O Caso Inglês
Inglaterra foi o país onde
mais cedo se tratou o tema da pobreza e que dispõe de mais e melhor
bibliografia a este respeito. Gareth
Stedman Jones em “An end to Poverty”
assegura que as primeiras propostas de eliminação da pobreza, através de apoios
sociais estruturados, surgiram na sequência das revoluções americana e francesa
e datam da década de 1790.
O francês Alexis de Tocqueville,
em 1835, registou uma estranha contradição nos países europeus segundo a qual os
que pareciam mais miseráveis eram os que tinham menos indigentes, enquanto nos mais
opulentos parte da população vivia da caridade alheia. Refere o caso da
Inglaterra onde os seus campos paradisíacos, paradigma da modernidade,
contrastavam com a indigência de cerca de 16 % da população revelada pelos
registos das autarquias e paróquias. Em contraste, em Espanha e, sobretudo, em
Portugal, observando-se por todo o lado um espetáculo chocante, de gente mal
alimentada, mal vestida, ignorante e grosseira, habitando casebres miseráveis
no meio de campos meio incultos, o número de indigentes era reduzido.
(interessante esta distinção entre miséria e indigência!). M. de Villeneuve calculara que, em Portugal, havia um pobre por
cada 25 habitantes (4 %), e antes dele, o geógrafo Balbi determinara o rácio de 1 pobre por cada 98 habitantes (1,1
%).
Tocqueville desconfiava da
indústria. Considerava que a vida do camponês, por mais desagradável que fosse,
era menos horrível que a do operário na medida em que aquele tinha as suas carências
vitais asseguradas. Chocado com a necessidade de apoio contínuo aos pobres,
opôs-se à modernização da agricultura na Inglaterra. Esta reforma deixou muitos
agricultores sem terra obrigando-os a migrar para as cidades em busca de
trabalho nas fábricas. Com as crises cíclicas do capitalismo os operários
acabavam desempregados caindo na indigência.
Tocqueville considerava que a
intervenção permanente do Estado no apoio aos pobres acabaria por “corromper os
homens”. Defendia um esquema de mutualidades e montepios em que os trabalhadores
contribuiriam para um fundo de apoio cujos recursos não deveriam ficar nas mãos
do Estado por este o os não saber gerir. Considerou a caridade individual importante
mas insuficiente e que, entre os indivíduos e o Estado, deveria haver entidades
intermédias.
A consciência pública inglesa despertou para o fenómeno da pobreza no
século XIX com as obras de Charles
Dickens - Oliver Twist -, de outros ficcionistas como Elisabeth Gaskell - North and South - dos reformadores Henry Mayhew - London Labour and the London Poor - e Charles Booth - Life and labour of the people in
London -, e do antropólogo Friedrich
Engels - The condition of the working class in London, entre outras. Até então vigorava o
conformismo com a inevitabilidade da pobreza, “consequência” do ordenamento
Divino. Comprovavam-no o hino Anglicano, All
Things Bright and Beautiful: “The rich man in his castle / The poor man at
his gate / God made them high and lowly/And ordered their estate”. Nas
sociedades agrárias relativizava-se a pobreza por se considerar que o povo
retirava da terra os bens alimentares essenciais à sua subsistência.
Contudo havia apoio social aos cegos, órfãos e desvalidos, através de
instituições particulares financiadas por fidalgos e industriais - casos dos
industriais Robert Owen e Joseph Rowntree
-, e pelo poder local - de acordo com a Poor
Law, decretada no reinado de Isabel I (1533-1603) - e do sistema Speenhamland - de finais do século XVIII.
Em nenhum dos casos se impunha o trabalho aos indigentes. Algo que mudou com a Poor Law de 1834 que os obrigou a trabalhar
nas workhouses. A ideia subjacente
era a de os desencorajar a declararem-se pobres. Uma crueldade bem patente no
romance Oliver Twist, de Charles Dickens, por estigmatizá-los, quando,
afinal, eram vítimas do capitalismo.
O conceito de limiar de pobreza
foi popularizado por J.C. Booth e a
sua London School Board, que o estabeleceram
entre 10 e 20 xelins para uma família de quatro a cinco pessoas. Tal resultou
do estudo que efetuou no Est End londrino
onde verificou que 35% dos residentes viviam em condição de extrema pobreza. Booth alterou a forma como, no início do
século, se olhava para os pobres. Enquanto Henry
Mayhew e Malthus, viam os pobres
como resíduo populacional, gente ociosa deambulando pelos campos que vivia da
miséria e do vício. Booth libertou-os
do estigma da degradação, considerando-os consequência do desordenamento social
e económico. De facto, entre os operários valorizava-se a instrução, a
respeitabilidade e a limpeza, comprovada pela análise de diários e trabalhos de
investigação. Tal é
testemunhado pela obra de J Rose, The
Intellectual life of the British Working Class (Yale University Press 2001). De forma que, no final do século
XIX os operários se organizaram em sindicatos e fundaram o Partido Trabalhista,
cujo líder, Clement Attlee, chegou a primeiro-ministro de
1945 a 1951.
Contudo, a preocupação ética com a pobreza já vinha de finais do século
XVI, vertida na legislação elisabetiana que refletia a necessidade de criação
de um sistema de assistência legal, secular e nacional. A compaixão tornara-se
política pública. Beatrice Webb, em
1884, no seu diário, reconheceu que as questões sociais eram as mais
importantes do mundo contemporâneo tinham substituído o papel da religião. De
facto eram as religiões não anglicanas que desempenhavam papel de relevo na
assistência aos pobres.
No final do século XIX, o académico William
Beveridge, lançou as ideias que serviram de base à criação do moderno Welfare State. Oriundo da alta classe média,
educado em escolas de grande reputação e licenciado em Oxford, Beveridge, não se ficou pela academia, discutiu
os temas da prostituição, do trabalho infantil e do desemprego e exerceu
voluntariado em instituições religiosas. As suas ideias, fruto das aspirações
reformistas do período vitoriano, converteram-se em propostas políticas do seu
contemporâneo Clement Attlee, futuro
primeiro-ministro trabalhista.
Nos primórdios do século XX na Inglaterra, havia consenso na dissociação
do apoio social de considerações de natureza moral. Com efeito, até os liberais
Lloyd George e Winston Churchill
defendiam a necessidade de um programa social de iniciativa governamental. Para
o jovem Churchill não interessavam as
causas que tinham conduzido um trabalhador à pobreza; desde que tivesse
efetuado as contribuições sociais e pago o seguro contra o desemprego, tinha
direitos.
Entendimento semelhante tinha Beveridge,
dissociando a moralidade individual da política social. No seu livro Unemployment: A Problem of Industry defendia
que o desemprego era um problema da indústria e não dos desempregados e que a
pobreza era da responsabilidade da sociedade e não dos pobres. Este conceito
inspirou as reformas sociais de atribuição de pensões para os velhos, de criação
de centros de apoio a desempregados, do Ato Nacional de Seguro e do Beveridge Report de 1942.
No seu manifesto Let’s Face de
Future, de 1945, o Partido Trabalhista considerava que os melhores serviços
de saúde deveriam ser assegurados pelo Estado a todos os cidadãos,
independentemente do seu estatuto social ou condição económica. Eliminar o
estigma da pobreza dependente da caridade religiosa era o objetivo.
O conceito de pobre foi redefinido, tendo-se alterado o limiar do
correspondente rendimento e acrescentando requisitos de natureza cultural e
social, de forma abarcar cada vez mais gente.
Em Portugal foi o Estado que promoveu estudos sobre a pobreza embora de
natureza restrita: “O Inquérito Industrial de 1881”, no qual colaborou Oliveira
Martins, o “Inquérito sobre o Estado da Indústria da Tecelagem da Cidade do
Porto e Situação dos Respetivos Operários” de 1888, o “Inquérito Agrícola:
Estudos de Economia Rural da 7ª Região Agronómica” de 1889 e o “Inquérito
Industrial” de 1890.
No final do século XIX, o tema da pobreza estava na moda - até Napoleão
III publicou um trabalho sobre o assunto em 1844: The extintion of Pauperism. Circularam alguns opúsculos de caráter
geral limitando-se a replicar as teorias da época: J. Borges Pacheco Pereira
com o título “Sobre o Pauperismo ou as Classes Indigentes da Sociedade” e J. C.
Preto Pacheco com “O Pauperismo e a Associação”.
(Síntese de "Os Pobres" de Maria Filomena Mónica)
Peniche, 9 de Fevereiro de 2021
António Barreto
Sem comentários:
Enviar um comentário