Se Eusébio morreu hoje, como dizem as infatigáveis notícias, morreu hoje o que restava dos meus anos 60 e o que restava de Portugal ter sido um império.
E embora morrendo hoje, como dizem as indesmentíveis notícias, as cores do mito – esse belo negro da sua pele, esse vermelho vivo da sua camisola – não deixarão nunca morrer Eusébio. E nem é preciso dizer aqui a palavra Benfica, porque a palavra Eusébio e a palavra Benfica beijam-se, fundem-se, são uma combinação amorosa de que a gramática tem ciúmes.
Eusébio era feito da mesma terra vermelha dos heróis. A força de pernas de um Hércules, veloz como Ulisses, o joelho onde Aquiles tinha o calcanhar. Há romance, mistério e aventura em toda a sua vida. Vejam como, da cidade colonial de Lourenço Marques, o trazem para Lisboa.
Numa noite de trópicos, um jipe leva-o à porta do avião. Clandestino quase. E em Lisboa escondem-no da bruxa má. Tudo porque Eusébio, personificação da bondade, fez o que um filho deve fazer, a vontade à sua mãe. O clube onde jogava queria mandá-lo à experiência para outro clube. Mas a mãe, como todas as mães, decidiu pela vontade do filho: recusar vir à experiência porque, como todos os verdadeiros humildes, Eusébio sabia o que valia.
E o que valia Eusébio? Outros dirão muito melhor do que eu. Eu conto-vos só as minhas perplexidades. Eu nunca conseguia saber se era o seu pé esquerdo, se o seu pé direito que chutava. Porque, em boa verdade, não era ele que chutava. A velocidade rematava por ele. E já estou a mentir ou a enganar-me, porque, em boa verdade, foi com Eusébio que a velocidade aprendeu a jogar à bola. Num tempo em que os carros tinham quatro velocidades, Eusébio já tinha a sexta.
Deixem deliciar-me vergonhosamente no vício das minhas recordações. Estou a vê-lo, em Amsterdão, alinhado com Águas, Coluna, Simões, antes da final com o Real Madrid começar. Está perfilado, a carapinha cortada quase rente, a cabeça redonda de menino, preciosamente desenhada e bonita, a pele negra brilhante, nobre, africana. E era, menino de Moçambique, o melhor jogador português. E eu tenho muito orgulho em que o melhor jogador português seja um africano, raio de um ex-império que nem um deputado negro consegue ter.
Nesse jogo, marcou dois golos, os dois, juram-me, e eu não teria tantas certezas, com o pé direito. Puskas, Gento e o semi-deus que era Di Stefano caíram aos seus pés. Eusébio, herói compassivo, foi ao chão buscar a camisola de Di Stefano. Pediu-lha, a esse semi-deus abatido. Di Stefano deu-lha, consolado por aquele pedido de menino, e Eusébio guardou-a, porque Eusébio é o guardião de todos os símbolos.
Eusébio foi o primeiro futebolista a justificar os 110 metros de comprimento de um campo de futebol. Se não fossem já essas as medidas, o campo teria de ser esticado. Eusébio comia com alegria metros de relva. Eusébio era um bicho dos grandes espaços, uma pantera que queria savana. Foi com ele que o futebol descobriu que a África existia.
Corria em linha recta ou em elipse, fazendo meias-luas, rápidas mudanças de direcção, reinventando a velocidade, baixando-a, subindo-a. Percebia-se assim, finalmente, por que razão um campo de futebol deve ter 75 metros de largura, uma área de 8250 metros quadrados. Corria e nas pernas dele corria a palavra Benfica. Mas também a palavra Portugal.
Foi em 1966, não dou novidade nenhuma a ninguém. Mas vejam outra vez as cores do mito a pintar Eusébio. Houve um sorteio dos números das camisolas. Saiu-lhe o 11, ao pequenino e maravilhoso Simões o 13. Simões queria jogar com o seu habitual 11 e, com a verdade, deu a volta a Eusébio: “Já viste o que é, se jogares com o 13 e fores, como vais ser, o melhor marcador e o melhor jogador do mundo?” E foi, com esse número que devia ser fatídico, com esse número da feiticeira Circe, o melhor marcador, o melhor jogador, o Melhor. As cores do mito, os números do mito, escolhem-no, querem-no como filho dilecto.
Vi o segundo golo dele ao Brasil num filme exibido no cinema Império, em Luanda. Uma obra de arte gigantesca em que potência e explosão se enlaçam. Um golo que ajoelhou o Brasil, esse império romano do futebol. De novo e sempre as cores do mito: com esse golo, aos pés alados de Eusébio, caía Pelé, uma lança espetada no flanco.
No jogo com a Coreia do Norte, Eusébio carregou, como Hércules, o mundo aos ombros. Ainda nem a meio da primeira parte íamos e a Coreia, abalando a ordem do céu e terra, de mares e ares, ganhava por três a zero. Eusébio reconstituiu minuciosamente a ordem do mundo, todo o universo. Agarrou nos destroços e com perseverança juntou as partes. Correu, driblou, foi atingido violentamente, mas triunfou. Quatro golos foram os trabalhos de Eusébio nessa tarde de glória que acabaria, dias depois, nas lágrimas de Wembley, momento mais bonito, mais lírico ou elegíaco do que qualquer vitória. Lágrimas de Eusébio que a camisola de Portugal recolhe e esconde. Nenhum outro gesto, outras lágrimas, poderão ser testemunho de mais amor.
Morreu hoje Eusébio da Silva Ferreira, meu Deus.
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