por José Mendonça da Cruz, em 25.11.14
Os primeiros ministros não são todos iguais; os corruptos também não
O engano começou quando um pateta cunhou a frase «É a primeira vez que um primeiro-ministro é preso em democracia», e continuou quando outros o imitaram. A frase seria uma mera constatação de facto e, como tal, irrelevante, se não viesse carregada da intenção de desculpar generalizando aquilo que é particular, como se a estrutura e a circunstância pessoal, política e moral de Sócrates fosse a mesma de Cavaco, Soares, Barroso, Guterres, Mota Pinto, ou Santana Lopes. Como se a Justiça, cega e volúvel, tivesse decidido ter agora um capricho ad hominem. Sejamos claros: o que realmente se passa tem pouco a ver com «a primeira vez que um primeiro-ministro foi preso em democracia»; e tem tudo a ver com a primeira vez que um primeiro-ministro suscita suspeitas fundadas de corrupção, fraude fiscal e lavagem de dinheiro no exercício do seu mandato.
O engano continuou quando algum Teixeira ou algum Marcelino, ou alguma SicNotícias ou alguma TSF proclamaram que havia uma crise do regime, manifestada na sucessão de crises, a dos vistos gold e agora esta. A mesma intenção generalizadora e desculpabilizante preside a estes lamentos. E só essa intenção explica que se compare um caso (grave, sem dúvida, mas restrito a um domínio administrativo) de corrupção de altos funcionários do Estado (os vistos gold) com aquilo que será, caso Sócrates venha a ser declarado culpado, a actuação de um primeiro-ministro cuja governação seria determinada não pelo bem público mas pela vontade de enriquecimento pessoal, acompanhada de manobrismo para ocultação dos meios ilícitos para esse enriquecimento.
Não se trata apenas de uma questão judicial; ela é política, política, política
Sob alegação de defesa da autonomia energética e de promoção da modernidade e das energias renováveis, os governos Sócrates outorgaram rendas excessivas a alguns operadores, submetendo os consumidores a tarifas pesadas e a um esquema absurdo em que pagam mais ainda que consumam menos. Mas, agora, é legítimo perguntar se as intenções virtuosas com que foi justificado esse sistema irracional e injusto não seriam apenas disfarces para uma vontade de proporcionar ganhos ilegítimos aos beneficiários da decisão, as eléctricas, e compensações pessoais para o decisor político.
Sob alegação de combate à interioridade, de modernização, de criação de emprego, de incentivo ao crescimento, os governos Sócrates promoveram Parcerias Público-Privadas rodoviárias com encargos líquidos futuros da ordem dos 8,7 mil milhões de euros, cujo peso se começaria a fazer sentir em 2014. Depois, inexplicavelmente, o governo Sócrates renegociou alguns desses contratos aumentando os ganhos dos privados e agravando os custos para o Estado. E, agora, é legítimo perguntar se estávamos apenas perante uma vontade de mostrar obra adiando os custos para futuros governos -- se estávamos perante mera leviandade, se estávamos perante mera e inexplicável incompetência -- ou se havia uma intenção de gerar negócios e colher percentagens.
Sob alegação de «estímulo à economia» o governo Sócrates aprovou em 2009 um pacote de investimento de dois mil milhões de euros -- obtidos a crédito no exterior porque nem Estado nem privados tinham já poupança interna suficiente --, aplicando a maior fatia na Parque Escolar, no que com irresponsabilidade ululante Maria de Lurdes Rodrigues classificou de «uma festa» para as escolas e para o país. Mas, hoje, é legítimo perguntar se a festa não terá sido mais unipessoal e clandestina.
Sob a alegação de «política de crescimento», os governos Sócrates lançaram Portugal na ruína económica e financeira (suspeitando-se hoje, enquanto Sócrates enriquecia). Esta política de TGVs, aeroportos e auto-estradas, esta política de vulgata keynesiana mal digerida, estes estímulos de milhões, estas «políticas de crescimento» saldaram-se (ao menos em termos nacionais) num falhanço retumbante e ruinoso. A taxa de crescimento do PIB per capita a preços constantes em 2009 era negativa: - 3,07%. O défice montou a 10%, fora as parcelas ocultas. A dívida pública subiu 20 pontos.
Ora estas políticas, estes métodos, estes resultados foram defendidos e em alguns casos até protagonizados pelo presidente do grupo parlamentar socialista e muitos deputados socialistas, por muitos membros da direcção do PS, e pelo novo líder socialista, António Costa. António Costa foi o número dois do primeiro governo Sócrates. Defendeu, protagonizou, subscreveu e promoveu estas políticas e estes caminhos. Defende-os e subscreve-os ainda agora, em declarações públicas e na sua moção ao congresso socialista. É, portanto, legítimo exigir de António Costa que explique como é que políticas falhadas teriam sucesso quando repetidas, e que razões tão prementes tem para insistir nelas.
Não, os membros do governo Sócrates e os dirigentes e militantes socialistas não serão todos criminalmente responsáveis caso José Sócrates venha a ser considerado culpado. Mas são todos responsáveis politicamente, e essa responsabilidade é ainda menos relevável no caso dos que protagonizaram, defenderam e ainda defendem as políticas do primeiro-ministro da bancarrota. No mínimo, avaliaram mal o carácter do primeiro-ministro e a bondade das suas políticas. No máximo, foram cúmplices.
(E, se se confirmar a culpa de Sócrates, e após considerarmos os corolários políticos, devemos exigir que a justiça se ocupe do que se passou... na justiça e na investigação criminal. Ou seja, qual foi ou não foi o papel de Pinto Monteiro, na PGR, de Noronha do Nascimento, no STJ, e de Candida de Almeida, no DCIAP, nos estranhos obstáculos, prescrições, arquivamentos e destruição de provas em processos que envolviam José Sócrates.)
Ainda há votos para os profetas do passado?
Têm razão Vasco Pulido Valente e Fátima Bonifácio, tem razão o primeiro-ministro francês Manuel Valls, o socialismo é arcaico (e presunçoso), e perdeu qualquer utilidade ou papel no mundo moderno, que não compreende e enjeita. É assim em todo o lado. Os socialistas do nosso torrão penduram-se em alguns estribilhos: a «solidariedade», as «políticas de crescimento», a «defesa do Estado Social». São noções vazias de sentido, ou que falharam sempre que foram tentadas, e que sempre pressupõem uma redistribuição da riqueza que não existe. Perante essa falência, e para se preservarem alguma noção de vanguarda, os socialistas enveredam por «questões fracturantes», as quais, além de lhes proporcionarem um pouco com que se engalanarem, produzem sobretudo desarticulação nas sociedades, nomeadamente envelhecimento da população, decréscimo da população activa e das contribuições sociais, e desestruturação das famílias e das comunidades. Politicamente, o socialismo é passado. Economica e financeiramente, o socialismo é a ruína. Mas os estribilhos e as ilusões ainda embalam muita gente. Legitimamente, devemos perguntar-nos hoje quantos serão os iludidos, e quantos e quem serão os venais e cínicos escondidos sob a capa da demagogia.
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