O Fim de uma Era (I)
No dia e hora
previstos - ao meio-dia do dia seguinte ao incidente verificado na Casa das
Caldeiras, nos idos de 75 -, o “Vera Cruz”, com a caldeira de bombordo vante
fora de serviço, largou amarras do cais de Alcântara para a sua derradeira
viagem com destino a Kaohsiung, na
ilha “Formosa” - atual “Taiwan” -, onde o aguardavam maçarico e rebarbadora,
prontos a desfazê-lo em mil pedaços.
Uma tripulação de
contingência tinha sido escalada; o Comandante era o Manaças, homem grave e
autoritário, de crânio liso; o imediato, para minha satisfação, era o meu querido
tio João Catulo, homem cultíssimo e reservado; o 1º Piloto era o Bettencourt, amigo,
cordial e descomplicado; o 2º Piloto era o Teles, ilhavense amigo que adorava a
vida do mar, chegando a dizer, com ironia, que ainda lhe pagavam para fazer o
que mais adorava; andar no mar.
Na máquina tínhamos;
a Chefe, o “Porfírio Rubirosa”- não recordo o nome próprio -, gracejo que
corria entre nós pelo seu ar aprumado e enfatizado de que se destacava o
inseparável boné, - uma alusão jocosamente carinhosa ao célebre playboy dominicano, que “arrastara a asa”
à nossa Amália quando esta, nos seus tempos áureos, destruía corações pelo
mundo; o 1º Maquinista era o Telmo, homem cordial, discreto e muito respeitado
entre nós, os 2ºs Maquinistas eram, o Brito “maluco”, homem bom, um
tanto exuberante e brincalhão, que nada tinha de maluco; o Pintassilgo, o nosso
campeão de natação, sempre pedagógico, tranquilo e cordial; o Melo, calmo,
eloquente e eficiente, de fisionomia típica de um sul-americano e o Abreu, o
nosso “homem-golo”, amigo de longa data, sempre sereno e discreto. Além de mim,
do grupo dos 3ºs faziam parte; o Airoso, grande amigo e companheiro
desde os tempos do secundário, o voluntarioso Adalberto, de São Martinho do
Porto; o Basso companheiro de peripécias por terras de Chiang Kai-Check, politicamente avançado, com quem aprendi o
célebre tema de José Afonso “Os Vampiros”; e o irreverente e amigo Rogério, militante
progressista - soube muito mais tarde - de barbichas à Fidel Castro.
Dos restantes
tripulantes não me recordo; marinheiros, cozinheiros, despenseiro, fogueiros,
empregados de câmara, etc. Porém, lembro-me do azeiteiro - fazia não sei bem o
quê nos compartimentos a vante da Casa das Caldeiras -, de alcunha o Polícia,
um homem de Alfama - salvo-o-erro, constando-se cadastrado -, conversador de
historietas e anedotas, instigador de um episódio engraçado já na reta final da
viagem. Não havia artífice; os trabalhos de torno eram efetuados pelo Melo e
pelo Abreu, que na adolescência tinha sido torneiro.
Não tinha bem noção
do que estava a suceder; na minha mente habitava uma suave tristeza pelo fim de
um dos ícones mais destacados da nossa Marinha Mercante, a satisfação de ter
sido escolhido para uma viagem histórica que se adivinhava particularmente dura
- pela duração, além de contornar a África, teríamos que fazer a travessia do
Índico, e pelo agravamento das condições térmicas, habitualmente severas na
Casa da Máquina -, e a agradável espectativa de conhecer o “mundo novo”, da
China insular.
Tratava-se, sim, de
uma medida de racionalização económica; perdido o monopólio do transporte
marítimo garantido pelo Pacto Colonial desde o longínquo século XVI, a nossa
frota mercante deixara de ser economicamente viável, num contexto de grande
turbulência institucional, económica, social e política que o país atravessava.
Por outro lado, os
líderes da nova ordem política empenhavam-se em desmantelar um dos pilares
identitários tradicionais dos portugueses; a sua vocação marítima, “o país de
marinheiros, de naus, de esquadras e de frotas…”, que dera “novos mundos ao
mundo”, cantado por António Nobre e Camões. Uma nova era implicava nova
identidade e esta, segundo Eduardo Lourenço, não se ergue sem a destruição prévia
da anterior.
(Continua)
Peniche, 19 de Novembro de 2022
António Barreto
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