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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Os Pobres (II)

 O Caso Inglês

  Inglaterra foi o país onde mais cedo se tratou o tema da pobreza e que dispõe de mais e melhor bibliografia a este respeito. Gareth Stedman Jones em “An end to Poverty” assegura que as primeiras propostas de eliminação da pobreza, através de apoios sociais estruturados, surgiram na sequência das revoluções americana e francesa e datam da década de 1790.

   O francês Alexis de Tocqueville, em 1835, registou uma estranha contradição nos países europeus segundo a qual os que pareciam mais miseráveis eram os que tinham menos indigentes, enquanto nos mais opulentos parte da população vivia da caridade alheia. Refere o caso da Inglaterra onde os seus campos paradisíacos, paradigma da modernidade, contrastavam com a indigência de cerca de 16 % da população revelada pelos registos das autarquias e paróquias. Em contraste, em Espanha e, sobretudo, em Portugal, observando-se por todo o lado um espetáculo chocante, de gente mal alimentada, mal vestida, ignorante e grosseira, habitando casebres miseráveis no meio de campos meio incultos, o número de indigentes era reduzido. (interessante esta distinção entre miséria e indigência!). M. de Villeneuve calculara que, em Portugal, havia um pobre por cada 25 habitantes (4 %), e antes dele, o geógrafo Balbi determinara o rácio de 1 pobre por cada 98 habitantes (1,1 %).

   Tocqueville desconfiava da indústria. Considerava que a vida do camponês, por mais desagradável que fosse, era menos horrível que a do operário na medida em que aquele tinha as suas carências vitais asseguradas. Chocado com a necessidade de apoio contínuo aos pobres, opôs-se à modernização da agricultura na Inglaterra. Esta reforma deixou muitos agricultores sem terra obrigando-os a migrar para as cidades em busca de trabalho nas fábricas. Com as crises cíclicas do capitalismo os operários acabavam desempregados caindo na indigência.

   Tocqueville considerava que a intervenção permanente do Estado no apoio aos pobres acabaria por “corromper os homens”. Defendia um esquema de mutualidades e montepios em que os trabalhadores contribuiriam para um fundo de apoio cujos recursos não deveriam ficar nas mãos do Estado por este o os não saber gerir. Considerou a caridade individual importante mas insuficiente e que, entre os indivíduos e o Estado, deveria haver entidades intermédias. 

   A consciência pública inglesa despertou para o fenómeno da pobreza no século XIX com as obras de Charles Dickens - Oliver Twist -, de outros ficcionistas como Elisabeth Gaskell - North and South - dos reformadores Henry Mayhew - London Labour and the London Poor - e Charles  Booth - Life and labour of the people in London -, e do antropólogo Friedrich Engels - The condition of the working class in London,  entre outras. Até então vigorava o conformismo com a inevitabilidade da pobreza, “consequência” do ordenamento Divino. Comprovavam-no o hino Anglicano, All Things Bright and Beautiful: “The rich man in his castle / The poor man at his gate / God made them high and lowly/And ordered their estate”. Nas sociedades agrárias relativizava-se a pobreza por se considerar que o povo retirava da terra os bens alimentares essenciais à sua subsistência.

   Contudo havia apoio social aos cegos, órfãos e desvalidos, através de instituições particulares financiadas por fidalgos e industriais - casos dos industriais Robert Owen e Joseph Rowntree -, e pelo poder local - de acordo com a Poor Law, decretada no reinado de Isabel I (1533-1603) - e do sistema Speenhamland - de finais do século XVIII. Em nenhum dos casos se impunha o trabalho aos indigentes. Algo que mudou com a Poor Law de 1834 que os obrigou a trabalhar nas workhouses. A ideia subjacente era a de os desencorajar a declararem-se pobres. Uma crueldade bem patente no romance Oliver Twist, de Charles Dickens, por estigmatizá-los, quando, afinal, eram vítimas do capitalismo.

O conceito de limiar de pobreza foi popularizado por J.C. Booth e a sua London School Board, que o estabeleceram entre 10 e 20 xelins para uma família de quatro a cinco pessoas. Tal resultou do estudo que efetuou no Est End londrino onde verificou que 35% dos residentes viviam em condição de extrema pobreza. Booth alterou a forma como, no início do século, se olhava para os pobres. Enquanto Henry Mayhew e Malthus, viam os pobres como resíduo populacional, gente ociosa deambulando pelos campos que vivia da miséria e do vício. Booth libertou-os do estigma da degradação, considerando-os consequência do desordenamento social e económico. De facto, entre os operários valorizava-se a instrução, a respeitabilidade e a limpeza, comprovada pela análise de diários e trabalhos de investigação. Tal é testemunhado pela obra de J Rose, The Intellectual life of the British Working Class (Yale University Press 2001). De forma que, no final do século XIX os operários se organizaram em sindicatos e fundaram o Partido Trabalhista, cujo líder, Clement Attlee, chegou a primeiro-ministro de 1945 a 1951.

   Contudo, a preocupação ética com a pobreza já vinha de finais do século XVI, vertida na legislação elisabetiana que refletia a necessidade de criação de um sistema de assistência legal, secular e nacional. A compaixão tornara-se política pública. Beatrice Webb, em 1884, no seu diário, reconheceu que as questões sociais eram as mais importantes do mundo contemporâneo tinham substituído o papel da religião. De facto eram as religiões não anglicanas que desempenhavam papel de relevo na assistência aos pobres.

   No final do século XIX, o académico William Beveridge, lançou as ideias que serviram de base à criação do moderno Welfare State. Oriundo da alta classe média, educado em escolas de grande reputação e licenciado em Oxford, Beveridge, não se ficou pela academia, discutiu os temas da prostituição, do trabalho infantil e do desemprego e exerceu voluntariado em instituições religiosas. As suas ideias, fruto das aspirações reformistas do período vitoriano, converteram-se em propostas políticas do seu contemporâneo Clement Attlee, futuro primeiro-ministro trabalhista.

   Nos primórdios do século XX na Inglaterra, havia consenso na dissociação do apoio social de considerações de natureza moral. Com efeito, até os liberais Lloyd George e Winston Churchill defendiam a necessidade de um programa social de iniciativa governamental. Para o jovem Churchill não interessavam as causas que tinham conduzido um trabalhador à pobreza; desde que tivesse efetuado as contribuições sociais e pago o seguro contra o desemprego, tinha direitos.

   Entendimento semelhante tinha Beveridge, dissociando a moralidade individual da política social. No seu livro Unemployment: A Problem of Industry defendia que o desemprego era um problema da indústria e não dos desempregados e que a pobreza era da responsabilidade da sociedade e não dos pobres. Este conceito inspirou as reformas sociais de atribuição de pensões para os velhos, de criação de centros de apoio a desempregados, do Ato Nacional de Seguro e do Beveridge Report de 1942.

   No seu manifesto Let’s Face de Future, de 1945, o Partido Trabalhista considerava que os melhores serviços de saúde deveriam ser assegurados pelo Estado a todos os cidadãos, independentemente do seu estatuto social ou condição económica. Eliminar o estigma da pobreza dependente da caridade religiosa era o objetivo.

   O conceito de pobre foi redefinido, tendo-se alterado o limiar do correspondente rendimento e acrescentando requisitos de natureza cultural e social, de forma abarcar cada vez mais gente.

   Em Portugal foi o Estado que promoveu estudos sobre a pobreza embora de natureza restrita: “O Inquérito Industrial de 1881”, no qual colaborou Oliveira Martins, o “Inquérito sobre o Estado da Indústria da Tecelagem da Cidade do Porto e Situação dos Respetivos Operários” de 1888, o “Inquérito Agrícola: Estudos de Economia Rural da 7ª Região Agronómica” de 1889 e o “Inquérito Industrial” de 1890.

   No final do século XIX, o tema da pobreza estava na moda - até Napoleão III publicou um trabalho sobre o assunto em 1844: The extintion of Pauperism. Circularam alguns opúsculos de caráter geral limitando-se a replicar as teorias da época: J. Borges Pacheco Pereira com o título “Sobre o Pauperismo ou as Classes Indigentes da Sociedade” e J. C. Preto Pacheco com “O Pauperismo e a Associação”.


(Síntese de "Os Pobres" de Maria Filomena Mónica)

Peniche, 9 de Fevereiro de 2021

António Barreto

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