A Greve do Porto
Em 1903 ocorreu a maior greve até então. Foi grande o impacto na
imprensa nacional e operária, tendo mobilizado a atenção da embaixada inglesa,
a solidariedade do operariado do Porto, Lisboa e Setúbal, da hierarquia
católica, dos republicanos, da maçonaria, de industriais, de políticos, da
população em geral e a repressão policial, do exército e até da marinha de
guerra.
Desta vez o número de grevistas envolvidos ultrapassava largamente as
centenas registadas nos casos anteriores. O número de grevistas chegaram aos 30
mil, cerca de 20% da população da cidade. O suficiente para assustar os
governantes e sensibilizar os parlamentares. Republicanos e católicos apoiaram
os operários, ampliando os efeitos mediáticos da greve.
No início de Maio os tecelões mecânicos abriram as hostilidades exigindo
aumento de salários - 20% acima do salário mais elevado praticado no Porto -,
redução do horário de trabalho, medição da fazenda à sua vista, abolição das
multas, limite de dois teares por operário e prioridade aos tecelões manuais no
recrutamento das fábricas. No seu manifesto proclamavam não serem ambiciosos, limitando-se
a reclamar um pequeno aumento salarial e opondo-se ao recrutamento de homens e
mulheres do campo pelo facto de os operários da indústria vaguearem pela
cidade, desempregados e cheios de fome.
A meados de Maio foi decretada a greve geral. No final do mês, com
exceção dos privilegiados tintureiros, todas as oficinas - cardação, fiação,
branqueação e tecelagem - paralisaram. Iniciadas as negociações os operários
interromperam-nas a meados do mês de Junho, após recusarem a oferta de
atualização dos salários pelos mais elevados, praticados na fábrica Graham. Contando com o desânimo dos
operários provocado pela fome, os patrões reabriram as fábricas esperando o
regresso dos mais frágeis. Dos inevitáveis confrontos, dos grevistas com a
tropa, envolvendo tiroteio, resultou a prisão de 220 operários, entre os quais
um tal José Chita, chapeleiro e militante do Porto. Perante a furiosa reação
popular, os prisioneiros foram levados para bordo de um navio fundeado no
Douro.
No cais do Ficalho mulheres com os filhos chorosos ao colo apoiavam os
seus presos, que retribuíam, das vigias da 2ª coberta, com palavras de conforto,
acenando-lhes. O Porto ribeirinho indignou-se. Gente humilde distribuía esmola
aos familiares e enviava pão e tabaco aos prisioneiros. Os republicanos
difundiam as causas dos operários no seu jornal “O Mundo”. As fiandeiras, num
manifesto em que afirmavam a sua condição de escravas e exploradas,
solidarizaram-se com a causa dos seus “irmãos de trabalho”, referindo que a
profecia de Marx, segundo a qual o capital criaria os coveiros que o
sepultariam, estava a concretizar-se eloquentemente. Denunciando os patrões,
que se pavoneavam de charuto na boca enquanto os operários morriam de fome,
invocavam Oliveira Martins, que, caso ainda vivesse, com a eloquência que o
distinguia puniria todos os que exploravam a indústria nacional em proveito
próprio, em prejuízo da nação e dos famintos operários.
O Porto operário levantou-se pelos tecelões: chapeleiros - 3000 -,
sapateiros - 1000 -, metalúrgicos - 1500 -, tabaqueiros - 1500 -, tanoeiros -
4000 -, trabalhadores da moagem - 1000 - e centenas de trabalhadores de outros
ofícios. Um total de 40 mil trabalhadores, cerca de 24 % da população da
cidade, deixara cair os braços. Retomadas as negociações, os operários exigiam
um acordo escrito e diplomas de acesso à profissão. Responderam os patrões
mecânicos com a oferta de 10 % de aumento dos salários. Regressados às fábricas,
voltaram os operários à greve por incumprimento de alguns patrões. Novo acordo,
parcial, assinado a 24 de Julho, não impediu a continuação da greve pelos
tecelões manuais, apoiados pelos tecelões mecânicos.
O peso da greve convidava ao abandono. Nomearam-se fiscais para
dissuasão e punição dos “amarelos”. Avançavam os patrões com novas propostas;
mais 5 réis por metro sobre a melhor tabela, medição da fazenda à vista dos
operários, aviamentos por conta da fábrica, redução de horário para das 0700h
às 1800h com uma hora para almoço, tardes de sábado livres, produto das multas
para um fundo de assistência. Nada parou os operários; “perdidos por cem,
perdidos por mil”.
Tecelões e fiandeiras, velhos rivais, uniram-se e marcharam pela cidade.
Organizaram-se peditórios. O Jornal de
Notícias relatava o drama do povo a pedir pão e justiça, de mulheres
exaustas, de joelhos, com os filhos ao colo a pedirem clemência, do povo
comovido e dos polícias embainhando os sabres. O Mundo, jornal republicano que acompanhava diariamente a greve,
relatava os grevistas, não como trabalhadores a lutar pelos seus direitos, mas
como pobres a suplicar o pão.
Gerou-se uma vaga de auxílios; o conde de Vizela distribuiu esmola aos
grevistas, os republicanos organizaram as “Cozinhas Populares” em que quem
queria ajudar comprava senhas de refeição para distribuir aos grevistas - O Jornal de Notícias comprou mil, os
moradores da Cedofeita outras mil e um anónimo quinhentas. A certa altura,
fartos da má qualidade da comida - sopa aguada e macarrão cru - os grevistas
amotinaram-se; as mulheres famintas e esfarrapadas saíram à rua em protesto. A
Guarda Municipal, condoída, não tinha coragem de as reprimir. O Porto em peso
estava com os amotinados; os padeiros davam-lhes pão, as casas de pasto
ofereciam-lhes refeições e os soldados ofereciam-lhes parte do próprio rancho.
Foram chegando donativos: o Congresso Nacionalista ofereceu 562 mil
réis, realizados numa subscrição e João Franco - futuro Presidente do Conselho -
doou 2500 réis. Personalidades republicanas, anarquistas e associações de
classe também contribuíram com dinheiro. Os Jornalistas da cidade entregaram o
que angariaram num peditório, dinheiro, pratas e roupas. O maçónico Grémio da Montanha
contribuiu com o produto da venda de um poema de Gomes Leal.
Destacaram-se os Operários Metalúrgicos de Lisboa, abrindo subscrições
em dezenas de fábricas, organizando uma grande festa no Coliseu e pedindo ajuda
no estrangeiro. Os Manufatores de Tecidos de Lisboa, entregaram 521 mil réis e
os trabalhadores de Setúbal destinaram-lhes uma parte dos seus salários durante
semanas. Na frente externa, a CGT francesa organizou uma recolha de fundos
junto dos seus associados e das congéneres belga e italiana.
A greve dos operários contra os patrões politizou-se, transformou-se na
luta do Porto trabalhador contra a Lisboa parasita. O Jornal de Notícias referiu que o Governo mandara sacrificar os seus
filhos do Porto. Os navios-prisões e o fogo dos soldados contra os operários
colocaram o Governo ao lado dos patrões suscitando a fúria dos grevistas contra
a Capital. As oposições, em desagregação, uniram-se contra o Governo. A igreja
colocou-se ao lado dos operários acusando, violentamente, patrões e Governo. Os
Centros Católicos Operários distribuíram subsídios aos seus associados. O Grito do Povo, jornal católico, acusou o
governo de extorsão fiscal do povo - “até ao último ceitil” - reprimindo-o, com
o envio de um navio de guerra, quando, reduzido à mais fome, protestava nas
ruas. Por seu lado, o Partido Progressista, defensor da ordem pública, pediu a
demissão do Governador Civil do Porto.
Estrondosa manifestação ocorreu a 4 de Junho quando o cruzador Rainha D.
Amélia chegou ao Porto enviado pelo Governo com intuitos dissuasores dos
grevistas. Porém, a “terrível” ameaça redundou em animada confraternização
entre os marinheiros e o rapazio. Pendurados nos mastros, aqueles, e nas
árvores, estes, acenaram-se os lenços mutuamente. Desistindo da militarização
da cidade, o Governo forçou o Governador Civil a demitir-se e obrigou os
operários a reunirem-se ao ar livre numa das colinas dos arredores, após
sinalização do local com um foguete.
Com base num edital de 1887, que autorizava a prisão dos operários
desempregados, polícia e exército passaram a reprimir e deter os grevistas por
motivos fúteis. Em Arcozelo, operários, polícia e exército, envolveram-se num
conflito sangrento, quando aqueles distribuíam panfletos. A 18 de Junho 250
operários aguardavam julgamento na prisão.
Mesmo com acordos escritos, rapidamente os patrões os incumpriam, impondo um ambiente de intolerância nas fábricas e despedindo os militantes. Perante o esgotamento físico e mental dos operários, em especial dos tecelões manuais, aqueles voltaram às fábricas, acusando o capital de “víbora, abutre, jiboia e tigre”, através da sua Associação de Classe.
Fonte: "Os Pobres" de Maria Filomena Mónica
Peniche, 28 de Março de 2021
António Barreto
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