“As Origens do
Totalitarismo”
Hannah Arendt
Hannah
Arendt (1906/1975), foi
uma filósofa política alemã
de ascendência judia perseguida pelo nazismo, que escapou aos campos
de concentração e se refugiou na América onde permaneceu
apátrida, naturalizando-se americana ao fim de 18 anos.
Dedicou-se
ao estudo das causas dos refugiados, dos apátridas, dos
judeus
e do totalitarismo. Conhecedora profunda dos movimentos sociais e
políticos dos
séculos
XIX e
XX, trouxe para o espaço público o seu vasto conhecimento das
origens
- em
especial do anti-semitismo -
das
características
e das dinâmicas que produziram
os regimes totalitários da época, o nazismo e o comunismo.
Discípula
de Martin
Heideggar,
estudiosa da obra de Kant, a Teoria da Razão Pura, as
suas principais obras
são, “As Origens do Totalitarismo”, “A
Condição Humana” e Eichmann
em Jerusalém.
Deparando-me,
frequentemente com referências de outros autores às suas ideias,
avancei para a leitura de “As Origens do Totalitarismo”, obra
cuja 1ª edição foi publicada em 1951, sendo esta a 9ª edição.
Um belo exemplar de 600 páginas, com papel de boa cor e textura e
letras de confortável tamanho e contraste.
Só
após o primeiro terço me convenci da qualidade da obra, até aí
exposição
das
ideias é
tão fracionada que dificultava
a
sua articulação
coerente.
Cheguei a duvidar da tradução, pronto a abandonar a leitura.
Nenhuma obra, por maior que seja a sua qualidade intrínseca,
resiste a uma tradução literal. Ultrapassada
esta “crise” revelou-se-me
todo o fascínio do conhecimento e pensamento da autora. De tal modo
que decidi ler as restantes numa próxima oportunidade.
Um
dos temas que me chamou a atenção é o dos “povos eleitos”;
afinal, além dos judeus, também alemães e russos se consideram
detentores desse
suposto
desígnio
divino!
Esta cultura transgeracional acaba por se traduzir, a partir das
elites intelectuais, na assunção geral da responsabilidade de
conduzir um
povo à
“salvação” do
mundo.
É
esta uma das causas do totalitarismo; a salvação futura, impossível
de confirmar
na época.
Acontece
que na cultura portuguesa também há vestígios de ideias
semelhantes.
A ideia do 5º império foi referida por
Agostinho da Silva como
desígnio transcendental dos portugueses! Desconheço os fundamentos
desta teoria, a não ser, eventualmente, a conhecida
gesta
marítima. Não
me agrada; os povos, os partidos, os homens providenciais que querem
salvar o mundo, são perigosos.
Outro
dos temas “revelação”, é o das origens do imperialismo; foi
em 1884, na
sequência da Conferência de Berlim, em que foi efetuada a partilha
da África pelos países europeus, carentes de matérias-primas e
novos mercados para sustentação das suas economias, a que a
revolução tecnológica dera
nova expressão.
Talvez
resida aqui o fundamento da ideia da diferença da colonização
portuguesa face às subsequentes. Certo é que este acontecimento
despoletou uma série de acontecimentos cujas consequências se
refletem nos dias de hoje.
A ideia de nação e
estado-nação ficou-me, finalmente clara com o exemplo dos judeus;
um povo com uma cultura comum, interligado por laços familiares e
espalhado pela Europa e pelo mundo, sem território próprio - até
1948 -, apesar do vínculo a diversos países.
O caso dos ciganos não é
abordado mas parece-me ter contornos semelhantes, dada a resistência
secular geral à integração nos países onde habitam, à
persistência de uma estrutura social própria, diferenciada,
anacrónica, e a dedicação a atividades económicas informais,
geralmente nas franjas da marginalidade. Porém, contrariamente aos
judeus não lhes é conhecido histórico de proximidade ao poder nem
o envolvimento em atividades bancárias ou de administração
pública.
Refugiados e apátridas na
Europa - condição a que a autora esteve sujeita -, foi e é uma
realidade com uma dimensão e impacto que estava longe de supor. As
sucessivas guerras europeias travadas ao longo dos séculos, as
consequentes alterações da respetiva geografia política, geraram
milhares, milhões de refugiados, muitos dos quais se tornaram
apátridas; gente cujos países de origem foram suprimidos,
simultaneamente rejeitada pelos países de refúgio, ou tolerada por
estes sem o estatuto de cidadania.
O caso dos Judeus é
tratado com grande profundidade e detalhe, identificando as causas
prováveis da segregação de que foram vítimas históricas; a
auto-convicção de “povo escolhido”, o hermetismo das suas
comunidades recusando a assimilação, a quase indigência de vastas
comunidades, a proximidade do poder de outras, o exercício de
funções de nomeação no topo das administrações, e o imenso
poder que alguns dos seus membros adquiriram no financiamento de
regimes absolutistas e até republicanos.
Falsamente acusados pelo
partido nacional-socialista alemão de conspiração contra a
Alemanha, foram as principais vítimas do genocídio praticado pelo
III Reich. Porém, a autora mostra como o anti-semitismo foi
muito para além da Alemanha tendo sido praticado também em França
- caso Dreyfus -, e na Rússia - “O Homem de Kiev” (minha
referência).
Fiquei também a perceber a
diferença entre massas e ralé; aquelas constituídas pelos cidadãos
alienados, desinteressados da coisa pública, estes pelos excluídos,
rejeitados, da atividade económica geral.
Trata também do percurso
dos movimentos sociais que deram origem aos regimes totalitários do
século XX, o nazismo - focado na questão racial -, e o comunismo -
crente no “inevitável” advento do poder universal do operariado
-, ambos imbuídos do “supremo” desígnio de salvação da
humanidade. Desígnio que, perante as consciências dos respetivos
chefes, justificava todas as atrocidades que cometiam.
A caracterização e
comparação das correspondentes estruturas de poder, em ambos os
casos constituída por um conjunto de órgãos institucionais,
governamentais, redundantes, sobrepostos, dispersos, mas de fachada,
sendo o poder exercido diretamente pelos respetivos chefes - Hitler e
Estaline -, através de correspondentes estruturas policiais
secretas, à margem dos respetivos partidos. Qualquer dos
totalitarismos alimentava o desígnio de domínio global, no caso do
nazismo pela via militar, no caso do comunismo pela ação
revolucionária.
Tenebrosas foram as
práticas sistemáticas de purgas civis e partidárias, que
permitiam, em ambos os regimes, a “perpetuação” do poder dos
respetivos chefes. Os métodos eram idênticos; facilitava-se o
acesso às carreiras política, governativa, policial e militar de
jovens prometedores, cuja inabalável lealdade ao chefe, lhes
garantia rápida ascensão hierárquica. Chegado o momento,
liquidavam-se os respetivos chefes cuja influência e poder crescera
e ameaçava o chefe supremo repetindo-se o processo ciclicamente.
“Em ambos os casos
consegue-se o mesmo objetivo: o extermínio torna-se processo
histórico no qual o Homem apenas sofre aquilo que, de
acordo com leis imutáveis, sucederia de qualquer modo. Assim que as
vítimas são executadas, a “profecia” transforma-se em álibi
retrospetivo: o que sucedeu foi apenas o que
havia sido predito.” (Hannah Arendt)
Hanna Arendt
Peniche, 04 de Junho de
2023
António
Barreto