Salazar e os pobres
Salazar considerava que
a atribuição de subsídios sem contrapartida desmoralizava as pessoas
tornando-as indolentes, comodistas, inúteis, um fardo para a sociedade. Pelo
contrário, quando correspondiam a trabalho, mantinham a função natural do
indivíduo e enriqueciam o país com a participação em obras de interesse geral.
Considerava a mendicidade um vício cuja teatralidade, além de prejudicar o trânsito
da cidade (Lisboa), dava a falsa ideia de pobreza geral. A solução que
preconizava consistia na severa punição dos falsos mendigos, na devolução às
terras de origem dos que não eram de Lisboa e no internamento dos mendigos
autênticos nos asilos existentes ou nos que tivessem de ser improvisados para o
efeito.
Em 1933 foi lançada uma campanha contra a mendicidade pelo comandante da
PSP em Lisboa. Foram presas mil pessoas. As prisões de Lisboa não eram
suficientes para encarcerar tanta gente. Dois anos mais tarde as autoridades
limitavam-se a pedir às pessoas para não darem esmola aos pobres. Os pobres de
Lisboa, excetuando alguns asilados na Mitra, viviam sem auxílios oficiais.
Vagueavam pelas ruas, alimentavam-se com uma sopa da Misericórdia ou do que
calhava, e dormiam nos pestilentos albergues do Arco do Cego e da Rua da
Betesga, geridos por particulares.
Os lisboetas viam os pobres com benevolência. Distinguiam-nos entre os
honestos, que eram subservientes, e a ralé, que se embebedava. Algumas famílias
abastadas tinham os “seus” pobres a quem davam alguma comida e roupas. Alçada
Batista fala-nos do ritual desta relação em que os ricos cultivavam a pobreza,
“regando-a com bocadinhos de pão com conduto e algumas moedas”. Incluía a
“comida dos pobres”, as “visitas dos pobres” e o “dia dos pobres que, por ser
azarento, era à 6ª feira. Na Beira Baixa, região de origem de Alçada Batista,
pobres e ricos encaixavam na perfeição; aqueles, mansos, cordatos, “ómildes”,
respeitadores e obedientes ao senhor e ao Senhor, pretendiam apenas o mínimo
para viver o seu dia-a-dia de miséria. Estes aliviavam as consciências, certos
de que lhes seriam franqueadas as portas celestiais; cultivavam a pobreza
alheia com carinho sem que tentassem acabar com ela. Para os poetas, os pobres constituíam
matéria-prima inspiradora.
Quanto a Salazar, considerava a pobreza uma virtude. Afirmava-se um
homem livre por não possuir bens de relevo nem ambicionar riquezas,
conformando-se com uma vida modesta. Não carecia de se envolver em tramas,
enredos ou solidariedades obscuras. Era, dizia, “tanto quanto se pode ser, um
homem livre”. Tinha, pelo menos, a sabedoria de perceber que ninguém é totalmente
livre. Que a liberdade absoluta não existe.
O povo, confinado nas aldeias, além do trabalho árduo e miserável do
campo, distraia-se nas procissões, feiras e quermesses. Os grandes
beneficiários do novo regime, tal como hoje, foram os funcionários públicos, com
salário garantido e respeitados. A falta de contacto com outras realidades,
outras experiências, terá sido uma das causas da longevidade do Estado Novo.
Em Março de 1938 estala uma curiosa discussão sobre analfabetismo em
Portugal; em pleno Parlamento houve quem defendesse que o povo, detentor de
grande riqueza intuitiva, considerava desnecessário aprender a ler; na Câmara
Corporativa, alguns procuradores defendiam que o analfabetismo não era
consequência da pobreza, uma vez que havia nações alfabetizadas pobres.
Surpreendente era o ponto de vista de uma popular escritora de literatura
infantil, Virgínia de Castro e Almeida; dizia que, ao aprender a ler e
escrever, as pessoas tornavam-se ambiciosas, querendo ir para as cidades para
as profissões de marçanos e caixeiros, aspirando à dignidade de senhores; que
acabariam a ler relações de crimes, noções erradas de política, livros maus, folhetos
de propaganda subversiva; que largariam a enxada, deixariam de querer saber da
terra, dominados pela ambição de aceder ao setor público; as vantagens da
escola seriam nulas.
Fonte: Maria Filomena Mónica "Os Pobres"
(Cont.)
Peniche, 27 de Junho de 2021
António Barreto
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