“Barreto! Há fogo na Casa
das Caldeiras” Chamou o Airoso batendo vigorosamente na porta do camarote. levantei-me dum salto, enfiei, num ápice, o fato de macaco e dirigi-me, em passo de corrida para a Casa das Caldeiras, cerca de seis pisos abaixo, onde
já se encontravam o Airoso e o Adalberto.
O
navio tinha a saída marcada, com destino a Kaoshiung
- a sua derradeira viagem - para as doze horas do dia seguinte. Seria o
princípio do fim da frota mercante nacional. Tinha estado de serviço no dia
anterior e decidira ficar a bordo dada a escassez de tempo para ir a casa e
voltar. Acabara de me deitar, seriam cerca de nove horas quando ocorreu este
incidente.
Pelo caminho, descendo apressadamente as escadas metálicas, imaginava a
Casa das Caldeiras em chamas, o risco de explosão do combustível - os tanques
estavam cheios de nafta - e o navio a afundar-se, ali mesmo, no cais de
Alcântara. O “Vera Cruz” morreria em Lisboa, numa explosão de raiva, recusando
o destino infame de Kaoshiung, onde
seria mutilado, esventrado e reduzido a sucata. Fosse como fosse, embora de
folga, estaria com os meus colegas.
Quando cheguei à Casa das Caldeiras não vi chamas em lado nenhum! “Estes gajos estão a gozar comigo!” Disse para mim, porém, vi que o Adalberto, secundado pelo Airoso, olhava atentamente para o
visor da câmara de combustão da caldeira de bombordo-vante - o Vera Cruz, tal
como o Santa Maria, tinha seis caldeiras, três de vante e três de ré,
simétricas, cuja pressão de regime, salvo-o-erro, era da ordem dos 38 bar.
“A fornalha está demasiado ativa! Já fechei o combustível e
parece que a chama ainda aumentou de intensidade!” Disse o Adalberto,
espreitando a fornalha. “Deve estar a queimar combustível derramado, por
deficiência do injetor ou insuficiente temperatura do combustível.” Disse eu. “Foi
o que pensámos, mas não dá sinais de abrandar!” Verificámos que a pressão de
vapor estava abaixo da pressão de regime e resolvemos aguardar na espetativa de
que a chama se extinguisse. Por essa altura, a caldeira auxiliar, “a
caldeirinha” - a caldeira assassina -, a título preventivo, já tinha sido desativada.
Passados cerca de trinta a quarenta e cinco minutos, a combustão não
dava sinais de abrandar e a pressão de vapor atingira o valor de regime. O
Airoso subiu, pela escadaria, ao topo da caldeira e gritou; “ As chapas estão
demasiado quentes! Estão ao rubro e a pressão continua a subir!”. Percebemos
então o que se passava. A fuligem acumulada nos tubulares e invólucro tinha
inflamado e devia ser em grande quantidade. Com a válvula de segurança prestes
a “disparar”, tínhamos que agir.
Depois do Adalberto despejar os extintores de espuma química na
fornalha, sem que se tivesse registado qualquer redução da intensidade da combustão,
já com labaredas a trepar pela antepara de vante, resolvemos pôr em prática a única
solução disponível; combater as chamas e arrefecer a superfície externa da caldeira, com água do mar. Organizámo-nos num ápice.
O Airoso foi à Casa da Máquina lançar o diesel-gerador, ligá-lo ao
quadro e desativar o turbogerador, então em serviço, para não nos faltar
energia elétrica. O Adalberto lançou a bomba de serviço-geral e comunicou-a com
o coletor de incêndios. Eu desenrolei a mangueira de incêndios e dirigi-me com
ela à zona da antepara, onde comecei a combater as chamas em rápida progressão,
consciente do “trinta e um” que iríamos ter na viagem, com os curto-circuitos,
se nos safássemos. Regressando da Casa das Máquinas, o Airoso desligou os
circuitos elétricos dispensáveis e, desenrolando a mangueira de bombordo, “atacou” a
envolvente superior da caldeira.
Entretanto, o piloto Teles, que estava de serviço e tinha sido avisado
pelos Airoso e Adalberto, contactara os bombeiros. Enquanto combatia as chamas,
deixei de ver os fogueiros, que, de início, estiveram connosco. Soube mais
tarde que tinham feito as malas e aguardavam, junto ao portaló, a evolução da crise, prontos a abandonar o navio. Entretanto o Adalberto desencantou uma mangueira de incêndios, não
sei onde, e atacou as chamas, que se propagavam, também na antepara de vante,
mas ao nível do piso inferior.
E assim estivemos, cada um no seu posto, na dúvida quanto ao desfecho do incêndio. Foi
então que, suavemente, dentro de mim brotou um sentimento: tive orgulho nos
meus colegas. Ninguém arredou pé, nem se desorientou; solidários, concentrados
e estoicos! A certa altura, umas duas horas e meia a três horas depois, gritou
o Airoso de bombordo, “a chapa arrefeceu…a pressão deixou de subir…está a
baixar”. “Estamos safos”, pensei - receava que a caldeira explodisse por falta
de débito da válvula de segurança que, entretanto, tinha “disparado”. Logo depois
voltou a gritar o Airoso: “A chama apagou-se!”. Respirei de alívio. Já não
tinha dúvidas: estávamos safos.
Continuámos até extinguir as últimas labaredas que ainda “lambiam” a
antepara, até, por fim, pousarmos as mangueiras. Estava junto à porta de acesso
e ouvi-a a abrir-se. Era um bombeiro que se preparava para entrar e, ao ver o
cenário, recuou um passo. Entretanto o Airoso veio ter comigo, estava eu a
estibordo já no piso superior da escadaria onde acabara de apagar os últimos
focos. Quase não o reconheci! Estava preto da cabeça aos pés! Tal como o
Adalberto, que chegou pouco depois. Percebi então o susto do bombeiro; aquele
era também o meu estado.
Além dos bombeiros, já desnecessários, chegaram o Chefe de Máquinas -
cujo nome não recordo, mas que alguém alcunhara de “Porfírio Rubirosa” e se
mostrou estupefacto -, o Comandante Manaças - o Herr Manaças, como era
conhecido - e os jornalistas. Logo ali, o Comandante anunciou a manutenção da
hora de saída para o dia seguinte.
E assim foi. O “Vera Cruz” saiu para a sua derradeira e memorável viagem
com uma caldeira desativada. Uma viagem inesquecível, rica em peripécias, à
qual se seguiu a do “Santa Maria”, do “Pátria”, do “Império”, etc. Todos com o
mesmo destino: a sucata. Os símbolos do Estado Novo e do Império foram erradicados.
Desta forma inglória se pôs fim a uma das maiores e mais bonitas frotas
mercantes do mundo. O “país de marinheiros, de naus, de esquadras e de frotas” cantado
por António Nobre, morreria em 1975, em pleno PREC.
Peniche, 27 de Fevereiro de 2021
António Barreto
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