Por Manuel Maria Carrilho
In DN de 28 de Março de 2013
O contrato com Sócrates para ser comentador semanal no
canal público de televisão teve de partir, ou de passar, por Relvas. Isso é
óbvio. E só a imagem do que terá sido essa negociação a dois dá uma ideia
arrepiante, mas bem clara, do estado de degradação extrema a que chegou o
regime.
É uma contratação que infelizmente não surpreende
porque, na verdade, José Sócrates e Miguel Relvas são políticos siameses. Se
olharmos bem para o perfil e para o percurso de um e de outro, a conclusão impõe-se
como evidente. E muitas coisas estranhas se tornam, de repente, claras e
compreensíveis.
A história da licenciatura de Relvas foi o primeiro
sinal de uma semelhança que se revela bem mais funda: o mesmo fascínio pelo
mundo dos negócios, o mesmo desprezo pela cultura e pelo mérito, o mesmo tipo
de relação com a comunicação social, o mesmo apego sem princípios ao poder e,
acima de tudo, a mesma lata, uma gigantesca lata! Só falta mesmo ver também
Sócrates a trautear a "Grândola, Vila Morena", mas por este andar lá
chegaremos...
O contrato com a RTP vem, de resto, acentuar mais uma
convergência entre Sócrates e Relvas, e num ponto político extremamente
sensível, que é o da conceção de serviço público de televisão. Porque, com este
contrato, Sócrates aparece a cobrir inteiramente a devastação feita por Relvas
no sector, e a bloquear tudo o que o PS pretenda dizer ou propor sobre o
assunto. E quem cauciona o que Relvas fez aqui, cauciona tudo.
O que Sócrates deve fazer é assumir as suas
responsabilidades na crise, e pedir desculpa aos portugueses - e para isso
basta uma entrevista pontual, sóbria, esclarecedora e responsável. É isso que
os Portugueses merecem, é disso que a nossa democracia precisa, e é a isso que
o Partido Socialista tem direito. Ficar a pastar nos comentários, pelo
contrário, é puro circo político, e do pior: é usar o horário nobre do serviço
público de televisão para jogadas de baixa política e de pura revanche política
pessoal.
Como já há tempos afirmei, Sócrates e Relvas são sem
dúvida os dois políticos que mais contribuíram para a crise moral, e de
confiança, que o País atravessa. Uma crise que veio agudizar todas as suspeitas
com que os cidadãos olham para as suas elites dirigentes e para o continuado
fracasso da sua ação.
São casos que a radical mediatização dos nossos dias
facilita. Nomeadamente, porque ela abriu as portas à irrupção de um novo tipo
de político, que trocou o retrato de cidadão esforçado, reservado e responsável
de outros tempos, por um perfil em que o traço dominante é, simplesmente, o da
lata.
E essa lata, é o quê? É sobretudo a expressão de uma
afirmação pessoal sem limites de qualquer ordem, que tudo arrasa no seu
caminho, num júbilo mais ou menos histérico que dispensa qualificações ou
convicções que não sejam de ordem psicológica ou comunicacional. Daí,
naturalmente, a excitação voluntarista e a encenação estridente que sempre a
acompanham.
A lata não é certamente um exclusivo dos políticos,
mas tem neles um terreno de exceção. Ela aparece hoje como um traço específico
do que alguns autores têm diagnosticado como a "nova economia
psíquica" do nosso tempo. É isso que leva muita gente a ver neles
verdadeiros mutantes, e a lamentar nostalgicamente que, na política, tenham
desaparecido os verdadeiros líderes...
Mas seja ou não de mutantes que se trata, é preciso
reconhecer que os "políticos de lata" estão em sintonia com muitas
transformações do mundo contemporâneo, e que é por isso que eles suscitam
inegáveis apoios e vivas controvérsias. Figuras maiores, bem ilustrativas deste
fenómeno, são Sílvio Berlusconi ou Nicolas Sarkozy.
Como já há tempos afirmei, Sócrates e Relvas são sem
dúvida os dois políticos que mais contribuíram para a crise moral, e de
confiança, que o País atravessa. Uma crise que veio agudizar todas as suspeitas
com que os cidadãos olham para as suas elites dirigentes e para o continuado
fracasso da sua ação.
São sempre criaturas mitómanas, destituídas de
superego e, portanto, de sentido de culpa ou de responsabilidade. Revelam uma
contumaz incapacidade de lidar com a frustração, que é, como Freud bem ensinou,
onde começam todas as patologias verdadeiramente graves.
Com eles, tudo se dissolve num narcisismo amoral,
quase delinquente, que vive entre a alucinação de todos os possíveis e a
rejeição de quaisquer limites. Eles estão pois muito em linha com o paradigma
do ilimitado que tem anestesiado e minado o mundo nas últimas décadas.
A lata tornou-se, deste modo, num traço político muito
frequente, que anima os mais variados, e lamentáveis, tipos de voluntarismo.
Não admira pois que os políticos de lata se singularizem, não pela sua
dedicação a causas ou a convicções, mas pelos intermináveis casos em que se
envolvem e são envolvidos.
É também por isso que eles têm sempre que tentar
voltar - foi assim com Berlusconi, é o que se tem visto com Sarkozy, chegou a
vez de José Sócrates. Não resistem... e todos encenam, para disfarçar a sua
doentia obsessão com o poder, umas travessias do deserto mais ou menos
culturais... Berlusconi com a música, Sarkozy com a literatura e o teatro,
Sócrates com a filosofia.
Mas o seu compulsivo "comeback" acaba sempre
por se impor, porque ele é o tributo que eles têm que pagar à sua tão vazia
como ilimitada mitomania. Com consequências, atenção, que já conduziram várias
sociedades e diversos países às piores tragédias. Esperemos que não seja esse,
desta vez, o caso - mas o aviso aqui fica!...
Comentário Zaratustra
Manuel Maria Carrilho tem um curriculo académico notabilíssimo e uma obra profícua a exigir melhor atenção. Dele guardava fraco conceito, na sequência da sua passagem pela Secretaria de Estado da Cultura e de vários episódios de então que pareciam anunciar uma personalidade narcísica e fútil, como habitualmente sucede à generalidade da "Praga Académica".
Enganei-me! Perdeu o confortável cargo na Embaixada de Paris em resultado da dissidência que não se coibiu de expressar ao ver o Governo do seu partido conduzir o país para a insolvencia! A profundidade da análise que agora faz, sobreleva, de longe, tudo o que se escreveu a propósito da recente entrevista de José Socrates à RTP1, desenvolvendo a excelente crónica de Eduardo Cintra Torres acerca do mesmo tema. A ambos pois, tributo o meu respeito.
Há, porém, algo que nenhum deles referiu e que gostaria de acrescentar; Portugal tem que sair do círculo político vicioso em que se encontra, sob pena de acabar em protectorado. Precisa de caras novas, de ideias novas, de reconfigurar a estrutura do regime, de restaurar o conceito fundador da Nação.
Sócrates é a proposta de regresso ao passado; as mesmas ideias, a mesma atitude, o mesmo vazio, a mesma incompetência, a mesma frustração. Sómente a obcessão da vingança e da reconquista da hegemonia da Tribo Socrática, apesar dos efeitos nefastos que tal induziria no esforço titânico que os portugueses estão a fazer para sair do pântano onde se encontram.
Não obstante, há uma faceta positiva no regresso de Sócrates! A de proporcionar a clarificação política da sociedade portuguesa, sem a qual o país não avançará. A prática partidária de coexistência pacífica que tem sido seguida, gerou o lamaçal do bloco central, induziu nos cidadãos a falsa ideia de inexistência de diferenciação ideológica partidária e da inutilidade do seu voto perante nova forma de totalitarismo.
Nessa clarificação caíu, em definitivo, um mito! O mito Mário Soares! O paladino da liberdade, da verdade, da solidariedade, da tolerância, do pluralismo! Não, essa imagem não corresponde à verdade! Mário Soares nunca passou de um menino mimado com permanente necessidade de ribalta, sempre financiado por outrem. A sua pátria, o seu legado, é o PS, por quem está disposto a tudo sacrificar, inclusivé a Nação, pela qual, diz, se bateu. O seu conceito de liberdade não vai além do PS! A ponto de considerar "brilhante" o desempenho televisivo de quem humilhou um povo honrado e orgulhoso do seu passado, agora condenado à subalternidade! Tal apreciação decorre, não do mérito do visado, que o não tem, mas do singelo facto de este pertencer à sua tribo, pela expectativa de acesso do seu partido ao poder.
Ostensivamente, despreza, Mário Soares, o sentimento de repulsa que Sócrates gera na generalidade da população, que o considera indigno das prerrogativas de um homem livre. Só um "canalha" enaltece outro "canalha"!
António Barreto
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