O Fim de uma Era (epílogo)
Fomos para Taipé num voo doméstico. Cidade cosmopolita, de largas,
movimentadas e limpas avenidas, edificado de traço apurado e, em geral, bem cuidado.
Ficámos instalados no hotel Majestic,
numa zona central da cidade. Bem instalados; excelente aspeto externo e interno,
bons quartos e cordialidade q.b.
Pairávamos a maior parte do tempo na zona do hall, ou nas proximidades. Não sabíamos onde ir. Quando muito
dávamos umas voltas pelo quarteirão. Deve ter sido um embaraço para a gerência.
Imaginei que aguardássemos a conclusão da transação económica.
Demos por ali umas voltas -o Airoso era companhia frequente; muitas.
Apercebemo-nos de que abundava uma espécie de tascas, onde serviam arroz branco,
simples, em tigelinhas; gente humilde; uns comiam-no no local, outros pelo
caminho. Ficámos com a impressão, algo surpresos, de que, para os locais, se
tratava de uma espécie de prato gourmet.
Aquilo parecia barato.
Um dia, algo acidentalmente, fui parar aos subúrbios. Casario modesto
mas sem barracas, gente simples, cordial, moderadamente solícita. Pareceu-me um
bairro operário. Contrastava com a exuberância arquitetónica central.
Lembrei-me de Nietzsche e das suas
teses do “inevitável Super-Homem”, a quem caberia a tarefa de desbravar os
caminhos do progresso cultural, económico e tecnológico da humanidade, e da consequente
servidão dos que, “incapazes de tais façanhas”, garantiriam a subsistência
daqueles.
Todos os dias, mais ou menos a meio da tarde, ouvíamos uma espécie de
sininhos, tipo caixinha de música, nas proximidades. O que será, o que não será?
Perguntávamo-nos intrigados. - É o carro do lixo! - Disse alguém, certo dia. E
era!
Então íamos ver o “fenómeno”. Um
pequeno e discreto camião amarelo, fechado, passava pelas cinco horas da tarde,
todos dias, emitindo a suave sonoridade.
As pessoas iam saindo de suas
casas com um saquinho de plástico que depositavam, tranquilamente, no veículo.
Nem aglomerações, nem ruído nem odores, nem vistas desagradáveis.
No terraço de um edifício próximo avistava-se gente, vestida normalmente,
todas as manhãs, a fazer exercício. Parece que era hábito, nalgumas empresas
locais, proporcionarem aos seus trabalhadores uns minutos de ginástica sueca,
ou algo semelhante. Uma curiosidade a que achávamos graça e que atribuíamos à
proverbial sabedoria chinesa.
Uma manhã preparava-me para descer quando entrou um empregado do hotel.
Rapaz novo, calça preta, camisa branca. Não sei o que ia fazer. Pôs os olhos na
viola, encostada à parede junto à janela do fundo: - Can I play? - Perguntou, educadamente. - Yes, please. - Respondi, intrigado e curioso.
Pegou na viola e tocou, maravilhosamente, o clássico “Romance de Amor”. Quando acabou: - I teach you how to
play it. - I can’t. - It’s easy, you learn. E
estendeu-me a viola.
- Isto vai ser uma seca! Vou-me
embrulhar todo e não saio daqui tão cedo! - Pensei, resignado. Comecei a
“esgatanhar” conforme as minuciosas instruções que ia recebendo, aqui caio
acolá me levanto, e lá consegui, titubeantemente, chegar ao fim.
Ofereceu-me a respetiva partitura, que ainda tenho. Com o treino
sistemático nos dias seguintes adquiri a fluidez adequada. Uma peça das que me
dá mais gosto tocar; uma das coisas mais gratificantes que me sucedeu na minha
vida marítima.
Nas nossas repetidas deambulações pelas imediações do hotel - eu e o
Airoso andávamos quase sempre juntos -, cruzámo-nos pela primeira vez com civis
americanos, uma espécie de “mostrengos” altos e gordos, e com chineses cuja
envergadura física desmentia a ideia que tinha do chinesinho meia-leca.
Volta e meia ouvíamos as garotas exclamarem à nossa passagem: - handsonme, handsome! E nós todos “inchados”.
Acho que gostavam do tipo físico dos europeus. Em tempos diferentes metemos
conversa com duas delas. Tomámos uns drinques e aquilo ainda deu lugar a umas
peripécias algo hilariantes. Uma delas deixou saudades.
Como deveríamos ser um embaraço para o hotel, levaram-nos numa “expedição”
a uma reserva com animais de grande porte Recordo vagamente ter visto, por lá,
leões e elefantes e talvez girafas, mas não estou certo disso.
Entretanto tinha comprado um chapéu do tipo australiano, de feltro
castanho, que usava, todo “pimpão”, a título de brincadeira, longe de supor que
alguém o considerasse um ato vaidoso. Mantive-o e usei-o durante muito tempo,
até se desvanecer.
De outra vez levaram-nos para uma estância de férias, algo afastada da
cidade. Estivemos por lá uns dias, isolados. Pensei levar emprestada, sem falar
com o dono, uma belíssima moto, de cor preta com peças cromadas, para dar umas
voltas pela região. Foi então que o Airoso “confessou” ter sido incumbido de me
manter debaixo de olho; não fosse eu meter o “pé na argola”. Percebi a delicadeza
da situação e deixei-me estar sossegado.
Regressados a Taipé, chegara a hora dos “recuerdos”. Descobri duas bonitas bonecas, uma gueixa e uma
camponesa, e dois lindíssimos candeeiros de mesa, de múltiplos painéis de vidro
pintados, rodando pela ascensão do ar aquecido no seu interior. Achei
fascinante. De Kaohsiung trouxera uma
bela resma de LP’s, atuais, a tostão; entre eles, alguns de música chinesa, de
que nunca consegui gostar, mas de que acho graça. Gosto de todo o tipo de
música exceto desta. Defeito meu.
Finalmente chegou a hora do regresso. A viagem durou, salvo-o-erro,
cerca de dezanove horas. Fizemos várias escalas, uma delas em Karachi onde aguardámos, num hotel, a
ligação seguinte.
Achei graça ao facto de termos tomado o pequeno-almoço, aí umas três
vezes! Parecia que o relógio tinha parado nas nove horas da manhã. Os aviões
faziam “parar” o tempo aparente!
Esta foi uma viagem, para mim, memorável, que marcou o início do fim da magnífica
e saudosa frota mercante portuguesa. O Santa Maria, de cuja tripulação também
fiz parte, foi logo depois. Quando chegámos a Kaohsiung, após uma viagem bem menos acidentada, já o Vera Cruz
estava reduzido a um monte de sucata. Que visse, ninguém chorou, exceto, talvez,
interiormente, como me sucedeu.
Peniche, 05 de Fevereiro de 2023
António Barreto
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