Gente da Praia
“Depois, alguns homens desceram à praia...E mar assim tão calmo e céu assim tão aliviado minara-lhes vergonha e saudade de ganhá-lo:
- Eh, gente! vamos aparelhar!...
- Eh, Tóino! Eh, Moisés! Toca a chamar a companha!...
Em ruelas e esguelhas de caminhos, uma chusma de catraios perfurou, endemoninhada gritando o aviso de sempre:
- Zé Liró, o arrais chama, ouviste?...
- Manel da Palmira, o arrais chama!…
- Onde tá o seu filho, ti Custódia? O arrais chama!
Mulheres correram também, levando o mesmo apelo:
- Ó Júlio! Júlio! O arrais chama, ouviste?
- Maximiano, olha o arrais!...
E o chamamento repercutia de norte a sul:
- ...o arrais chama!...
- ...o arrais chama, ouviste!?
- ...o arrais chama!...
A aldeia formigou para a praia, levada pelo grito de todas as bocas. Embarcações afastavam-se de terra – oito remos a espadanar, arrais e espadilheiro encarrapitados na bica de ré. Roncos de óóó upa!, costados a forcejar meias-luas, pés na areia resvaladiça - todos punham a sua gana naquele entusiástico momento.
- Não há fome que não dê em fartura!...- disse o dono de um barco ao enxergar o seu aparelhado. - Ou trazem todo o peixe… ou o espantam para sempre!…
Recoveiros fixavam-se no areal, envolvido pelo nó das pandas. E os traços negros das sirgas submergiam-se na na verdura das águas.
Gente da praia aguardava o alar das redes. Puxavam-se cigarradas gostosas - pois aquele dia foi um dia bem vivinho. História ou peripécia logo arrancava galhofa de soltar as peles.
Amolecia o pesadelo do mau tempo.
O Golfinho do Racha foi a primeira embarcação a findar lance. O Santo António do Chico Soldadinho aportou a seguir. E os alares foram simultâneos: um a sul e outro ao norte. Vinte e cinco, trinta cordas recolhidas – e logo as mangas das redes foram puxadas à finca. As redes agitavam-se em amplas e rítmicas vibrações, quando os sacos foram abertos. Os do fisco acorreram, e começou a lota com a contagem dos escrivães. Berrou-se um chui a 200 mil reis, outro a 340. Catraios procuraram os armadores, com as alvíssaras. Novas embarcações trouxeram panda. Novos alares.
A tarde alongou-se nesse afã. O pessoal de terra nem se lembrava já da bulha dos tascos. Ria-se, agora, das graçolas que um ou outro largava, pois, na vida do mar, não escasseavam motivos e graçolas… Alguns barcos ficaram no segundo lance, arrecadando cordas, bóias e redes. Encalharam meias-luas. Nos tascos mais afreguesados – Mané Choco, Quintinhas, ti Isabel Piló e outros – abateram-se dívidas nos róis. Cartas e dominós vieram para as mesas. Manducas tocou gaita de beiços. Ti Lourenço castanholas. E a malta bebeu e confraternizou.”
“Calamento” de Romeu Correia
Peniche, 5 de Agosto de 2023
António Barreto
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