As Democracias também morrem
A Democracia é uma ideia fascinante, caracterizada pela soberania
popular delegada, pela separação de poderes - legislativo, executivo e judicial
- e pelo primado da lei, com o propósito de garantir a defesa das liberdades -
de expressão, de participação económica e política - da dignidade humana e de
ausência de qualquer tipo de discriminação.
A atividade democrática implica a coexistência de múltiplas plataformas
de informação e debate, com caracter aberto e universal, capazes de fomentar e
veicular a turbulência de ideias que, fluindo continuamente, hão-de consubstanciar
as características do regime em todas as vertentes.
Sempre que tais plataformas subvertem a sua função colocando-se,
encapotadamente, ao serviço de quaisquer interesses particulares, enfraquecem a
democracia, originando tensões de vária ordem que, não sendo corrigidas por
mecanismos democráticos constituídos para o efeito, em última análise, podem
originar guerras civis e ao advento de regimes autoritários.
Habituámo-nos a olhar para a Democracia como indiscutível e a dissipar
as ocasionais dúvidas ou persistentes perplexidades, com a célebre expressão,
paradoxal, atribuída a Churchil,
segundo a qual “A Democracia é o pior dos regimes, com exceção de todos os
outros”.
Porém, estabelecidos os pilares primordiais, a Democracia deve ser um
processo evolutivo de aprimoramento contínuo dos mecanismos que conduzam à
universalidade efetiva, e não apenas teórica, do acesso à dignidade de qualquer
cidadão; quem quer que seja, onde quer que seja e qualquer que seja a sua
condição.
Quando, um dia, ouvi um líder africano - julgo que Kadafi - afirmar que a Democracia não devia aplicar-se a todos os povos,
fiquei perplexo! O descaramento da afirmação era, então para mim, uma tentativa
tola de o ditador justificar a autocracia que estabelecera no seu país.
Mas não esqueci; hoje compreendo melhor a ideia; a compulsão do poder
subverte as elites políticas, e a baixa maturidade cívica da população, quando
ocorre, torna-a vulnerável à demagogia, à mentira e até ao medo que,
insidiosamente, os poderes instituídos vão disseminando.
Foi assim, com um arregalar de olhos, que aqui há tempos me deparei, surpreendentemente,
com um opúsculo - de um dos alfarrabistas que frequento -, com o título “Contra
a Democracia” da autoria dum tal Alfredo Pimenta. Tratei logo de o “abarbatar”,
ler e indagar a biografia do autor.
Alfredo Pimenta (1882/1950) foi um intelectual, académico e político
destacado - historiador, poeta, ensaísta, jornalista -, natural de Guimarães,
com profusa obra literária - num total de 167 obras publicadas. As origens
humildes não o impediram de frequentar colégios de qualidade, graças ao seu
talento que cedo suscitou importantes apoios locais. Envolveu-se em atividades
políticas e, aos “trambolhões”, lá conseguiu licenciar-se em Direito, área que
detestava. Ateu primeiro, fervoroso católico depois, patriota, teórico da
Mocidade Portuguesa, defensor do regime nazi, crítico dos Aliados, amigo de
Salazar e Monárquico absolutista (Um perfil e tanto!)
Eis alguns extratos do que pensava Alfredo Pimenta da Democracia, num discurso
dirigido a universitários, em finais de Outubro de 1948 - candidatos Óscar
Carmona e Norton de Matos -, vésperas de eleições presidenciais.
“Se, de facto, somos inimigos do Comunismo, e das suas torpezas, das
suas blasfémias, das suas indignidades, das suas misérias e das suas infâmias,
façamos a guerra impiedosa e permanente ao que a produz, ao que é a sua fonte e
a sua razão de ser. Numa palavra, combatamos a Democracia; ataquemos a
Democracia.
Corre mundo e entrou em todos os meios a blague sinistra de que, por
serem variadas as máscaras da Democracia, não se sabe já o que a Democracia
seja. Poliforma, é certo; a sua substância, porém, é inalterável. E esse seu
polimorfismo é o recurso interessado daqueles que a Democracia envenenou. E é à
custa desse polimorfismo que a Democracia medra, se infiltra, conquista, perverte
e leva ao Comunismo.
Democracia cristã; Democracia orgânica; Democracia positiva; Democracia
social; Democracia temperada; Democracia liberal; Democracia isto; Democracia
aquilo; Democracia aqueloutro, são máscaras do mesmo erro, pseudónimos do mesmo
mal, disfarces do mesmo cancro: a Democracia.
O polimorfismo satânico que a Democracia apresenta é o fenómeno moderno;
desconheceu-o Aristóteles; desconheceu-o S. Tomás.
Para os dois, a Sociedade podia ser monárquica, se governa um;
aristocrática, se governam alguns; democrática, se governam todos.
Mas o governo de todos é um mito, porque é um absurdo. A sociedade é uma
realidade; o governo é outra. Não há sociedade sem governo - proclamou-o
Augusto Comte. Pode governar um; podem governar alguns; não podem governar
todos. A Democracia que é o governo de todos é conceito metafísico, abstração
pura.
A Democracia nunca se realizou. Sociedade que tentasse realizá-la suicidar-se-ia.
Sociedade a governar-se a si própria nunca existiu, porque a mesma noção de
sociedade implica organização e hierarquia, e portanto governantes que mandam,
governados que obedecem. A Democracia é a negação da organização e da
hierarquia: todos mandam, todos governam, todos são soberanos. Nunca se viu;
nunca se poderá ver. O mal da Democracia está, antes de mais nada no mito que a
constitui, na mentira que representa, na mistificação idiota que personifica.
As massas são crédulas, ingénuas e estúpidas. Os seus exploradores, os
que vivem, enriquecem, engordam, trepam e se fazem à custa dessa credulidade,
dessas ingenuidade ou dessa estupidez, são os profiteurs da Democracia, tão repelentes e tão sujos, como aqueles
cadastrados que vivem à conta das desgraçadas que pertencem a quem as compra.
O Comunismo, última fase da vida evolutiva da Democracia, é menos
indigno que esta - porque é franco, é lógico, é desassombrado. Os defensores,
os propagandistas, os filósofos, os agentes, os sacerdotes da Democracia, ou
são comunistas que se desconhecem, ou comunistas que se disfarçam.
Combata-se o Comunismo como consequência da Democracia; mas combata-se a
Democracia como antecedente do Comunismo.
Defender a Democracia e combater o Comunismo é de imbecil. Opor a
Democracia ao Comunismo é de ignorante.
Se a Democracia, sociedade em que todos governam, não existe, que é que
existe com o nome de Democracia? Existe a sociedade em que alguns se governam -
mentindo, iludindo, sofismando, arrastando o povo atrás da sua mentira,
levando-o, cego e surdo, atrás duma ilusão!
As massas não raciocinam: creem. E
quanto mais compactas e numerosas são, mais obtusa e irrefletida e infantil é a
sua crença.
Não há almas coletivas, não há razões coletivas, não há inteligências
coletivas. As massas têm instintos, não têm Razão; têm reflexos, não têm
discernimento. Porque as seduz a Democracia? Porque as encanta o Comunismo?
Precisamente porque são bárbaros e absurdos.
Mas essas Democracias que por aí passeiam sua vida, que são afinal? São
burlas escandalosas e é à sua qualidade de burlas que devem o poder viver.
(…) Eles sabem, como todos nós
sabemos, que a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade, são entre os homens,
mistificações, nuns, superstições, noutros.
(…) E as massas creem…E até creem
na mais estupenda das calúnias com que se pretende desonrar o Catolicismo - a de
que a Democracia é de natureza Católica!
(…) Para os Católicos a resposta
é só uma: “Não há poder que não venha de Deus” - Ou, no latim da Vulgata: non est potestas nisi a Deo. Até o poder
ilegítimo? Nunca o Apóstolo o disse, nem podia dizê-lo. Porque antes dele já S.
Lucas ensinava: “Devemos obedecer mais a Deus do que aos homens: “obediri opportet Deo maggis, quam hominibus”.
Logo, há dois Poderes, há duas Autoridades: o Poder ou a Autoridade de
Deus; e o Poder ou a Autoridade dos homens. Se pode haver conflito entre os
dois, é porque um deles não emana de Deus. Logo, nem todo o Poder vem de Deus.
Só vem de Deus o Poder que reconhece Deus como sua fonte de origem. A
Democracia tem como dogma fundamental que o Poder está na própria Sociedade, e
desta emana. Logo, a Democracia não vem de Deus1.
Se a Democracia não vem de Deus, o católico não pode obedecer voluntariamente
à Democracia, nem ser seu apologista, defensor ou serventuário.”
Descontando a espantosa apologia da Monarquia Absolutista e do nazismo,
a estrutura de raciocínio relativa *a Democracia, não é destituída de senso.
Perante a atualidade política nos regimes democráticos - Ocidente -, nomeadamente
em Portugal, Espanha, França, EUA, Brasil, etc., e o que sucedeu com a
Venezuela, o Chile, o Uruguai, etc., dei comigo a pensar se a Democracia não
será a armadilha do Socialismo.
Certo, certo é que a Democracia está cheia de armadilhas que os
oportunistas, falsos democratas, demagogicamente, insidiosamente, vão lançando
e normalizando, na obstinada compulsão do poder que lhes permite, e às suas
clientelas, apropriarem-se das riquezas dos povos. Por tudo isto é imperioso conduzir
os regimes democráticos a níveis que impeçam o seu desvirtuamento.
Finalmente, fiquei a perceber melhor a razão primordial da
incompatibilidade do Republicanismo com o Catolicismo e da insana perseguição
deste pelos regimes republicanos.
1Ver o ensaio
teológico-político do autor: A Igreja e
os Regimes Políticos, Lisboa, 1942.
Peniche, 29 de Outubro de 2022
António
Barreto
Sem comentários:
Enviar um comentário