A Ética Republicana em Portugal
“-Vocês não têm o direito de me matar!”
A 10 de Julho de 1921 os liberais ganharam as eleições; os democráticos sofreram a primeira derrota em dezasseis anos e Salazar foi eleito, pela primeira vez, pelos católicos.
Vivia-se em intensa turbulência social; escândalos bancários, greves e assaltos. Proliferavam boatos disseminados pela imprensa afeta à várias fações políticas.
Consumada a queda de Barros Queirós por envolvimento no escândalo do Crédit d’Anvers, António Granjo forma governo - o trigésimo primeiro da República - tentando conciliar os partidos eleitos; o liberal, o democrático, o monárquico e o católico.
Na disseminação dos rumores incendiários destacava-se o Imprensa da manhã; acusava o governo de planear o desarmamento da GNR e da Marinha, corporações afetas ao Partido Democrático.
Liberato Pinto, demitido da GNR por irregularidades e aguardando julgamento, sob pseudónimo, alimentava as notícias com “documentos confidenciais”.
António Granjo, Republicano da primeira hora, íntegro, frontal e leal, que se batera contra as forças de Paiva Couceiro durante as incursões monárquicas e nas trincheiras da Flandres, era acusado de conservador, de traidor, de se ter vendido aos barões da economia.
Tudo servia aos derrotados políticos para incendiar a opinião pública; a presença do agricultor Palha Blanco na tomada de posse do Ministro da Agricultura, Aboim Inglês, bastou para o acusar de ter-se vendido aos agrários.
Conspirava-se abertamente; Camilo de Oliveira - demitido da GNR - na Pastelaria Bijou, Procópio de Freitas - o “Pau Real” - na Marinha. António José de Almeida - Presidente da República - alertava a população para a escravatura como consequência da anarquia.
Magalhães Lima - grão-mestre da Maçonaria fundou o Movimento de Salvação Pública a que se juntaram Jaime Cortesão, Ramada Curto, Cunha leal, Leonardo Coimbra e José de Castro.
A Maçonaria - sempre a Maçonaria -, a 15 de Outubro, fez um aviso público a António Granjo afirmando que as “provocações” da GNR não defendiam o povo dos interesses dos “grandes exploradores”.
A 30 de Setembro eclode uma intentona, rapidamente controlada. Vários oficiais da Armada, incluindo Procópio de Freitas, foram presos e soltos a 5 de Outubro. Liberato Pinto fora, entretanto, condenado.
O Imprensa da Manhã, acusa Granjo de embirrar com jornalistas, republicanos - que odiava e perseguia - e marinheiros, esquecendo-se de que estes eram o melhor suporte da República.
A 19 de Outubro eclodiu a “esperada” revolução. A chefiá-la estava o coronel Manuel Maria Coelho, o capitão-tenente Procópio de Freitas, o ex-capitão da GNR Camilo de Oliveira e o Major Cortês dos Santos.
Apoiavam-se os conjurados nos subalternos, nos baixos escalões da Guarda e da Marinha; aqueles, insatisfeitos pelos rumores de desarmamento pelo Governo, estes, pelas humilhações sofridas após a derrota contra Sidónio. Era um movimento desgarrado, fragmentado, mas radicalizado pela propaganda mediática.
Às 5h e 30 da manhã, na Rotunda, a artilharia da Guarda deu as salvas de sinal seguidas pelas da Vasco da Gama, com que a Marinha assinalou a sua adesão à conjura.
António Granjo sem meios de resistência - a aviação da Amadora e a GNR recusaram-se a defender o Governo -, apresenta a demissão ao Presidente, que a aceita prontamente e declara finda a sua missão.
Perante os representantes civis e militares dos revoltosos - Jacinto Simões, Veiga Simões e Camilo de Oliveira - António José de Almeida recusa-se a reconhecer o governo revolucionário e resigna.
Já em casa Granjo foi visitado pelo vizinho Bernardino Simões, maçom, que o aconselha a refugiar-se e lhe ofere a sua casa para o efeito. Vira, na baixa, uma turba armada com más intenções.
Renitente António Granjo acaba por ceder e, acompanhado do amigo Simões, escapando à turba, foi refugiar-se em casa do “inimigo” Cunha Leal, que o recebeu de braços abertos.
A pronta denúncia de uma “zelosa” porteira conduziu o bando de revolucionário à casa de Leal, para levar Granjo. Aquele opôs-se com firmeza, mas nem a sua condição de capitão e deputado os demoveu.
Carvalho Santos e o capitão Agatão Lança, amigos de Leal, com conhecimentos na Junta revolucionária, viram frustrada a sua tentativa de intervenção desta em favor de Granjo.
Por esta altura uma multidão eufórica, e bem bebida, de revolucionários - guardas-republicanos, soldados, marinheiros e formigas -, comemorava a vitória, no Arsenal.
Pedia-se a cabeça de Granjo. Após alguma discussão saíu um grupo, comandado pelo guarda-marinha Benjamim Pereira, para efetuar a detenção do ex-Presidente. O “herói” da noite, o chefe efetivo do bando era o conhecido “dente de ouro”, o cabo Abel Olímpio.
Em casa de Cunha Leal, o bando, em nome da Junta, exigiu a entrega de Granjo para ser conduzido à fragata Vasco da Gama onde Procópio de Freitas o esperava. Bernardino Pereira - o guarda-marinha que na sequência da intentona de 30 de Setembro pedira a intervenção de Leal para não ser preso -, responsabilizou-se pela integridade física do detido.
Leal hesita mas aceita, exigindo acompanhar o “foragido”, temendo o pior. Já na rua, um dos exaltados revolucionários propôs aos camaradas “furar” Granjo ali mesmo. Optaram por embarcar e conduzir as vítimas ao Arsenal.
No Terreiro do Paço confrontaram-se com uma multidão armada de baionetas e pistolas que gritava pedindo a morte imediata do “malandro”. Perante a cobardia dos colegas o tenente Lopes Soares pôs-se ao lado dos dois prisioneiros, protegendo-os, e o valente Leal, enfrentava-os, referindo-lhes a participação de ambos na guerra contra os alemães.
Por toda a Europa Central, entre 1917 e 1919, tinham deflagrado conflitos idênticos. No verdadeiro espírito da luta de classes exaltava-se o terror como meio normal de persuasão dos inimigos de classe. O extermínio era o destino dos inimigos insubmissos.
Tinha sido assim na Rússia, na Alemanha, também na Itália e em Espanha onde tinham deflagrado guerras civis de baixa intensidade. O modelo era o mesmo em todo o lado; líderes da extrema-esquerda, intelectuais burgueses - Lenine, Trotsky, Liebnecket - seguidos por militares revoltados - subalternos ou soldados e marinheiros radicais - contra um corpo de oficiais burgueses de ascendência aristocrática.
A gente da rua - a “canalha” - fazia o trabalho sujo. Fora assim no 5 de Outubro e no 14 de Maio, na repressão aos monárquicos e aos padres e na vandalização dos jornais conservadores; mas também no 5 de Dezembro, contra Costa, e depois no assalto a Monsanto.
A comitiva parou no pátio do Arsenal onde, perante os holofotes dos navios de guerra, e os urros da multidão enfurecida, desceram e os prisioneiros foram separados. Leal, empurrado para a rua foi interpelado e atingido, de raspão no pescoço, pelo “valente” sentinela.
Valeu a Leal, mais uma vez, Benjamim Pereira, que, com outros marinheiros desarmaram o patife. Mesmo ferido, Leal foi à procura de Granjo, que, refugiado na casa da guarda, amarrotado, pisado, enxovalhado, ao vê-lo ferido ficou estarrecido.
Regressou então a turba enfurecida, separando os prisioneiros, determinada a impedir a condução de Leal ao Hospital. Desta vez foi o tenente Agatão Lança que os enfrentou e que, apesar das armas em riste, abriu passagem à força seguindo de automóvel para o hospital de São José.
Aqui, Cunha Leal pediu a Agatão para o deixar e ir salvar António Granjo.
No Alfeite, o ex-Presidente do Conselho António Granjo continuava no pequeno aposento interior do 1º andar da casa da guarda onde alguns oficiais faziam guarda na escada de acesso.
Afonso Macedo tentou parar a turba, furiosa, descontrolada, que vinha em busca de Granjo. Os amotinados responderam-lhe com tiros, um dos quais lhe passou rente à cabeça.
Afastando os oficiais que tentavam chamá-los à razão, os “corajosos” republicanos seguiram em busca de Granjo, que se refugiara no quarto 3.
“-Estavas aí? Oh…! Salta cá para fora!
- Vocês não têm direito de me matar!” respondeu o ex-Presidente numa última tentativa de os parar.
“- Desce os degraus!”, gritaram-lhe. Resignado, António Granjo avançou destemido para a morte certa:
“-Aqui me tendes. Matai-me. Matais um republicano.”
Atingido por uma saraivada de balas, já no chão, ainda foi desfigurado com uma coronhada no queixo desferida por um dos “valentes” republicanos.
O clarim da guarda, que chefiava a turba, enquanto a custo, retirava o sabre que espetara no peito do moribundo, exclamava, eufórico, com o sangue a correr em borbotões:
“-Vejam de que cor é o sangue do porco!”
Quando Agatão Lança, com Jacinto Simões, voltou ao Arsenal, tudo estava consumado:
“-Um ainda o Sr tenente salvou, agora o outro...mataram-no!”
O nobre tenente regressou a São José onde deu a triste notícia a Cunha Leal:
“-Mataram o Granjo?” Perguntou o capitão.
“-Infelizmente…”
E ali choraram, abraçados, o homem bom que não tinham podido salvar.
A partir de; “Nobre Povo, Os Anos da República” de Jaime Nogueira Pinto.
Peniche, 15 de Outubro de 2023
António Barreto
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