Portugal viveu durante muitos anos uma ilusão de facilidade
artificial, paga com dinheiro externo. Como em todas as mentiras, um dia a
realidade bateu à porta. Seguem-se anos de brutal ajustamento, para eliminar as
tolices insustentáveis e colocar a sociedade numa trajectória robusta. Trata-se
de um caso clássico na história económica, muito frequente, muito estudado,
sempre doloroso.
Confrontada com a tarefa hercúlea, a sociedade divide-se em
duas partes bem distintas. Como nas praças de touros, existe uma zona de sol e
outra de sombra. A distinção não tem nada a ver ricos e pobres, mas com o nível
de segurança económica. O rendimento social de inserção ou a pensão mínima faz
sombra, enquanto os fundos de investimento milionários estão ao sol. Ora quando
começa a trovoada, a diferença entre as duas áreas é nítida.
Os sectores que estão ao sol (neste caso à chuva) têm de
ajustar rapidamente. As empresas vão à falência, os trabalhadores perdem o
emprego e são forçados a mudar de vida. Convertem a actividade, emigram,
encontram alternativas. Como esta crise bateu em 2008, há muito que a zona sol
ajustou. Aquilo que se arrasta longa e demoradamente é a adaptação da zona à
sombra. Aí regista-se uma luta terrível à volta dos poucos lugares protegidos,
e que aliás se vão reduzindo à medida que a tempestade desgasta as coberturas.
A consequência disto é a criação de uma segunda mentira, tão
ou mais dramática que a primeira. O fragor desta luta enche totalmente o debate
mediático, fingindo que o bem público e o futuro do País dependem crucialmente
do que não passa do interesse particular de um grupo. Basta abrir a televisão
ou os jornais para encontrar alguém a gemer ruidosamente, afirmando que a
dignidade nacional e o progresso lusitano só sobrevivem se for mantido o
subsídio, assegurado o apoio, defendida a despesa. Os propósitos são muito
variados; o único elemento comum é a fúria avassaladora contra o Governo do
momento, acusado da incompetência mais gritante ou dos propósitos mais
sinistros, simplesmente porque lhes tira o guarda-chuva.
Está a ser muito interessante ver a vastidão do poder das
forças instaladas em Portugal, e a capacidade de manipulação da realidade a seu
favor. Os serviços colectivos, dos ministérios às câmaras municipais, da
electricidade às estradas, dos juízes aos diplomatas, por se localizarem bem
dentro da zona sombra, conseguem prosseguir como se nada fosse, mantendo
hábitos ruinosos. Vêm depois os sectores protegidos, da construção aos
advogados, grandes grupos e élites sociais, mais próximos da margem, que
manobram nos bastidores. Os bancos, que andaram décadas a financiar projectos
tolos, ocultam os esqueletos no armário e asseguram ser indispensáveis ao
futuro nacional, precisamente na altura em que o prejudicam. Finalmente, a
região entre a sombra e o sol faz manifestações e gritaria. Estes são os
sindicatos, funcionários, profissões liberais e empresas subsidiadas.
O resultado de tudo isto é ir-se adiando o ajustamento, que
sempre foi inevitável, e que a economia real há muito fez. Desta luta depende a
crise demorar cinco ou trinta anos. Ou até, como se vê na Grécia e no Japão,
acabar por quebrar o sistema, que nunca volta a ser o mesmo. Neste campo pode
dizer-se que Portugal até se tem comportado muito bem, mantendo a paz social,
enquanto avança com algumas reformas.
O mais importante nesta fase é desmistificar o essencial da
segunda mentira, a ideia de que há um caminho mais fácil e existe alternativa à
austeridade. Este é o embuste alimentado pelas partes ameaçadas da zona sombra,
tentando desesperadamente manter as benesses em risco. Mas a única opção real
ao ajustamento é o caos, porque a tempestade é inelutável e o tecto tem
limites. Urgente é mudar corajosamente os hábitos e abandonar regalias
injustificadas, usando os poucos recursos, não para protecção a privilegidos
mas para defender os pobres e sobretudo investir em actividades realmente
produtivas, abandonando as ilusões que nos enfiaram na crise.
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