Desporto

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Os Pobres (I)

 

   Julgo que este é um tema que preocupa quase toda a gente. A mim também. Por isso decidi aprofundar o assunto, disposto a ler tudo o que apanhar. Maria Filomena Mónica escreveu sobre os pobres - Os Pobres, a Esfera dos Livros. Acabei de o ler. Como sempre que leio qualquer das suas obras, não me arrependi. De escrita agradável, simples, respeitando os cânones gramaticais, M. Filomena Mónica, retrata, em Portugal e noutros países, em especial no Reino Unido, casos de pobreza históricos desde o século XIX; as greves dos operários da Marinha Grande, dos tecelões do Porto e da Covilhã, das conserveiras de Setúbal e dos operários em Inglaterra. Relata os factos; faz um retrato pungente do grau de indigência que se vivia nessas épocas caracterizando as populações afetadas, o tipo de habitações, onde as famílias se amontoavam, a miséria alimentar que subjugava os camponeses, a segregação social nas cidades, a repressão das autoridades e a solidariedade popular. Procurando-lhe as causas, identifica a pobreza nos dias de hoje - 2016 - e compara a forma como as ideologias atuais abordam esta temática. Oriunda de família abastada, católica, Maria Filomena Mónica, ainda adolescente, também teve o seu “pobrezinho”, à boa maneira descrita por António Alçada Batista, nas suas “Peregrinações”. Faz algumas revelações surpreendentes ao descrever a evolução salarial e do Estado Social, desde 1960 aos tempos atuais. Consciente da impossibilidade de se vencerem as desigualdades sociais não se conforma, defendendo a sociedade meritocrática em detrimento da de castas. E termina: “Sim, há pobres em Portugal. Sim, há pobres a dez minutos de minha casa, Sim, é difícil enfrentar este problema”.

   As greves de 1903 no Porto e em Setúbal em 1912 foram, para mim, revelações. Tinha uma vaga ideia da do Porto, desconhecia completamente a intensidade, dramatismo e extensão da mesma. A solidariedade para com os miseráveis tecelões e suas famílias foi notável, total na cidade, mas também dos metalúrgicos de Lisboa, de João Franco - que viria a ser nomeado por D Carlos I para formar Governo -, da população de Setúbal e até dos marinheiros do cruzador D. Carlos I. Algumas deixaram vínculo até hoje, como é o caso de Setúbal, que as gentes do Porto socorreram na revolta da Maria da Fonte com uma força, comandada pelo conde das Antas, enviada por mar e derrotada pelo duque de Saldanha.

   O caso da revolta dos operários das conserveiras de Setúbal foi, também, uma revelação. Ocorrida em plena primeira República, a promessa de democratização política não coibiu o poder instituído de reprimir barbaramente os grevistas, fazendo vítimas mortais.

Um Itinerário biográfico

  Um dos casos de segregação e pobreza relatado é o das criadas. Diz M. Filomena Mónica: “As criadas eram despachadas para destinos variados sem que alguém lhes perguntasse a opinião. Quando, em 1964, a minha irmã Isabel foi viver para Madrid, a minha mãe, “ofereceu-lhe” a Conceição, uma rapariga analfabeta recrutada na aldeia dos meus avós. Ninguém indagou se queria ir, nem quanto desejava ganhar, nem se podia voltar quando quisesse. As criadas eram seres que Deus tinha posto neste mundo para nos servir. Aliás, o tratamento que a minha família dava às criadas não era diferente do que era praticado noutras casas. Provavelmente, até era melhor. “

   Ainda sobre este tema relata uma espécie de tradição que consistia nas relações sexuais dos “meninos da casa” com as criadas, algo que não acontecera com seu irmão por ser demasiado novo na época. Já os seus amigos tentavam convencê-la de que se tratava de relações amigáveis referindo que elas gostavam de ir para a cama com eles. Esta camaradagem de machos horrorizava-a.

Os anos de 1960 e a Revolução de 1974

   As cheias de 25 de Novembro de 1967 - uma das maiores catástrofes desde o terramoto de 1755 - ocorridas na periferia de Lisboa, fizeram entre 500 a 700 vítimas, entre as quais famílias inteiras. Uma tragédia cuja difusão a Censura se encarregou de atenuar fazendo com que tivesse passado despercebida a grande parte da população. Foi aqui, entre lama e feridos, que estudantes esquerdistas e ativistas católicos contactaram pela primeira vez com a miséria.

   Foi nas longas conversas com o seu “irmão mais velho” Vasco Pulido Valente - altamente politizado e culto e que abominava o jacobinismo e pró-comunismo característicos do seu meio - que descobriu a sua vocação de esquerda, por desprezo a Salazar e à sua corte.

   Doutoranda em Oxford com a tese “Educação e Sociedade no Portugal de Salazar”, M. Filomena Mónica, ingressa no ISCTE em Março de 1974 como assistente do professor Sedas Nunes, a convite deste. Assiste aos acontecimentos da Revolução pela rádio e à queda do regime no Largo do Carmo na companhia de Vasco Pulido Valente. Em Junho, farta de aturar “meninos ricos entretidos a brincar às revoluções”, a maioria dos quais pertencente ao MES e ao MRPP, deixa a Faculdade, desistindo da ideia de se juntar aos alfabetizadores dos trasmontanos. Estava na sala de periódicos da Biblioteca Nacional por ocasião do 28 de Setembro, sem ter dado por ele. Notou então que, na oratória revolucionária nunca se falava de pobres; os baladeiros falavam de pão, paz, saúde, educação e habitação sem que alguém entendesse como isso poderia acontecer. Dum lado os operários, do outro os capitalistas destruidores da economia. Seguiram-se os saneamentos, as prisões em Caxias sem culpa formada, as fugas de alguns, de consciência pesada, para Espanha e Brasil, os assaltos dos camponeses do norte às sedes do PCP e as ocupações das herdades do Alentejo pelos assalariados rurais.

   “Nados e Criados Desiguais” foi o programa que elaborou para a RTP a convite do diretor de programas Vasco Pulido Valente, integrado na série “Gente Que nós somos” para a qual contribuíram amigos comuns. Interrompendo a investigação da sua tese, percorreu o país inteirando-se do tipo de vida de cinco famílias socialmente contrastadas. Viu gente pobre. No Alentejo uma criança, o Francisco, ia para as aulas com o pequeno-almoço feito à base de borras de café. Outro tinha de percorrer a pé sete quilómetros para chegar à escola. Alexandre - de Camarate -, Ricardo - do Barreiro -, Carlos - de Odivelas - e Luís Bernardo - de Lisboa - ficaram na sua memória para sempre.

   Retomando a bolsa de estudo em 1975 termina a tese em 1978. Nova Iorque foi o destino seguinte onde, além de algum repouso, pretendia dar aulas. Quando, no Bronx, se deparou com os sem-abrigo e com a indiferença dos transeuntes, que chegavam a passar por cima deles sem notar, compreendeu que, num país que durante séculos cultivara o sonho americano, a pobreza era vista, “não como uma desgraça, mas como um falhanço moral”. Um paradoxo inimaginável no século XX: como era possível, num país onde circulava tanto dinheiro que houvesse tanta pobreza? The Other America, de Michael Harringhton, publicado em 1962 chocou a sociedade americana e o seu Presidente, John F. Kennedy, com a revelação da existência no país de 40 a 50 milhões de pobres. Os negros, muitos deles descendentes de escravos, eram as principais vítimas, preteridos ou excluídos dos mecanismos de proteção social. Contrariamente à realidade europeia, aqui era fácil identificar “as duas américas”; os protestantes anglo-saxónicos consideravam-se destinados por Deus para mandar. Os negros tinham sido importados de África para os servir!

   A controvérsia, nos EUA acerca das causas da pobreza durava há dois séculos. A ideia dominante era a de que, esta, tinha origem nas deficiências pessoais dos trabalhadores e não nos baixos salários, na descriminação ou na exploração. O conceito de pobreza deixou então de estar associado a um limiar de satisfação de necessidades básicas para se fixar na ideia de “pobreza relativa”. Os sociólogos consideravam que havia pessoas que se consideravam pobres por não terem acesso a bens a que julgavam ter direito. Assim, a pobreza ficava associada a “estilo de vida” e à ideia de que havia pobres “respeitáveis” e “não respeitáveis”.

   A “Grande Depressão” de 1930 conduziu à intervenção do Estado na assistência social. Foi então implementado um sistema misto, público e privado, não universal, incoerente e irracional. À campanha de “guerra à pobreza” nos anos de 1960, seguiu-se a da “guerra à assistência” de 1980. Nenhuma delas surtiu efeito. Embora se tivesse verificado uma ligeira melhoria nas condições de vida dos pobres, em termos relativos, piorou. Em 35 anos, o rendimento de 1 % da população duplicou, atingindo cerca de 20 % do rendimento nacional! Enquanto os ricos estavam imensamente mais ricos, os pobres apenas viram ligeiramente melhorada a sua condição. Em 2014, segundo a UNICEF, um terço das crianças americanas eram consideradas pobres; as respetivas famílias, de quatro membros, viviam com menos de 24000$ USD anuais.

   Regressando a Portugal M. Filomena Mónica vota pela primeira vez nas eleições de 25 de Abril de 1975. Escolhe o partido socialista apesar de o considerar demasiado à direita. No seu bairro, gostou de ver ricos e pobres a votar. A universalidade do voto foi tema de discussão familiar. Tema ainda atual, havendo quem considere inadequado um analfabeto ter o mesmo direito a voto que um doutorado. Tal como sucedia no século XVIII ainda há quem pense que os pobres não sofrem. De facto, só quem passa por carências idênticas, ou convive de muito perto com eles, os pode compreender.

   Compreendeu-a George Orwell na reportagem que, durante os anos de 1930, fez em Inglaterra, nas comunidades mineiras de Lancashire e de Yorkshire, escrevendo, ao deixar a comunidade: “Através daquele cenário monstruoso, formado por montículos de carvão, chaminés, pilhas de sucata, canais malcheirosos e caminhos de lama cobertos por cinza, onde ainda se viam as marcas deixadas pelos tamancos, o comboio levava-me para longe (….) À medida que nos movíamos, devagarinho, pelos arrabaldes da cidade, íamos vendo filas e filas de casas pobres, pequenas e cinzentas, dispostas em ângulo reto em relação ao viaduto. Nas traseiras de uma dessas casas, uma jovem rapariga estava de joelhos sobre umas pedras, enfiando um pau pelo cano de esgoto de chumbo, presumivelmente entupido, que vinha do interior da casa. Tive tempo de reparar nela: no seu avental de serapilheira, nos seus tamancos rudes, nos seus braços avermelhados pelo frio. Ela olhou para cima, em direção ao comboio que passava e tão perto estava que quase consegui captar o seu olhar. Tinha uma face redonda e pálida e a cara habitualmente exausta das raparigas destes bairros, as quais, à força de abortos e de cansaço, apesar de terem apenas vinte e cinco anos parecem ter quarenta (…) O que vi no seu rosto não foi o sofrimento ignaro de um animal. A rapariga sabia perfeitamente o que lhe estava acontecer: sabia, tal como eu, quão terrível era o destino que a obrigava a estar ali, sob o frio, ajoelhada nas pedras escorregadias de umas traseiras domésticas, tentando meter um pau no interior de um esgoto nojento.” Poucos escreveram sobre os pobres como George Orwell. Aqueles sempre souberam o que lhes estava e está a acontecer.        

    M. Filomena Mónica

Peniche, 24 de Janeiro de 2021

   António Barreto

   (Continua)

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