu-se um período de profundas reformas, de Mouzinho da
Silveira, que lançaram o país na modernidade, em especial nas frentes
administrativa e judicial, e na educação onde algumas destas propostas foram
realizadas.
Parece-me evidente
que o sistema educativo que vingou, até, pelo menos 1974, foi o defendido pelos
irmãos Passos, O Manuel e o José. Com efeito, estes desenharam um projeto muito
semelhante ao que esteve em vigor nos anos sessenta do século XX e que, em
grande parte, ainda se reconhece nos dias de hoje.
(Continua)
Consulta: A Revolução de 1820 e a Instrução Pública, de Luís
Reis Torgal e Isabel Nobre Vargues
Peniche, 18 de Fevereiro de 2023
António Barreto
Sem comentários:
Enviar um comentário