Memórias de Bordo
Naquela manhã havia algo diferente. Era a luz. Conhecia aquela luz.
Dirigi-me à vigia, que dava para a proa, e afastei a cortina de tecido verde e
poroso. Num instante estava nos campos da Várzea, repletos de erva fresca, dum
verde quase translúcido, gotejando o orvalho da aurora, salpicados do amarelo
claro das “mijonas”. As águas cristalinas do ribeiro rumorejavam suavemente,
saltitando de pedra em pedra entre pequenos chorões, onde pintassilgos e piscos
chilreavam alegremente. O canto dos piscos, e o seu exuberante peito vermelho,
por si só valiam a expedição. Naquela manhã de primavera não resistira ao apelo
do campo, a todo aquele verde que parecia infinito, ciente das consequências de
ter faltado à escola; a professora Matilde iria zangar-se e os meus pais não me
perdoariam; amar a natureza não era desculpa suficiente.
Não me enganei; a luminosidade suave, difusa, da manhã, definia os azuis
matizados do céu e do mar. Tranquilamente o navio deslizava rumo ao infinito
sob o surdo rumor sincopado e distante da máquina. No amplo convés cinzento
avistava-se a escotilha da “casa das bombas” as quais, uns bons vinte metros
abaixo do convés, permitiam gerir a estabilidade do navio.
Acabara o quarto das oito, para mim o mais difícil. Sentia-me bem, podia
descansar um pouco mais tarde. Tomei banho, mudei de roupa e fui dar uma
passeata ao tombadilho da ponte. Debrucei-me sobre o varandim de vante observando
fascinado aquela imensidão luminosa e tranquila, grato por fazer parte dela.
Saíramos de Luanda no dia anterior rumo a Lisboa. Fomos recolher os
haveres dos nossos compatriotas escorraçados pela guerra civil. Espalhados no
cais, os contentores. Ouviam-se tiros na cidade. No chão da avenida, que tantas
vezes percorrera a pé até à Praia da Barracuda, viam-se alguns vultos imóveis.
Pareciam pessoas. Lembrei-me do pedido que o meu primo Totta me fizera, mas não me atrevi a sair do navio; o tempo era
pouco, o risco grande e não tinha como ir-lhe buscar as mobílias a casa. Soube
depois que a FNLA fizera uma investida na cidade contra os restantes grupos de
guerrilha. Matutava nisto quando ouvi passos:
- Bom dia, Barreto; Vamos dar a volta. Disse o 2º Piloto.
- Bom dia, Esteves; dar a volta? Retorqui, supondo que iríamos fazer
algum exercício de segurança.
- Sim; o Comandante recebeu uma mensagem do Presidente da República a
pedir para irmos ao Lobito buscar os portugueses que estão acantonados no cais,
encurralados pelos guerrilheiros da FNLA, que invadiram a cidade.
Após uns segundos a digerir aquilo, respondi:
- Nesse caso vamos fazer, com urgência, uma reunião de oficiais, para
delinearmos um plano de apoio às pessoas a propor ao Comandante. Ainda são uns
quatorze dias de viagem; há-de haver muita gente com problemas, sobretudo
mulheres e crianças.
Era o tempo dos delegados sindicais; cada categoria profissional elegia
um delegado, constituindo-se uma comissão que debatia os assuntos internos,
cujas conclusões, sendo caso disso, eram apresentadas ao Comandante. Eu era o
delegado dos oficiais de Máquinas e coordenador da comissão eleito pelos restantes
delegados.
Reunimos ainda nessa manhã a oficialidade subalterna; avaliámos o que
podíamos fazer e, eu e o 2º Piloto - delegado dos oficiais náuticos -, incumbidos
pela comissão de delegados, propusemos ao Comandante uma reunião geral de
tripulação para convidar todos a aderirem ao nosso plano, que consistia em disponibilizar
os nossos camarotes às senhoras com filhos ou pessoas doentes, restringir as
nossas refeições ao mínimo - tipo um prato de sopa por refeição, ou uma sandes
- libertando mantimentos para os mais carenciados, manter a enfermaria de serviço
aberta em permanência - tínhamos um enfermeiro a bordo e o 3º Piloto, estudante
de medicina, tinha experiência de banco. E pedir-lhe para canalizar aos
conterrâneos resgatados todos os meios disponíveis em matéria de mantas,
cobertores e alimentos, reservando o leite exclusivamente para as crianças.
Água não faltaria; tínhamos os tanques cheios e o navio fabricava-a com
abundância.
O Comandante Câmara, homem de elevada estatura, barbudo, um tanto
ríspido mas, ao-fim-e-ao-cabo, uma boa pessoa, surpreendido, alegando que o
navio não dispunha de mantimentos para tanta gente, perante a nossa insistência
e disponibilidade, autorizou a reunião.
Marcámo-la para a noite do mesmo dia, aí pelas 2100 horas, na sala de
convívio do navio. Fizemos correr palavra e, à hora aprazada, lá estávamos, os
delegados, aguardando a chegada dos restantes tripulantes, enquanto o navio
prosseguia a sua marcha já rumo ao Lobito.
Foram chegando os tripulantes, e, a certa altura, ouviram-se protestos
em voz alta de alguns dando conta da sua discordância da ida ao Lobito devido
ao risco inerente. Sentimos o perigo duma reviravolta. Naquele contexto, em que
afundar um navio mercante desarmado era acessível a qualquer operacional munido
de um lança roquetes ou bazuca, o medo poderia propagar-se como rastilho,
gerando o pânico, e conduzir a um resultado oposto ao que pretendíamos.
Não havia tempo de avisar o Comandante. Decididos a “matar” a
dissidência à nascença, iniciámos a reunião de imediato iniciando os Trabalhos,
com a votação da ida ou não ida ao Lobito. Declarei de imediato que me demitiria
caso a decisão fosse pelo regresso imediato a Lisboa esperançado qua tal não
ocorresse.
Surtiu efeito, para meu alívio, a esmagadora maioria dos tripulantes
votou a favor da ida ao Lobito. Senti algo difícil de descrever, foi um pequeno
gesto, é certo, mas, naquele navio, quase todos, indiferentes ao eventual
perigo, decidimos socorrer os nossos concidadãos em desespero. O desafio era o
de chegarmos antes de serem chacinados. Senti uma espécie de enaltecimento e
algum orgulho; afinal, ainda eramos uma comunidade solidária.
Quando o Comandante chegou tudo estava consumado. Alertado pelo imediato
- de alcunha “o Mãozinhas” -, manifestou a sua indignação pela alteração do
motivo da reunião. Aceitou, porém, a justificação que lhe apresentei de
imediato, em nome da Comissão de Delegados.
Chegámos ao Lobito noite dentro, talvez meia-noite, duas da manhã. A
multidão esperava-nos no cais, ansiosa. O embarque decorreu sem incidentes e o
navio zarpou, sem demora, rumo a Lisboa.
Cumprimos o plano estabelecido ao
qual aderiu a maior parte dos tripulantes, incluindo o Comandante, o Imediato, o
Chefe de Máquinas e o 1º Maquinista. Nós, oficiais subalternos dormíamos no
chão do escritório do convés, revezávamo-nos no serviço de enfermaria e, não
nos tendo faltado nada de essencial, alimentávamo-nos mais frugalmente. Dávamos
o apoio possível a um ou outro caso mais delicado, pessoas doentes ou crianças
com fome, mas, que me recorde, não houve qualquer situação grave além do
desconforto, resultante da precariedade das acomodações nos porrões.
Chegámos a Lisboa sem incidentes de maior, com o sentimento, discreto
mas indelével do dever cumprido.
Lamento não me recordar dos nomes dos restantes colegas, apesar de ter
memorizado os traços gerais das suas feições.
Hoje, gostaria de os encontrar e recordar esses tempos.
O navio era o H. Capelo, o maior navio frigorífico da nossa frota da época.
Peniche, 03 de Setembro de 2022
António Barreto
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